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14 março 2020

«Discussão geométrica» - Fernando Gomes (2019/07/10 - ÚLTIMO)

— Esta relação não funciona. Vivemos em universos perpendiculares.
— Paralelos, queres tu dizer.
— Não. Quero dizer perpendiculares.
— PARALELOS!!!!
— PER-PEN-DI-CU-LA-RES!!!!!
— És mesmo obtuso.
— Ah, agora sou um ângulo?
— Se o fosses, serias um ângulo morto.
— Então é essa a perspectiva que tens de mim...
— É pior. Estupidez aguda em grau infinito.
— Sempre detestei esse teu raciocínio elíptico.
— E eu, o teu circular. Que raio de palerma me saíste...
— Parece que a tua geometria piorou desde que aumentaste de diâmetro.
— Olha, sabes que mais? Mete a geometria no recto!

Fernando Gomes

07 março 2020

«Fogo» - Fernando Gomes

Autor de «Apologia do Lume Brando», o chefe Nabo sempre foi acérrimo defensor de que a cozedura é o segredo de qualquer prato. Ontem, despiu-se de preconceitos e alinhou num sushi. Hoje, o momento em que deglutia um rolinho de peixe cru saiu escarapachado num pasquim. As redes sociais queimaram-no vivo.

Fernando Gomes

29 fevereiro 2020

«Grito» - Fernando Gomes

Chegado ao topo da Torre Eiffel, gritou:
— Meu amor, sem ti nada faço aqui!
E não fazia mesmo. Segundos depois, voltou para casa.

Fernando Gomes

22 fevereiro 2020

«Etiqueta» - Fernando Gomes

— Não, querida, o garfo é do outro lado... E este não é o copo de água. Olha, o guardanap...
— Mas tu achas que nasci ontem ou quê? Posso ser uma ignorante nisto da etiqueta, mas percebo muito bem a razão de quereres uma lady à mesa.

Fernando Gomes

15 fevereiro 2020

«Relação» - Fernando Gomes

Não conseguiam entender-se. Ele só sabia de astrofísica, ela, de direito civil. Quando se deixaram de conversas, a relação melhorou bastante. Casaram-se e já têm dois filhos.

Fernando Gomes

08 fevereiro 2020

«Costas» - Fernando Gomes

O chefe passa o dia a chamar funcionárias ao gabinete. Adverte-as por qualquer motivo inventado e manda-as sair. É então que lhes admira o rabo, enquanto revira os olhos e mergulha a mão na braguilha previamente aberta. O que ele não sabe é que todas desejam fazer-lhe o mesmo: vê-lo pelas costas.

Fernando Gomes

01 fevereiro 2020

«Os perigos da poesia» - Fernando Gomes

Todos os dias ia à biblioteca e era sempre o primeiro a chegar. Requisitava um livro de poesia e sentava-se virado para a entrada. Mal a porta se abria, descolava disfarçadamente os olhos das palavras, observando quem chegava. Se não fosse uma mulher, voltava ao livro em menos de um segundo; se fosse, os olhos seguiam-na atentamente, na estéril tentativa de lhe ler a alma. Passou anos a fio nisto, entre poemas e sonhos, à espera da mulher da sua vida.

Um dia, tinha acabado de voltar da cafetaria onde engolira à pressa o rissol e o galão do costume, ela entrou. Ele não conseguia afastar os olhos daquela figura esbelta que distribuía ao mundo um sorriso sublime. Coincidência ou destino, ela sentou-se mesmo à frente dele. Foi aí que reparou: tinham pedido a mesma antologia poética. Tossiu secamente duas vezes. Ela ergueu cabeça, e ele arregalou os olhos para o livro dela, enquanto o indicador batia repetidamente na capa do seu. Ela sorriu, desta vez só para ele, e uma felicidade desmedida fê-lo tremer até aos ossos.

Não conseguiu ler nem mais um verso. Passou o tempo a rever mental e freneticamente tudo o que tinha planeado para tão ansiada ocasião: a pose, os gestos, as frases, o tom... Até à hora do fecho, os olhares cruzaram-se uma boa dúzia de vezes, tantas quantas ela lhe sorriu e ele corou violentamente, desviando a cara para o infinito, num infrutífero esforço de se mostrar alheio à omnipresença dela.

Quando a deusa saiu, seguiu-a. Já na rua, momentos antes de lhe falar, ainda compôs um pensamento eloquente em forma de quadra popular de métrica duvidosa:

Dou graças a cada instante
À espera na biblioteca.
O dia está cintilante,
E a vida já não é uma seca.

Nem queria acreditar. Tinha encontrado a mulher da sua vida. Ela estava ali, a três metros. Avançou, emocionado e decidido, longe de imaginar que a perderia poucos minutos depois. Na realidade, não teve prosa para ela.

Fernando Gomes

11 janeiro 2020

«Os perigos do chocolate» - Fernando Gomes

O relatório não deixa dúvidas: a desconhecida morreu de enfarte. Em circunstâncias suspeitas, é certo, mas a autópsia nada detectou de estranho. Encontraram-na há dois dias, seminua, na fria madrugada de um jardim de Marvila. O corpo barrado de chocolate branco e a ausência de quaisquer documentos de identificação levaram a que, na morgue, a alcunhassem de «achocolatada».

Foi há trinta e oito anos, uns dias depois da menarca, que Jalídia conheceu as crises de epilepsia idiopática que a acompanhariam toda a vida. A partir dos quinze, tornaram-se mais frequentes. Duravam pouco mais de um minuto, e a sensação violenta e doce que lhe assaltava cada nervo dava-lhe um gozo indescritível. Dostoievski tinha comparado tais crises a orgasmos, mas a adolescente, de romancistas russos, apenas sabia – por um poema numa aula de Português – que Álvaro de Campos não o era. Nem isso, nem parvo.

Só se interessou verdadeiramente pelo heterónimo de Pessoa quando, aos dezasseis anos, percebeu que as crises eram desencadeadas por chocolate. A sua vida mudou radicalmente, e passou a seguir o lema «Não há mais metafísica no mundo senão chocolate». Deixou-se de saídas nocturnas à discoteca e de ir ao cinema com as amigas. Preferia ficar em casa, com uma tablete a provocar-lhe mais prazer do que elas poderiam imaginar. Aos poucos, foi desenvolvendo um conhecimento notável acerca de chocolate e seus derivados e tornou-se uma verdadeira enciclopédia na matéria. O paladar foi-se refinando, e começou a escolhê-lo pela origem do cacau, pela qualidade dos ingredientes adicionais e por um sem-número de características desconhecidas dos leigos.

Não se casou e nunca se lhe conheceram amores. Viajava pouco, apenas com o fito de descobrir diferentes variedades da sua única paixão. Em suma, passou a viver para o deleite que esse delicioso catalisador epiléptico indirectamente lhe proporcionava. A morte, perto dos cinquenta, deu-se pouco depois do encontro com um vendedor clandestino de chocolate branco confeccionado com substâncias orgânicas ilegalmente importadas da Arábia Saudita. A ânsia por novidades achocolatadas guiara-a ao perigoso mundo de uma desconhecida e poderosa máfia de produtos alimentares açucarados. Felizmente, a sua intuição conseguia sempre antever possíveis riscos e defender-se deles.

Nessa noite, mal se viu com o balde de cinco quilos, não resistiu. Tinha de ser ali. Sentou-se num banco de jardim e foi rasgando a massa alvacenta à unhada, engolindo-a, sôfrega, quase sem respirar. A crise epiléptica não tardou, mas, desta vez, com uma pujança insólita e crescente que a fazia devorar mais e mais aquela delícia, repetindo mentalmente o seu mantra predilecto, adaptado de versos camposianos: «Come chocolate, Jalídia, come chocolate!» Já lá iam quatro minutos, e os espasmos não paravam. Perdeu a noção do que a rodeava. Quis sentir em todo o corpo a pasta esbranquiçada que a levava ao êxtase. Rasgou a roupa e besuntou-se toda, em delírio. O enfarte não tardou.

Jalídia descansa agora num gavetão da morgue, com uma etiqueta «Identidade Desconhecida» pendurada no dedão de um pé. Os investigadores forenses não sabem que não lhes será fácil descobrir quem é a «achocolatada». Para já, ter morrido virgem e casta acarretou o terrível inconveniente de não haver quem reconheça o corpo.

Fernando Gomes

04 janeiro 2020

«Um olhar passado» - Fernando Gomes

Sempre que ergue a cabeça, aquele olhar fita-o fixamente. Há muitos anos que tem a fotografia dela na secretária, exibindo um sorriso do tamanho do mundo e uns olhos vermelhos que lhe recordam o tempo em que foi feliz e ainda não havia Photoshop.

Fernando Gomes

28 dezembro 2019

«Poeta infeliz» - Fernando Gomes

O poema publicado no Facebook rendeu-lhe trinta comentários e um casamento. Entre dezasseis «brutal», nove «top» e quatro «lindo», não resistiu a quem o presenteou com «MAGNÍFICO ». Continua a escrever poesia, mas é infeliz. Ela nunca mais o deixou publicar.


Fernando Gomes

21 dezembro 2019

«Um tipo estranho» - Fernando Gomes

Não é que Alcibíades seja um indivíduo feio ou desagradável à primeira vista, mas os membros desproporcionalmente curtos (nem todos, como gosta de sublinhar com um trejeito maroto), a roupa berrante e o nome de general ateniense não ajudam a dissipar a sensação que espalha quando abre a boca. São justamente os temas que não hesita em importar para qualquer conversa que despertam nos outros uma estranheza difícil de superar.

O seu interesse voraz por antigas civilizações, lugares misteriosos, fenómenos inexplicáveis, percepção extra-sensorial, poltergeister, espiritismo e demais paranormalidades começou quando, aos treze anos, desatou a ler compulsivamente Charroux, Berlitz, von Däniken, Kardec, Rampa e uma miríade de peritos em todo o tipo de assuntos ocultos. Qualquer palavra ou expressão que ouça lhe serve para mencionar sumérios, annunaki, gigantes extra-terrestres, atlantes e um sem-número de seres e lugares que o fascinam, totalmente desfasados da realidade dos seus interlocutores.

Nem sequer as mulheres que lhe fazem saltarilhar as hormonas escapam à enigmática verborreia. Contam-se às dezenas as que já o interromperam ao jantar para ir retocar a maquilhagem e não mais foram vistas. Nem por ele, nem pelo pessoal dos restaurantes. Foi precisamente este fenómeno que o levou a escrever a sua primeira obra, fruto de uma persistente investigação de sete anos, cujo lançamento decorreu há dias no sintrense Palácio de Valenças: Restaurantes Portugueses com Instalações Sanitárias Dominadas pela Energia do Triângulo das Bermudas.

Fernando Gomes

14 dezembro 2019

«Longa espera» - Fernando Gomes

— Pai, onde está a mãe?
— A mãe foi ao pão. Deve estar a chegar.
— Respondes sempre o mesmo.
— Também tu perguntas o mesmo há vinte anos e ainda não percebeste.

Fernando Gomes

07 dezembro 2019

«Xadrezice» - Fernando Gomes

Quando soube da traição, o rei mandou decapitar a rainha e todos os seus amantes. Agora, arrasta a solidão pelas torres... sem mulher, sem bispos, sem peões e – o que mais lhe custa – sem cavalos.

Fernando Gomes

30 novembro 2019

«Porcaria» - Fernando Gomes

Jesuíno Leitão teve azar com o nome que lhe calhou. Os colegas da primária chamavam-lhe Suíno. Para a mãe, uma vezes era porco, outras, porcalhão. Na faculdade, foi o Bairradas. O chefe critica-o por estar sempre a dizer bacoradas. A amante trata-o por porquinho. A mulher diz que ele não passa de um javardo.

Fernando Gomes

23 novembro 2019

«Pureza e Dureza» - Fernando Gomes

O Amor Puro cedeu às investidas do Sexo Duro, e passaram uma noite juntos. Invejoso da pureza do parceiro, o Sexo Duro, antes de sair à socapa, roubou-a e guardou-a para si. É por isso que muita gente diz apenas «Amor» quando fala do Amor Puro e «Sexo Puro e Duro» quando fala do Sexo Duro. Quando só fala em «Sexo», refere-se, claro, ao Sexo Mole.

Fernando Gomes

16 novembro 2019

«Confissões rodoviárias» - Fernando Gomes

> Tenho um automóvel andrógino: comportamento agressivo como qualquer macho que se preze, e uma desordem tipicamente feminina na arrumação da mala.

> Quando o meu carro e o dela chocaram, não houve pára-choques nem cinto que nos valesse. Parece que o amor à primeira vista é mesmo assim.

Fernando Gomes

09 novembro 2019

«Casal de astronautas» - Fernando Gomes

— Mas, amor, dizias que eu te atraía com mais força que a gravidade.
— É verdade, querido, mas agora preciso de espaço.

Fernando Gomes

02 novembro 2019

«Apetites» - Fernando Gomes

No escuro da última fila do cinema, dois adolescentes estão-se nas tintas para o filme. Mãos frenéticas e bocas ávidas manifestam, sem qualquer pudor, o desejo que os consome. Numa orgia de sons e cheiros, devoram pipocas e refrigerantes.

Fernando Gomes