Mostrar mensagens com a etiqueta estúdio Raposa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta estúdio Raposa. Mostrar todas as mensagens

21 dezembro 2021

Luís Gaspar lê «Senhor, de que valeu o sacrifício?» de Álvaro Feijó


Quantos desejam, Senhor,
na calma de uns seios brandos
ter sonhos e ter amor…

Os que mendigam na vida
anseiam por ser meninos
e aninhar-se
— depois da faina de um dia, cansados já de ser homens —
junto dos seios de alguém.

Senhor! De que valeu o sacrifício,
se os seios não se abriram
nem se deram a ninguém!

Álvaro Feijó
Álvaro de Castro e Sousa Correia Feijó (Viana do Castelo, 5 de Julho de 1916 - Coimbra, 9 de Março de 1941) tendo falecido de cancro quando ainda não completara os vinte e cinco anos de idade. Fez os estudos secundários no colégio dos jesuítas de La Guardia, na vizinha Galiza, inscrevendo-se seguidamente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

14 dezembro 2021

Luís Gaspar lê um poema sem título de Nadine Stair


Se pudesse voltar a viver a minha vida,
da próxima vez gostava de fazer mais erros.
Descontraía. Fazia mais disparates.
Levaria menos coisas a sério.
Corria mais riscos. Acreditava mais.
Subia mais montanhas e nadava em mais rios.
Convidava os amigos mesmo que tivesse nódoas
na carpete.
Usava a vela em forma de rosa antes de ela se
estragar no armário,
Sentava-me na relva com os meus filhos
sem me preocupar com as manchas verdes na roupa.
Tinha rido e chorado menos em frente da televisão
e mais em frente da vida.
Tinha contado mais anedotas e visto
o lado cómico das coisas.
Tinha descoberto menos dramas em cada esquina,
e inventado mais aventuras.
Se calhar, tinha mais problemas reais,
mas menos problemas imaginários.
É que, sabem, sou uma dessas pessoas que vive
com sensibilidade e sanidade hora após hora,
dia após dia.
Oh, tive os meus momentos,
e se pudesse fazer tudo de novo, outra vez,
tinha muitos mais.
De facto, não tentaria mais nada.
Apenas momentos, uns após outros,
em vez de viver tantos anos à frente de cada dia.
Fui uma dessas pessoas que nunca foi a lado nenhum
sem um termómetro, botija de água quente, casaco para
a chuva e pára-quedas.
Se pudesse fazer tudo outra vez, viajava mais leve do que viajei.
Se tivesse a minha vida para viver de novo,
começava mais cedo a andar descalça na Primavera,
e ficava sempre assim, mesmo mais tarde, no Outono.
Ia a mais bailes.
Cantava muitas mais canções.
Diria muitos mais «amo-te» e «desculpa».
E apanharia mais papoilas.

Nadine Stair

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

07 dezembro 2021

Luís Gaspar lê «Soneto» de António Gedeão


Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção falar concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer aos olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arreceio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.

António Gedeão 
Rómulo Vasco da Gama de Carvalho (Lisboa, 24 de Novembro de 1906 - Lisboa, 19 de Fevereiro de 1997), português, foi um químico, professor de Físico-Química do ensino secundário no Liceu Pedro Nunes e Liceu Camões, pedagogo, investigador de História da ciência em Portugal, divulgador da ciência, e poeta sob o pseudónimo de António Gedeão. Pedra Filosofal e Lágrima de Preta são dois dos seus mais célebres poemas.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

30 novembro 2021

Luís Gaspar lê «Vinha dizer adeus» de Rosa Lobato Faria


Vinha dizer adeus, mas reparei
Que na faia do pátio era Setembro
Vinha dizer adeus, mas encontrei
Um livro na cadeira do alpendre

Vinha dizer adeus, mas as maçãs
Estavam no forno a assar e esse cheiro
Fez-me parar na porta das manhãs
A relembrar o nosso amor inteiro

Vinha dizer adeus, mas o teu cão
Veio lamber-me os dedos hesitantes
Vinha dizer adeus, mas vi no chão
A manta, ao pé do lume, como dantes

Vinha dizer adeus, mas senti fome
Ao ver a mesa posta para dois
Dálias e o guardanapo com o meu nome
Sem ter havido antes nem depois

Vinha dizer adeus, mas que surpresa
Apassionata… o último andamento
Como se tu tivesses a certeza
Que eu ia chegar nesse momento

Vinha dizer adeus, mas nesse olhar
Vi tanta solidão, tantos abraços
Tantas amendoeiras ao luar
Que me escondi, chorando nos teus braços

Vinha dizer que já não estou contigo
Que este amor singular já não é nosso
Vinha dizer adeus, mas já não digo
Vinha dizer adeus, mas já não posso!

Rosa Lobato Faria 
Rosa Maria de Bettencourt Rodrigues Lobato de Faria foi uma escritora, compositora e actriz portuguesa. (1932 - 2010)

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

23 novembro 2021

Luís Gaspar lê «De amor nada mais resta que um Outubro» de Natália Correia


De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

in “Poesia Completa”

Natália Correia 
Natália de Oliveira Correia (Fajã de Baixo, São Miguel, 13 de Setembro de 1923 — Lisboa, 16 de Março de 1993 ) foi uma intelectual, poeta e deputada à Assembleia da República (1980-1991).

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

16 novembro 2021

Luís Gaspar lê «Gozo e Dor» de Almeida Garrett


Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
— Não, ai, não! Falta-me a vida, 
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.
Dói-me a alma, sim, e a tristeza 
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Não sei se morro ou se vivo, 
Porque a vida me parou.
É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim 
Que me inunda o coração. 
Tremo dele, e delirante 
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida ou a razão.

Almeida Garrett 
João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett e mais tarde visconde de Almeida Garrett, (Porto, 4 de fevereiro de 1799 — Lisboa, 9 de dezembro de 1854) foi um escritor e dramaturgo romântico, orador, par do reino, ministro e secretário de estado honorário português.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

09 novembro 2021

Luís Gaspar lê «Autópsia do Amor» de Gomes Leal

O Amor — essa paixão romanesca e fagueira —
que os vates têm cantado em bemol comovido,
é, na forma, uma coisa assaz brusca e grosseira,
como o assalto da fera e o ataque do bandido.

Tal e qual como o lobo assalta a cordeira,
a empolga e lhe crava o colmilho atrevido,
assim ataca o Amor. — São da mesma maneira
o Espasmo, a Fúria, o Uivo, o Estertor, o Rugido.

Nas contorsões do Cio e os seus enlaçamentos,
há o ardor da Serpente, a enroscar-se nas preias,
e a estrangular o touro enorme e mugidor.

E quer cheire ao sertão, ou da Lais aos unguentos,
Nos rosais, num covil, ou de Nero nas ceias,
— são sempre os mesmos ais, o Pranto, o Espasmo, a Dor.

Gomes Leal 
António Duarte Gomes Leal (1848-1921) nasceu em Lisboa. Era filho de um funcionário do Estado. Frequentou o Curso Superior de Letras, não chegando a terminá-lo. Ao ler as obras de Marx, Darwin, Renan e Proudhon, entusiasmou-se com o Socialismo, aproximando-se ideologicamente de Antero de Quental e Oliveira Martins.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

02 novembro 2021

Luís Gaspar lê «Na rua» de Manuel Laranjeira


Ninguém por certo adivinha como
essa Desconhecida, 
entre estes braços prendida, 
jurava ser toda minha…

Minha sempre! — E em voz baixinha:
— «Tua ainda além da vida!…» 
Hoje fita-me, esquecida
do grande amor que me tinha.

Juramos ser imortal
esse amor estranho e louco…
E o grande amor, afinal,
(Com que desprezo me lembro!) 
foi morrendo pouco a pouco,
— como uma tarde em Setembro…

Manuel Laranjeira 
Manuel Laranjeira (17 de Agosto de 1877 - 22 de Fevereiro de 1912) foi um médico e escritor português. Autor de teatro, ficção, ensaios, conferências, poesia e estudos sobre política, filosofia, religião, a sua actividade literária inicia-se cedo, ainda estudante, como cronista em várias publicações periódicas da época.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

26 outubro 2021

Luís Gaspar lê «Nascemos para amar» de Bocage


Nascemos para amar; a humanidade
Vai tarde ou cedo aos laços de ternura:
Tu és doce atractivo, ó formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão n’alma se apura
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abismou nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na ideia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre;
E, segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre.

Bocage  
Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage (Setúbal, 15 de Setembro de 1765 – Lisboa, 21 de Dezembro de 1805) foi um poeta português e, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano. Embora ícone deste movimento literário, é uma figura inserida num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico que terá forte presença na literatura portuguesa do século XIX.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

19 outubro 2021

Luís Gaspar lê «Poema (sem título)» de Egito Gonçalves















Sinto sob a nuca o pulsar
das tuas ancas. Escrevo
no puro azul do ar
a fórmula do teu nome,
o destino, este fogo. A calma 
da manhã dá-me
o silêncio suave de te ter,
de esquecer a fronteira…
Estás, longe do luto, da cidra
solitária. Uma ave
— cegonha ou garça? — agita
o céu da gândara, as linhas
da ternura. Um outono
de orvalho, comovido, 
veste-me — ou é
a água dos teus lábios?

Egito Gonçalves 
José Egito de Oliveira Gonçalves, mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor português.
Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como atividade profissional a administração de uma editora. (8 de abril de 1920, Matosinhos - 29 de janeiro de 2001, Porto) Wikipédia

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

12 outubro 2021

Luís Gaspar lê «Queria falar contigo» de Eugénio de Andrade


Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade 
Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas (Póvoa de Atalaia, 19 de Janeiro de 1923 — Porto, 13 de Junho de 2005). Apesar do seu enorme prestígio nacional e internacional, Eugénio de Andrade sempre viveu distanciado da chamada vida social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras aparições públicas com «essa debilidade do coração que é a amizade».

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

05 outubro 2021

Luís Gaspar lê «Morangos» de Rui Pires Cabral


No começo do amor, quando as cidades
nos eram desconhecidas, de que nos serviria
a certeza da morte se podíamos correr
de ponta a ponta a veia eléctrica da noite
e acabar na praia a comer morangos
ao amanhecer? Diziam-nos que tínhamos

a vida inteira pela frente. Mas, amigos,
como pudemos pensar que seria assim
para sempre? Ou que a música e o desejo
nos conduziriam de estação em estação
até ao pleno futuro que julgávamos

merecer? Afinal, o futuro era isto.
Não estamos mais sábios, não temos
melhores razões. Na viagem necessária
para o escuro, o amor é um passageiro
ocasional e difícil. E a partir de certa altura
todas as cidades se parecem.

 Rui Pires Cabral 
António Manuel Pires Cabral nasceu em Chacim, Macedo de Cavaleiros, em 1941. Licenciou-se em Filologia Germânica. É conhecido sobretudo como ficcionista e poeta. Na área da ficção, publicou até ao momento oito livros de contos e seis romances. Tem textos traduzidos para alemão, castelhano, catalão, eslovaco, francês, húngaro, inglês e italiano.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

28 setembro 2021

Luís Gaspar lê «Anjo de Deus, Anjo do Inferno» de António Pedro


Quem és?
Para que vieste?
Porque não és como eles?
Porque não falas a linguagem deles?
Até parece que já estiveste
aqui antes
não há psiquiatras
nem psicólogos
que expliquem
os teus delírios
a tua loucura
a tua louca sabedoria
o dinheiro nada te diz
nem o ganhar a vida
amas as mulheres belas
canta-las
queres derrubar o Império
para chegar ao Paraíso
já em menino eras assim
puro
justo
bondoso
mas se te fazem mal
vingas-te
estátuas, castelos caem
à tua passagem
provocas
anjo de Deus
anjo do inferno.

António Pedro 
António Pedro da Costa foi um actor, encenador, escritor, poeta, jornalista, pintor, artista plástico, antiquário e coleccionador de arte, português. 
 (9 de dezembro de 1909 - 17 de agosto de 1966) Wikipédia

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

21 setembro 2021

Luís Gaspar lê «Segundo dos Poemas de Infância» de Manuel da Fonseca

Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?…
…Como nasci poeta
devia ter sido muito antes que as mães se apercebessem disso e
fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não
sei ao certo.

Mas a história dos peitos, debaixo das blusas, foi um grande
mistério.
Tão grande
que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.

E desafiava,
sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira
que levou o chapéu do Senhor Administrador!
Em toda a vila
se falou logo num caso de política;
o Senhor Administrador
mandou vir da cidade uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver; 
e os do partido contrário
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu…

Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!

Manuel da Fonseca 
Manuel Lopes Fonseca, (Santiago do Cacém, 15 de Outubro de 1911 — Lisboa, 11 de Março de 1993) foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

14 setembro 2021

Luís Gaspar lê «Poesia» de Fernando Pessoa

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter de haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

Fernando Pessoa 
Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta e escritor português. É considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Luís de Camões.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

07 setembro 2021

Luís Gaspar lê «Canção» de António Botto


Venham ver a maravilha
Do seu corpo juvenil!
O sol encharca-o de luz,
E o mar, de rojo, tem rasgos
De luxúria provocante.

Avanço. Procuro olhá-lo
Mais de perto…
A luz é tanta
Que tudo em volta cintila
Num clarão largo e difuso…

Anda nu – saltando e rindo,
E sobre a areia da praia
Parece um astro fulgindo.
Procuro olhá-lo; – e os seus olhos,
Amedrontados, recusam
Fixar os meus… – Entristeço…

Mas nesse olhar fugidio –
Pude ver a eternidade
Do beijo que eu não mereço.

António Botto 
António Tomás Botto (Concavada, Abrantes, 17 de Agosto de 1897 — Rio de Janeiro, 16 de Março de 1959) foi um poeta português. A sua obra mais conhecida, e também a mais polémica, é o livro de poesia "Canções" que, pelo seu carácter abertamente homossexual, causou grande agitação nos meios religiosamente conservadores da época.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

22 julho 2018

Luís Gaspar lê «Declaração» de José Saramago

Não, não há morte.
Nem esta pedra é morta,
Nem morto está o fruto que tombou:
Dá-lhes vida o abraço dos meus dedos,
Respiram na cadência do meu sangue,
Do bafo que os tocou.
Também um dia, quando esta mão secar,
Na memória doutra mão perdurará,
Como a boca guardará caladamente
O sabor das bocas que beijou.

In Os Poemas Possíveis, 1966, p. 140.

José Saramago

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

23 março 2018

Luís Gaspar lê «Isto é amor» de Nuno Júdice

Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.

Nuno Júdice, in ‘Pedro, Lembrando Inês’
Nuno Júdice (Mexilhoeira Grande, 29 de Abril de 1949) é um ensaísta, poeta, ficcionista e professor universitário português.
Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

29 dezembro 2017

Luís Gaspar lê «Outra» de António Botto

Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: – a luz do dia!
– Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
– Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água – música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
– Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

António Botto
António Tomás Botto (Concavada, Abrantes, 17 de Agosto de 1897 — Rio de Janeiro, 16 de Março de 1959) foi um poeta português. A sua obra mais conhecida, e também a mais polémica, é o livro de poesia "Canções" que, pelo seu carácter abertamente homossexual, causou grande agitação nos meios religiosamente conservadores da época.
Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

22 dezembro 2017

Luís Gaspar lê «Soneto VII» de Florbela Espanca

São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é somente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se poisaram.

São mortos os que nunca alevantaram
De entre escombros a Torre de Menagem
Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,
E os que não riram e os que não choraram.

Que Deus faça de mim, quando eu morrer,
Quando eu partir para o País da Luz,
A sombra calma de um entardecer,

Tombando, entre doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heróico, posto em cruz,
Na solidão dum campo de batalha!

Florbela Espanca
Florbela Espanca (Vila Viçosa, 8 de Dezembro de 1894 — Matosinhos, 8 de Dezembro de 1930), batizada como Flor Bela de Alma da Conceição Espanca, é uma conhecida e popular poetisa portuguesa. A sua vida, de apenas trinta e seis anos, foi tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos que a autora soube transformar em poesia da mais alta qualidade, carregada de erotismo, feminilidade e panteísmo.
Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa