12 junho 2010

Azul

Saltam à rua as personagens de um teatro de madeira. O palco empedrado chama-se passeio. E as pessoas seguem e têm uma melodia própria quando os seus sons se juntam, como se fossem andorinhas. Algumas já não seguem. Eu já vi morrer. Mas não faz mal, já não faz mal, já não dói muito, agora; agora já passou.

Andei mais... Fui jogando o jogo de contar as pedras do passeio e não pisar os riscos.

Ele estava lá e esperava-me. Acho que sempre esperou; parece-me que sim porque as estantes em volta estavam cheias, sentava-se no meio de tantas páginas enquanto escrevia, e as páginas esperam sempre por nós, esperam-nos a vida inteira durante uma vida inteira. Quem sou eu agora, escuta-me, saberás qual o livro meu? Sinto-me perder os dias que não fazem páginas; ao menos quando as letras avançam, mesmo sem dó nem piedade, nunca se perdem, só repousam num silêncio branco, bonito, tudo o que os dias foram.

Ofereces-me os teus braços. Tens pena, dizes tu, de ter os bolsos vazios e nada, assim, para oferecer. Não saberás tu que nada de verdadeiramente importante se pode guardar em bolsos? Sabes, eu tenho medo do que ainda aí vem e do que possa não vir. Por isso me ofereço aos teus dedos e ao teu peito, eles que me escrevam a história e me amparem nas linhas.

Cuidado com as vossas cabeças!



Let the sun in by *holdmycoat

Osho e a palavra «foda»

Segundo Osho, depois de Friedrich Nietzsche ter declarado que «Deus está morto», a palavra «foda» tornou-se a mais importante da língua inglesa.

11 junho 2010

é que só andamos cá porque...

- destinado a ser dito no próximo Encontra A Funda, em Cucujães. O último verso de cada estrofe poderá ser entoado em coro, se a distinta audiência para aí estiver virada...

podes dizer-me o que quiseres
de mais - de menos
podes falar do coração
de amores pequenos
entre um ou dois ou três ou mil compères
ou até daqueles maiores
que fazem escola
podes dizer-me até ser a bitola
de que são feitas as cores
do universo
podes falar-me de flores
e até de um verso
mas por certo
por mais certo o que nós temos
é que só andamos cá porque fodemos

podes dizer-me o quanto queres
de romantismo
podes dizer-me de outros seres
de algum abismo
ou quereres até saber se eu não cismo
com o mundo de dolências do asceta
ou da pena perturbada do poeta
que suspira de amor em cada alento
podes gritar até «- ai que eu rebento!»
sem saber o que tens aí por dentro
mas no fundo é o quanto todos temos
pois que só andamos cá porque fodemos

será pouco
muito pouco – não importa
será pouco em vão de escada ou porta a porta
mas é tudo o que temos de mais certo
nesta vida p’ra que seja conseguida
mas por mais que o caminho seja aberto
e a passada seja coisa perseguida
há-de sempre vir de lá algum experto
que entrave e grave a fogo nesta vida
o pavor de haver sede no deserto
quando enfim o que de certo nós temos
é que só andamos cá porque fodemos

podes dizer-me então o que souberes
falar-me de um amor aluarado
de um abnegado amor
cozido pelas regras de mercado
de um amor maior
por outro lado
que sem olhar a homens ou mulheres
se descobre sem pudor e sem recato
em campestre vergel ou fero mato
ainda assim te direi por certo temos
só andarmos todos cá porque fodemos.

A posta no capítulo a seguir

O olhar que me ofereces, esse amar que fortaleces contra todas as expectativas, essa vontade de manter (cada vez mais) vivas as certezas de um futuro promissor no qual consideras essencial a minha presença efectiva, não como uma figura decorativa para exibir numa qualquer condição ou para preencher temporariamente uma omissão num domínio qualquer.
O sorriso de uma mulher, transparente, uma sensação melhor, tão diferente da que nos depara todos os dias em rostos hipócritas que nos tentam impingir emoções quando apenas pretendem manter ligações oportunistas na fachada de ilusões contrabandistas que despertam a chama em si.
Um sorriso acolhedor, uma sensação sempre melhor que abraça o olhar que pouso nos lábios que beijo a seguir.
O cheiro que me faz sempre lembrar o motivo que me leva a insistir nessa miragem, nessa hipótese num milhão de ao longo da viagem não precisar da memória para reviver dentro de mim uma história que ambos provamos não ter pressa de conhecer o seu fim.

Mais uma...


A pedido da São aqui fica mais uma foto do Projecto Mulheres Reais do MyMoments.pt/

Guia de Prevenção de Suicídios


Às vezes, devemos deixar que a vontade do suicida ocorra normalmente.
Portanto, usem a tática com moderação, e somente se vocês tiverem certeza.

Capinaremos.com

10 junho 2010

Waka Waka



HenriCartoon

Cumplicidade Evidente

A mulher aproximou-se lentamente conferindo com prazer a minha atenção e, demorando os passos com que me atravessou, sussurrou sensual:
– Gosto da tua barba.
Não respondi. Olhei-a de esguelha e levei o copo meio vazio à boca, despejando-o. Já nos tínhamos visto e trocado olhares mas havia um indivíduo que a acompanhava e que ficara parado, conversando com outros e controlando com alheamento ensaiado os seus passos até ao balcão.
Olhei para o meu copo vazio, para o indivíduo que não reparara em mim, nem se apercebera das palavras que ela me dirigira, e, agitando o copo, dei meia volta para ir buscar outra bebida.
Pousei o copo vazio no balcão, a alguma distância da mulher, que me viu mas nada fez, tal como eu. Esperei que o empregado se aproximasse dela e, só então, me aproximei dela.
– Quero um Absolut Citron com limão – pedi, depois de ela ter feito o seu pedido.
O empregado afastou-se para ir buscar as bebidas e ela falou-me sem quase olhar para mim:
– Essa barba… Hummm… Gostava de a ter a roçar-me o interior das coxas. De a sentir nos grandes lábios enquanto me comias com a língua, enquanto me chupavas… Hummm… – ronronou.
– Gostava disso – disse, também sem a olhar. – Gostava muito disso.
– E o resto do corpo também está assim? – perguntou-me num murmúrio.
O empregado aproximou-se com dois copos para ela e um copo para mim. Agradecemos e ele afastou-se de imediato.
– Algumas partes estão – disse.
Ela beberricou um dos copos e ciciou:
– Gostava de ver isso. Gostava muito de ver isso.
Piscou-me o olho, enquanto se virava para a sala, abriu um sorriso descarado para o homem que a esperava e afastou-se, deixando-me a contemplar-lhe o magnífico andar, a extraordinária silhueta e a forma perfeita das nádegas.
Pouco depois, quando um fotógrafo se aproximou, juntaram-se, sorriram e mostraram a sua “cumplicidade evidente” que havia de ser a legenda da fotografia na revista cor-de-rosa.

Tradução da lua

Eu gosto da lua que se esconde atrás dos prédios.

Eu gosto da lua que se esconde atrás das árvores.

Eu tenho uma lua que se esconde atrás do peito. De vez em quando ouço-a cantar. Quando canta um dó chama-se angústia.

Eu gosto da lua que é uma mulher da rua, na esquina espera e enrola os caracóis nos dedos. Antes, quando era uma lua criança, vestia um vestido verde claro de peito bordado e laços nas alças. Um dia também vou vestir um.

Eu gosto da lua ingénua que nos cura as feridas demasiado cedo. Depois não são as feridas que doem, são as dores que doem. E doem devia ter um i. Se doem tivesse um i, talvez existisse alguma beleza nas dores que descobrimos que afinal ainda doem de ferida já fechada.

Eu gosto da lua que pede silêncio ao ranger das portas. Eu gosto da lua mas eu não sou a lua; eu não a posso ser.

«Maria Gulosa» da banda Velhas Virgens

Uma sugestão da nossa prima Samantha.
Iremos cantar uma versão adaptada por nós no 13º Encontra-a-Funda.