05 outubro 2010

Saltos altos

É conhecida (pelo menos dos meus vizinhos de baixo) a minha perdição por sapatos (e botas e ténis e chinelos), sobretudo de salto alto.
Mas, depois de dois meses a pisar o mundo de havaianas e sandálias rasas, e após um período de transição para as sandálias altas (em que, ok, a planta do pé, macia de muita esfoliação no areal, se ressente, mas nada de insuportável, porque os dedos continuam ao léu), não foi muito inteligente da minha parte dar (literalmente) o (ou muitos) passo seguinte, para os sapatos fechados, de doze vertiginosos centímetros, num dia em que tinha nove horas de aulas. Menos perspicaz ainda foi calçar meias de vidro: o pezinho de Cinderela (a minha pedicura é que diz, não sou eu!) passou o dia a chinelar (experimentem chinelar nuns saltos de 12 cm de altura e meio de base) e os dedinhos anteriormente arejados são dez nódoas negras. Não estão negros mas sinto-os como se estivessem.
E nem me venham com a conversa do por-que-é-que-não-usas-sabrinas, que não colhe.
Colherá amanhã, mas por motivos de força maior.
Na quinta, volto ao metro e oitenta e qualquer coisa e não se fala mais nisso.
Ai.

Na cama. Na cama, já despidos. Na cama tento que o que restou para eu poder dar, seja o bastante. Devagar, que a carne ainda dói.
A sua insistência vai-me sufocando. Calma, digo, sossega, peço, deixa a cola secar para unir bem os pedaços que partiste. Mas insiste como se não me ouvisse.
Fecho os olhos com força, com aquela força que nos livros é descrita como "cerro os olhos", mas eu digo que fecho os olhos porque cerrar pressupõe uma firmeza que já não tenho. Fecho os olhos e faço por não ver mais do que os nossos corpos naquela cama.
Devagar, parece que consigo. Solto os meus lábios dos dele para lhe dizer a frase que me apetece. De repente não posso. De repente a frase que calei é a mesma frase que ele disse a quem não podia ter dito, quando não podia ter dito. De repente é Jasão, e não outro, quem, em cima de mim, fode com urgência. Com tanta urgência que não percebe que me escorrem lágrimas de ira, que não percebe que nos meus punhos cerrados não guardo um orgasmo à espera de vez, mas sim uma revolta capaz de o estrangular.
Todavia não o faço. Não estendo as mãos para lhe apertar o pescoço traidor e mentiroso. Aperto a cona, isso sim. Aperto-a em torno dele e na minha boca cresce a grossa e acre saliva da vingança, da vingança de o fazer pagar na mesma moeda, de lhe ser infiel com ele mesmo.


Medeia - blog [Infidelidades]

O que sou

Sou o que sou:
vagueio na luz intermitente
de uma descoberta.
Sou a voz emotiva
das palavras.
Letra a letra, já não sei
soletrar-te.
Um dia – agora – sei que
encontraremos a resposta.
As dúvidas dirão de nós
tudo aquilo que nos afastou.
Falaremos de amor
e de magia.

Poesia de Paula Raposo

Nada melhor para aliviar o stress

Comprinha para a minha colecção: uma boneca voodoo para ex-amantes.

Mesmo assim, prefiro os meus bonecos vudu-zalho e vudu-zona, que vão directos ao assunto (e estão à venda aqui, para quem esteja interessado):

04 outubro 2010

Antes de RAP, havia MEC

Ricardo Araújo Pereira (a.k.a. RAP) não é a primeira figura nacional a ser conhecida por meio de uma abreviatura. Há mais de vinte anos atrás, tínhamos Miguel Esteves Cardoso (a.k.a. MEC). Monárquico, feio, genial.
Comecei a ler-lhe as obras todas, acabadinha de chegar à Faculdade e nunca mais parei.
Não aprecio particularmente a figura e é intencionalmente que não o vejo na televisão, para não perder o escritor. Aquele que fala de coisas por que todos já passámos, de que todos já nos lembrámos mas que seríamos incapazes de descrever, de pensar como ele. O modo como brinca com, mais do que as palavras, as ideias, é uma delícia para qualquer um que gosta destas coisas da escrita. E que se delicia ao observar nos outros o que sabe que nunca será capaz de fazer, embora gostasse.
MEC nunca teve medo das palavras nem dos palavrões. E usa-os sem pudor nem a repugnância pseudo-burguesa. Por isso, pode usá-los. Porque sabe. Ora vejam-no, no dizer de outro Miguel, o Guilherme.

(E não, não vou admoestar para a necessidade de precaução, no caso de possuirem ouvidos mais sensíveis; pessoalmente, o que me choca não são as palavras, mas o modo como são ditas - e aqui são bem ditas. [Também] porque muito bem escritas.)

AnAndrade

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O OrCa propõe:

 A Santa Caralhada

"Não se importam que me junte à equipa, não? Obrigado.
O vernáculo, como panaceia, por exemplo, contra um aumento intempestivo e anacrónico de impostos, é libertador e tem a suprema função social de, por mera sublimação, nos impedir de chegar ao extremo de nos irmos a eles (aos ministros a que temos direito, entenda-se) e fodermo-los todos... nem que fosse apenas para gerar alguma equanimidade social.
Qualquer político de merda - daqueles em que temos sido pródigos - que atentasse bem nesta realidade e em quanto um bom palavrão os defende de males maiores já deveria ter erigido uma capelinha em cada lugarejo do país. Sugiro que a deidade a ser louvaminhada seja baptizada de Santa Caralhada. E havia de ter feiras e congressos e intelectuais e economistas e tudo..."

Carta ao Viajante (II)

...não me lembro de ter cobrado mais nada, tudo o mais, que me lembre, eu sempre dei. Mas isso não te posso dar ou ensinar, isso que pensas que é a arte do desprendimento, essa arte eu nem a sei. Conheço outra de que te falei, não era essa. Estava serena até quando perdi a serenidade. Sei, tudo é suposto ser desde que se seja, tudo acontece desde que se exista, tudo assim é, tudo pode ser. Podes contar-me mais segredos? Um dia perdemo-nos no vinho e encontramos a luz? Farei de ti literatura para que, agora que sabes, não te esqueças que já isso fizeram de ti. Tudo eu escreverei, nada contarei: a Rosa sempre na porta e a porta em mim, marcada nos meus braços. Já vi os teus dedos nos meus braços, vi-os com os olhos que vêem o que (ainda) não aconteceu. O medo? Eu tenho, tu sabes. Quando falámos, eu estava no cais e estava no medo porque estava a olhar para dentro, bem para dentro das pessoas que ali estavam, ao por-do-sol, ao cair da sombra da noite, ao levantar da cortina dos monstros e fantasmas desse palco do fundo delas; sentiste-o? Queres? Mas eu não te posso dar ou ensinar o que já tens. Escuta-o.

Sea World



Alexandre Affonso - nadaver.com

Olha que dois!



HenriCartoon

03 outubro 2010

O super Tiririca e a incrível Mulher-Melão


O folclore eleitoral brasileiro, a política mais colorida do mundo, pode muito bem vir a tornar-se no padrão da democracia do futuro, construída sobre as ruínas da credibilidade da classe política dita séria.
Dá gosto perceber na motivação dos candidatos a deputado federal o apelo da sociedade civil para contrariar com um sorriso o desgosto que os governantes de (quase) todo o planeta constituem para as populações que os aturam ou os elegem mas que, acima de tudo, os sustentam.
Como o título desta posta indica, de todas candidatas e candidatos cujos spots de campanha pudemos apreciar nas televisões portugas os meus preferidos são a dupla Tiririca/Mulher Melão. E se no primeiro aprecio sobretudo a espontaneidade devastadora de uma palhaçada assumida por contraponto à mal disfarçada que nos toca, no segundo (na segunda) os argumentos estão à vista. Já que temos que levar com tempos de antena e cartazes de rua e toda a parafernália habitual nas andanças eleitorais a figura da minha fruta preferida (sim, adoro melão) é refrescante para a vista e da validade da ideologia estamos conversados quanto à prática dos que simulam terem uma para nos impingir.
E a mulher melão até tem duas...
Restam-me poucas (ou nenhumas) dúvidas de que se o Ricardo Araújo Pereira se candidatasse a qualquer cargo político neste país ganhava mesmo sem o apoio de algum partido político. E quem diz o RAP diz a Fátima Lopes (a da TVI, ex-SIC) ou qualquer das figuras públicas mais próximas do coração dos portugueses fartos de votarem com a cabeça para os resultados à vista.
O Tiririca vai ser eleito deputado, tudo indica. Da Mulher Melão, a outra croma digna de uma Marvel Comics (mas na versão Vilhena), já não existem tantas certezas porque fruta daquela abunda no país irmão e porque será certamente penalizada pelo eleitorado feminino que estas coisas da... política suscitam sempre muitas invejas.
Claro que é fácil para mim, ou para qualquer dos ilustres analistas da blogosfera, da tv ou da cassete pirata, fazer a apologia da seriedade, do sentido de Estado, da necessidade de elegermos figuras respeitáveis (nem que seja para depois as etiquetarmos de vigaristas, incapazes, gays ou qualquer outro dos mimos com que desde Sá Carneiro - o alegado caloteiro - se rotulam todos os figurões tão sérios que vão protagonizando os cartazes de rua nas campanhas eleitorais).
Contudo, na ressaca do anúncio de mais uma machadada valente no optimismo acerca da recuperação económica que já soa como o próximo título do Sporting (é sempre pró ano), esgota-se um bocado a pachorra para os gajos sérios com fato e gravata ou mesmo sem esta última que têm contribuído de forma directa ou por omissão para o estado a que as coisas chegaram em termos de despesa pública (a tacharia das instituições inúteis e afins, por exemplo).
Com as coisas neste ponto, tanto no resultado prático do exercício das funções políticas como na tal credibilidade e dignidade e mais não sei o quê que os líderes devem manter (em teoria), a ideia que refiro acima de propormos um homem simples, do povo, como o nosso ex-colega Gato Fedorento, para termos pelo menos direito a uma campanha eleitoral bem humorada não soa assim tão disparatada.
E no fundo é como diz o Tiririca: pior do que está não fica.

Empedrados

Os caminhos, eu vejo-os nos teus olhos,
nos teus olhos molhados são lagos
com pedras. Se te quebras
parto e rasgo por todos os lados como os folhos
das saias de tempos antigos.
Tinham pregas, ainda te lembras?
E das horas que nos passaram como galhos
arrancados que foram abrigos,
como vértebras, como pálpebras?
Os caminhos, eu vejo-os nos teus olhos,
nos teus olhos abandonados são vagos.

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A Laura, como adora, ode:
"Nos teus olhos molhados
Os caminhos
são lagos!
Nos teus olhos abandonados
os caminhos
são vagos!
Mas no meu corpo cansado
tuas palavras são achas
atiradas sem piedade
à fogueira
onde arde esse tempo em que passas!"

«Inesperadamente» - por Rui Felício


Marília Noronha nessa noite quase não dormiu.
Tinha descoberto na pequena pasta do seu marido uma sensual “lingerie” vermelha acabada de comprar. Ainda pendia dela, até, a etiqueta da loja!
Era claro, para Marília, que essa seria a prenda que ele lhe iria oferecer no dia seguinte, data do seu 35º aniversário.
As coisas no casamento não andavam a correr muito bem, desde há muito. Por isso aquela prenda entusiasmou-a. Talvez fosse o sinal de que a relação entre ambos se viesse a normalizar.
De facto, o Felisberto Noronha, seu marido, era uma pessoa educada, meiga, nunca a tinha tratado mal.
Mas ela sentia que o amor já se tinha esvaído. Todos os pretextos eram bons para ele se desculpar e adiar para o dia seguinte, qualquer tentativa dela para fazerem amor.
Ela ainda gostava dele, apesar de tudo, mas achava que numa relação conjugal, ser boa pessoa, educado, meigo, carinhoso, não era tudo! Nem, porventura, seria o mais importante.
Entendia que a relação sexual era indispensável.
Mas apercebia-se que, em vez disso, o marido já quase não conseguia ocultar uma indisfarçada repugnância diante dos jogos de sedução e das carícias que ela lhe fazia, tentando os jogos preliminares e a consumação do acto de amor.
.........................
Porém, a descoberta daquela prenda escondida, que ele em segredo lhe tinha comprado deixou-a eufórica! A relação conjugal iria voltar a ser normal!
Manhã cedo, logo que ele foi para o trabalho, ela saiu de casa, foi ao cabeleireiro e esmerou-se em melhorar o seu visual. Cabelo, unhas, lábios, sobrancelhas, tudo foi retocado para o receber à noite o mais bonita possível.
Ao anoitecer, pôs a mesa, com duas velas acesas, uma garrafa de champanhe a gelar no “frappé”, o CD “My Way” de Frank Sinatra a girar baixinho, e a TV ligada, para ir olhando distraidamente as notícias enquanto esperava pelo marido.
Esperou e começou a enervar-se. O tempo passava e, como nos dias anteriores em que ele chegava a casa muito tarde, queixando-se de cansaço e de excesso de trabalho, o relógio corria e ele nunca mais aparecia para lhe dar os parabéns e oferecer-lhe a “lingerie” que ela bisbilhotara na sua pasta.
Subitamente a TV interrompeu a emissão para transmitir em directo um pavoroso incêndio que acabava de deflagrar na Fábrica Cosmos, Lda, a firma onde ele trabalhava...
Fixou os olhos, apurou os ouvidos, aumentou o som da televisão e reconheceu nas imagens o edifício fabril que ela tão bem conhecia.
Observava, aflita e tensa, a azáfama dos bombeiros empoleirados nas suas escadas “magirus” derramando jactos de água sobre as labaredas que iam consumindo a fábrica. Roía as unhas tão criteriosamente tratadas pela “manicure”, enquanto devorava as imagens terríficas do pequeno écran...
A repórter da TV de serviço no local informou que haviam sido localizadas duas pessoas com vida dentro do edifício, apanhadas desprevenidas pelo inesperado e repentino incêndio, que os bombeiros tentavam resgatar.
Minutos depois a locutora entrevistou o chefe dos bombeiros que sossegou os telespectadores, dizendo que as tais duas pessoas já estavam livres de perigo.
Certamente aterrorizadas pela morte iminente, aduziu o bombeiro, as vítimas foram encontradas fortemente abraçadas uma à outra.
Marília acalmou, quando o bombeiro as identificou. Uma delas era o seu marido e estava bem.
A câmara rodou e filmou as vítimas deitadas cada uma em sua maca para serem transportadas para o Hospital.
Uma das vítimas, vestia calções de cabedal com tachas prateadas e camisa de alças também em cabedal, donde pendiam grossas correntes metálicas. Um chicote negro ainda lhe pendia inerte da mão. Meio chamuscado...
O seu nome, Carlos da Silva.
A outra das duas vítimas, vestia uma delicada e sensual "lingerie" vermelha com folhos.
O seu nome, disse a repórter, era Felisberto Noronha...

Rui Felício
Blog «Encontro de Gerações do Bairro Norton de Matos»

Salvador Dalí - «Jaqueta afrodisíaca»

O Luís Pedro Nunes pergunta: "Porque ficámos banais?"