Cristino conheceu Mária de quem teve uma filha, Pedra, e um filho, Luciomar, que nasceu e foi registado no Brasil, durante uma viagem de Cristino à Bolívia. Mária ficou em Portugal mas, no decorrer da gravidez, conheceu Tereso, um baiano que morava em Chelas junto ao Pingo Doce e que vivia morrendo de saudades do Rio onde tinha sido calceteiro. Pedra ficou com uma meia-tia da parte da madrinha da mãe e Mária foi ao Brasil para ver o calcetão que Tereso dizia ter feito. Na Bolívia, Cristino apaixonou-se por Sérgia, uma algarvia que acompanhava com bolivianas da vida nas calles de La Paz. Cristino achou-lhe graça e emprenhou-a, ainda que a meio da tarde do dia seguinte, já sóbrio, não conseguisse perceber porquê. Tereso deixou uma flor estranha e com um odor ainda pior no quarto de Mária na Maternidade Municipal Fernando Magalhães onde nasceu Luciomar e partiu. Partiu quatro costelas, dois dos três ossos ilíacos do lado direito e perfurou a abóbada palatina com um lápis n.º 2 quando foi atropelado. Tereso já não tinha intenções de voltar, pois gostava de grávidas mas não de mães, e o estado de morto que lhe diagnosticaram à entrada do hospital impediu-o de qualquer recaída, por isso, Mária, nada grávida e duplamente mãe, nunca mais o viu, nem recuperou o lápis que lhe emprestara. Na manhã de denso nevoeiro em que Cristino chegou da Bolívia ainda Mária não tinha voltado do Brasil mas, duas semanas depois, quando saiu de uma casa de banho segura em Ranholas onde evacuou, entre graves crises de obstipação, toda a coca que trouxera, já Luciomar, Pedra e Mária estavam em casa à espera das notas do narcotráfico como se não fosse nada com eles. Eram felizes.
18 março 2011
Livro do avesso
Há um talho pequeno mas recomendaram-me que nada lá comprasse. Vou agora ali abaixo, vou tomar café, vou escrever a rua em vez de a percorrer com passos; já sinto nos pés as calçadas, estão tortas como as sinto nos dedos quando as deito às linhas. São de palavras, as ruas sussurram-me palavras, parecem folhas que caem, aos milhares, de árvores invisíveis, as pedras sussurram-me palavras; há mais palavras que voam e eu julgo que são as que caem do pensamento das pessoas; os pés de uma menina pequena, sem sapatos, contam-me que estão muito frios e eu queria tocar-lhes mas não posso, ninguém entenderia, estão na rua, na vida real e eu estou no mesmo exacto sítio, na mesma exacta rua, mas num livro que me parece uma vida muito mais real, pelo menos mais nítida porque está à luz do nexo; neste livro, pelo menos, eu posso tocar o frio dos outros sem que ninguém me ache tão estranha como eu acho estranhas as pessoas que não tocam nos frios e os talhos onde não se pode comprar carne. Mas não faz mal, ainda encontro nexo nos dois mundos quando coisas como jantar e almoço me fazem pensar em ti muito mais do que faria a emoção de uma paixão fulminante, sexo desenfreado em todos os cantos da casa, jogos de sedução, ou a pele quase histérica. Tudo isso eu já conheci e, se a carne e o desejo também aqui moram, é, contudo, nas coisas pequenas - no almoço, no jantar, no supermercado, no café, nos risos, no desabafo, no abraço, na mão que agarra com força, no calor que me emprestas, no cinto das calças que desaparece, nas bainhas por fazer, nas nódoas eternas na camisa bonita, nos olhos sonolentos de manhã, no próprio sono - que te reconheço forma e corpo muito para além desse corpo humano; é daí, dessa forma para além do corpo, que me vem, mais do que de qualquer outra coisa, o desejo de te despir em cada abraço; o desejo pelo teu corpo vem-me do teu corpo para além do corpo; é daí, apenas da tua existência, que me vem um sentimento único, imenso, novo, inigualável, este que é da gratidão mais profunda, mais feliz, mais cheia de todas: a que me faz acordar de manhã a agradecer-te, quase ofegante, à vida, quase com medo que a vida pense que eu possa ser mal agradecida e te leve como castigo de uma cegueira que eu não tenho; eu vejo-te cada instante.
17 março 2011
Brothers in arms
Fico sempre espantado com a quantidade de nomes que os coisos agarrados a nós inventam para nos designar. Fartam-se de desdenhar, até consideram um insulto mandarem-se para nós pilas, mas depois esforçam-se para nos baptizar a torto e a direito (nas pilas também funciona assim, não temos todas o mesmo ângulo relativamente ao coiso agarrado) como se fossemos o centro das suas atenções.
A sério que nunca vou entender a estranha relação entre os irmãos siameses que formamos, agarrados pela natureza e destinados a partilhar uma existência comum. Sim, eu sei que o coiso agarrado a mim (mesmo não estando constantemente oprimido dos pés à cabeça por horríveis peças de vestuário como eu) também possui os seus constrangimentos e restrições, as suas opressões sociais que tanto lhe infernizam a existência. E por isso o tolero e até acabo por brilhar quando ele precisa, pois sei que ele fica todo contente e vaidoso e para mim nem é frete algum.
Nós apêndices temos que ser uns prós outros...
quadrinhas inocentes, para purificar a crise
quanto eu daria amor meu
para ter uma cartola
e guardar nela de teu
quanto o amor me consola
e nalgum palco da vida
quando a vida nos diz não
tirar da cartola a vida
sob uma enorme ovação
e se saltasse um coelho
de onde vida se esperava
teria por bom conselho
ver o quanto esperneava
que o amor quer-se vivo
e a dar à perna com brio
nem tanto um amor furtivo
mais amor de desvario…
Sou fã das ilustrações do brasileiro Tiago Hoisel
Adolescente
Lobo Mal
Arte
Casa de banho
Geração Internet
Blog do Tiago Hoisel
16 março 2011
Mudança de hora - um postalinho do Katano
Até agora, a petição «Não à mudança de hora» tem (apenas) 135 assinaturas.
Será que de mais de 10 milhões de portugueses, só 134 pensam, como eu, que a mudança de hora não se justifica economicamente e, em termos de saúde e bem estar das pessoas, é prejudicial nos períodos após cada uma das duas mudanças de hora anuais?!
O Katano, homem de causas e estratega nas horas vagas, enviou-me este postalinho:
"Uma vez que se aproxima o dia em que mudamos para a hora de Verão, é uma excelente janela de oportunidade para divulgar a causa e angariar assinaturas para a petição, dando-lhe mais força.
Para maior alcance proponho:
1 - Que todos publiquem um artigo no seu(s) respectivo(s) blogue(s) com o mesmo título que deverá ser algo como "Mudança de hora", uma vez que muita gente irá procurar isso no Google durante a semana ANTES do 27/3. Em todos esses artigos, com mais ou menos texto, coloca-se um link "Não à mudança de hora" que direcciona para a petição. Com isto teremos o Google a ajudar a causa.
2 - Criar uma página e um evento no Facebook "Não à mudança de hora" e convidar todos os nossos amigos a aderir. Ao mesmo tempo, ir partilhando os conteúdos que forem sendo publicados nesse evento e/ou nessa página.
Alguém tem um vídeo ou um link para um artigo de saúde que fale nisso?
Beijoca na passaroca
Katano"
Toma aí um artigo sobre a saúde e a mudança de hora.
Página da Petição
E sabeis o que penso da mudança de hora? Sabeis, sabeis?
Será que de mais de 10 milhões de portugueses, só 134 pensam, como eu, que a mudança de hora não se justifica economicamente e, em termos de saúde e bem estar das pessoas, é prejudicial nos períodos após cada uma das duas mudanças de hora anuais?!
O Katano, homem de causas e estratega nas horas vagas, enviou-me este postalinho:
"Uma vez que se aproxima o dia em que mudamos para a hora de Verão, é uma excelente janela de oportunidade para divulgar a causa e angariar assinaturas para a petição, dando-lhe mais força.
Para maior alcance proponho:
1 - Que todos publiquem um artigo no seu(s) respectivo(s) blogue(s) com o mesmo título que deverá ser algo como "Mudança de hora", uma vez que muita gente irá procurar isso no Google durante a semana ANTES do 27/3. Em todos esses artigos, com mais ou menos texto, coloca-se um link "Não à mudança de hora" que direcciona para a petição. Com isto teremos o Google a ajudar a causa.
2 - Criar uma página e um evento no Facebook "Não à mudança de hora" e convidar todos os nossos amigos a aderir. Ao mesmo tempo, ir partilhando os conteúdos que forem sendo publicados nesse evento e/ou nessa página.
Alguém tem um vídeo ou um link para um artigo de saúde que fale nisso?
Beijoca na passaroca
Katano"
Toma aí um artigo sobre a saúde e a mudança de hora.
Página da Petição
E sabeis o que penso da mudança de hora? Sabeis, sabeis?
O julgamento
Perdera a noção do tempo desde que tinha sido arrastado durante a noite, a caminho do seu carro. Não tivera sequer tempo de abrir a porta quando nos vidros se desenhavam as sombras de quem vinha correndo por trás para o apanhar, encapuçar e arrastar, debatendo-se. Havia sido capturado em escassos segundos, atirado para dentro de um carro que não o seu e levado estrada fora sem conseguir sequer saber quem o tinha como refém. Não havia uma palavra, nenhum som que denunciasse os autores, apenas uma sensação estranha de uma força macia. Uma força que não conseguira contrariar, mas músculos que não eram de todo de betão, gestos que não eram brutos. Apenas firmes, e sobretudo muito determinados.
Perdera a noção do tempo dentro daquele quadrado. Estimava que não seriam mais do que dois metros de lado, com uma porta e um estreito beliche. Parecia-lhe mais um quarto de arrumos do que uma cela. Quando a porta se abriu, entraram vultos de rompante, todos de negro, que se precipitaram sobre ele e o vendaram, e depois arrastaram de novo para uma cadeira à qual prenderam. Era inútil debater-se. Se os músculos continuavam a não ser de betão, se os gestos não eram brutos, eram de qualquer modo numerosos, e pela simples matemática sabia que nada havia a conseguir-se em lutar contra aquilo. Se alguma oportunidade surgisse, agarrá-la-ia. Mas naquele cenário era melhor manter-se quieto, e tentar descobrir o que estava a acontecer-lhe. Se várias horas ou já mais do que um dia, não sabia dizer. Não tinha tido luz que lhe dissesse como tinha o Sol corrido desde a sua captura, e da chegada ao pequeno quarto escuro não se lembrava. Teria sido forçado a um sono profundo de uma qualquer forma, mas nem isso habitava as suas memórias recentes.
O corredor devia ser longo, embora com muitas esquinas, porque a cadeira onde o tinham amarrado era empurrada há já alguns minutos, e tinham ido contra as paredes algumas vezes. Estava convencido de que apenas para o castigar, a não ser que o corredor fosse tão estreito que não se conseguisse fazer uma curva sem embater nos rodapés. Mas se assim era, empurravam-no sem doçura, nem para ele nem para os rodapés. Podia ser, talvez, um canal para a fúria. Deixar no material as marcas que (ainda?) não tinham deixado nele. Finalmente detiveram-se. Ouviu o rodar de uma chave e o chiar de uma porta a abrir-se. Com isso veio outro som, o de gente a agitar-se em cadeiras, a densidade do ar parecia outra, como se tivesse vindo de um espaço profundo para um outro onde o ar circulava. Foi empurrado de novo, vendado, numa distância que lhe pareceu bastante mais curta. Notou que lhe travaram a cadeira porque lhe parecia bastante fixa, já não oscilava. O ruído que tinha escutado cessara. O silêncio era quase dominador, sobrando apenas o barulho de alguém que se afastava e era, claramente, uma mulher. Só podia ser uma mulher, porque aquele som era o de saltos que se moviam sobre madeira. Mas não tinha ouvido saltos em momento algum, só podia ser alguém que já ali estava no local onde a cadeira seria imobilizada. Distinguiu claramente esses passos a descer, ou a subir, um pequeno lanço de escadas. Nota-se bem, porque o som ecoa mais. Tinha ficado alguém perto dele, imóvel, porque sentiu uma mão tocar-lhe a nuca e puxar o laço que fixava a venda, que caiu sobre o colo. No escuro há muito tempo, sabia lá ele quanto, custou-lhe recuperar uma visão precisa do espaço à sua volta. Cerrou os olhos incomodado pela luz e foi, lentamente, tentando mantê-los abertos, crescendo nele o assombro à medida que completava a imagem perante a qual estava presente.
Agora que podia ver, tentava entender. Estava sentado, preso a uma cadeira de rodas para conveniência dos seus captores, exactamente no centro de um grande palco de um anfiteatro. À frente dele, os seus captores. Os prováveis autores morais da sua captura. E podia agora precisar. As captoras. Todo o anfiteatro estava ocupado por mulheres. Mulheres que ele tinha conhecido e de quem tinha sido amigo, todas aquelas a quem tinha em algum momento feito algum tipo de elogio ou dirigido um cumprimento, todas as que o tinham lido, naqueles seus farrapos de escrita, todas as que tinham sido fotografadas por ele, todas as que tinham visto as suas fotografias como meras espectadoras, todas as que o tinham ouvido falar. Apinhavam-se em lugares que pareciam poucos para tantas mulheres. Como podiam ser tantas assim? Não tinha ideia. Não podia ter ideia do número. Era assombroso.
Uma delas, talvez aquela que tinha caminhado de saltos sobre a madeira, momentos antes, estava em pé, junto a uma coxia, e iniciou as hostilidades. Disse o nome dele, que não reproduzimos, e declarou-lhe algo como “estás aqui para ser julgado. Para ouvires todos os crimes de que te acusamos. Todas nós te diremos o que nos fizeste, e no final conhecerás a tua pena”. Era de ficar assustado. E ficou. Uma a uma foram tomando a palavra e descrevendo aquilo que, para elas, eram crimes pelos quais precisava pagar. “Por todas as vezes em que me disseste que estava sexy e não me tocaste, não te chegaste a mim e não respiraste junto ao meu ouvido”. “Certa altura vesti, de propósito, meias pretas opacas para ti, com um vestido de morte, e tu não mo subiste, não passaste as tuas mãos pelas minhas pernas, não me arrancaste as meias nem me fodeste ali mesmo, apesar de estarmos sozinhos”. “Como foste capaz de tocar-me as costas, quando nos aproximavamos para um beijo de cumprimento, e não perceber que sempre que o fazias eu me chegava mais perto e que tremia com o teu toque?”. “Como foste tão estúpido ao ponto de não perceber que quando eu me despia para ti, quando abria as minhas pernas para veres melhor, era um convite a que me penetrasses, depressa e em força?”.
Foram horas a ouvir acusações. Estas e outras. Algumas muito parecidas com as anteriores, outras muito díspares. O incómodo era crescente. A primeira a falar tomou, de novo, a palavra. O rol de acusações parecia estar terminado. A primeira a falar disse, então: “Acusamos-te! Consideramos-te culpado de nos teres feito sentir mulheres. És culpado de ter cativado as nossas atenções, de teres entrado nos nossos quartos escuros. És culpado de ter tocado os nossos corpos e ter arrepiado as nossas peles. És culpado pelo humedecimento inconsequente das nossas genitálias. Culpamos-te pelos arrepios na nuca, pelos arrepios nas raízes dos cabelos, pelas despesas que fizemos em roupa para te atraír. Culpamos-te pelas massagens que nos fizeste sem ir mais longe, quando em nós tudo era já fantasia. Culpamos-te por nunca nos teres fodido, deixando-nos fodidas por não nos foderes. Culpamos-te por tudo isto e por todas as outras coisas que não ousamos sequer admitir. És culpado. E não tens direito a apelo. Como pena, expulsamos-te dos espaços onde entraste”.
Fez-se silêncio. Sepulcral. Assustador. E não aconteceu nada. Deixaram-no sentado, amarrado a uma cadeira com fita adesiva nos punhos e nos tornozelos, enquanto deixavam vagos os seus lugares no anfiteatro. A pena era, afinal, esta. A de conhecer os seus crimes e ser ignorado a seguir. O degredo.
Lágrimas Alheias II
Será um simples abraço suficiente para amaciar a contundência daquilo que tens por dor, que semi-encerra o discernimento e a felicidade que te habituaste a viver?
A escolha de percorrer o nosso próprio trilho, decididamente não olvida a observação que, com auxílio, possa ser feita ao espaço que circunda as nossas vidas.
Recorda (como me habituaste a recordar) que a sinuosidade de um caminho é imediatamente subvertida pela presença de quem - mão na mão - o percorre connosco.
Poderá haver algo mais, uma palavra ou uma acção que agidas no âmago, dêem calor.
Dar-tas-ei sempre...
A escolha de percorrer o nosso próprio trilho, decididamente não olvida a observação que, com auxílio, possa ser feita ao espaço que circunda as nossas vidas.
Recorda (como me habituaste a recordar) que a sinuosidade de um caminho é imediatamente subvertida pela presença de quem - mão na mão - o percorre connosco.
Poderá haver algo mais, uma palavra ou uma acção que agidas no âmago, dêem calor.
Dar-tas-ei sempre...
Shooting Well #2
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