16 março 2011

O julgamento


Perdera a noção do tempo desde que tinha sido arrastado durante a noite, a caminho do seu carro. Não tivera sequer tempo de abrir a porta quando nos vidros se desenhavam as sombras de quem vinha correndo por trás para o apanhar, encapuçar e arrastar, debatendo-se. Havia sido capturado em escassos segundos, atirado para dentro de um carro que não o seu e levado estrada fora sem conseguir sequer saber quem o tinha como refém. Não havia uma palavra, nenhum som que denunciasse os autores, apenas uma sensação estranha de uma força macia. Uma força que não conseguira contrariar, mas músculos que não eram de todo de betão, gestos que não eram brutos. Apenas firmes, e sobretudo muito determinados.
Perdera a noção do tempo dentro daquele quadrado. Estimava que não seriam mais do que dois metros de lado, com uma porta e um estreito beliche. Parecia-lhe mais um quarto de arrumos do que uma cela. Quando a porta se abriu, entraram vultos de rompante, todos de negro, que se precipitaram sobre ele e o vendaram, e depois arrastaram de novo para uma cadeira à qual prenderam. Era inútil debater-se. Se os músculos continuavam a não ser de betão, se os gestos não eram brutos, eram de qualquer modo numerosos, e pela simples matemática sabia que nada havia a conseguir-se em lutar contra aquilo. Se alguma oportunidade surgisse, agarrá-la-ia. Mas naquele cenário era melhor manter-se quieto, e tentar descobrir o que estava a acontecer-lhe. Se várias horas ou já mais do que um dia, não sabia dizer. Não tinha tido luz que lhe dissesse como tinha o Sol corrido desde a sua captura, e da chegada ao pequeno quarto escuro não se lembrava. Teria sido forçado a um sono profundo de uma qualquer forma, mas nem isso habitava as suas memórias recentes.
O corredor devia ser longo, embora com muitas esquinas, porque a cadeira onde o tinham amarrado era empurrada há já alguns minutos, e tinham ido contra as paredes algumas vezes. Estava convencido de que apenas para o castigar, a não ser que o corredor fosse tão estreito que não se conseguisse fazer uma curva sem embater nos rodapés. Mas se assim era, empurravam-no sem doçura, nem para ele nem para os rodapés. Podia ser, talvez, um canal para a fúria. Deixar no material as marcas que (ainda?) não tinham deixado nele. Finalmente detiveram-se. Ouviu o rodar de uma chave e o chiar de uma porta a abrir-se. Com isso veio outro som, o de gente a agitar-se em cadeiras, a densidade do ar parecia outra, como se tivesse vindo de um espaço profundo para um outro onde o ar circulava. Foi empurrado de novo, vendado, numa distância que lhe pareceu bastante mais curta. Notou que lhe travaram a cadeira porque lhe parecia bastante fixa, já não oscilava. O ruído que tinha escutado cessara. O silêncio era quase dominador, sobrando apenas o barulho de alguém que se afastava e era, claramente, uma mulher. Só podia ser uma mulher, porque aquele som era o de saltos que se moviam sobre madeira. Mas não tinha ouvido saltos em momento algum, só podia ser alguém que já ali estava no local onde a cadeira seria imobilizada. Distinguiu claramente esses passos a descer, ou a subir, um pequeno lanço de escadas. Nota-se bem, porque o som ecoa mais. Tinha ficado alguém perto dele, imóvel, porque sentiu uma mão tocar-lhe a nuca e puxar o laço que fixava a venda, que caiu sobre o colo. No escuro há muito tempo, sabia lá ele quanto, custou-lhe recuperar uma visão precisa do espaço à sua volta. Cerrou os olhos incomodado pela luz e foi, lentamente, tentando mantê-los abertos, crescendo nele o assombro à medida que completava a imagem perante a qual estava presente.
Agora que podia ver, tentava entender. Estava sentado, preso a uma cadeira de rodas para conveniência dos seus captores, exactamente no centro de um grande palco de um anfiteatro. À frente dele, os seus captores. Os prováveis autores morais da sua captura. E podia agora precisar. As captoras. Todo o anfiteatro estava ocupado por mulheres. Mulheres que ele tinha conhecido e de quem tinha sido amigo, todas aquelas a quem tinha em algum momento feito algum tipo de elogio ou dirigido um cumprimento, todas as que o tinham lido, naqueles seus farrapos de escrita, todas as que tinham sido fotografadas por ele, todas as que tinham visto as suas fotografias como meras espectadoras, todas as que o tinham ouvido falar. Apinhavam-se em lugares que pareciam poucos para tantas mulheres. Como podiam ser tantas assim? Não tinha ideia. Não podia ter ideia do número. Era assombroso.
Uma delas, talvez aquela que tinha caminhado de saltos sobre a madeira, momentos antes, estava em pé, junto a uma coxia, e iniciou as hostilidades. Disse o nome dele, que não reproduzimos, e declarou-lhe algo como “estás aqui para ser julgado. Para ouvires todos os crimes de que te acusamos. Todas nós te diremos o que nos fizeste, e no final conhecerás a tua pena”. Era de ficar assustado. E ficou. Uma a uma foram tomando a palavra e descrevendo aquilo que, para elas, eram crimes pelos quais precisava pagar. “Por todas as vezes em que me disseste que estava sexy e não me tocaste, não te chegaste a mim e não respiraste junto ao meu ouvido”. “Certa altura vesti, de propósito, meias pretas opacas para ti, com um vestido de morte, e tu não mo subiste, não passaste as tuas mãos pelas minhas pernas, não me arrancaste as meias nem me fodeste ali mesmo, apesar de estarmos sozinhos”. “Como foste capaz de tocar-me as costas, quando nos aproximavamos para um beijo de cumprimento, e não perceber que sempre que o fazias eu me chegava mais perto e que tremia com o teu toque?”. “Como foste tão estúpido ao ponto de não perceber que quando eu me despia para ti, quando abria as minhas pernas para veres melhor, era um convite a que me penetrasses, depressa e em força?”.
Foram horas a ouvir acusações. Estas e outras. Algumas muito parecidas com as anteriores, outras muito díspares. O incómodo era crescente. A primeira a falar tomou, de novo, a palavra. O rol de acusações parecia estar terminado. A primeira a falar disse, então: “Acusamos-te! Consideramos-te culpado de nos teres feito sentir mulheres. És culpado de ter cativado as nossas atenções, de teres entrado nos nossos quartos escuros. És culpado de ter tocado os nossos corpos e ter arrepiado as nossas peles. És culpado pelo humedecimento inconsequente das nossas genitálias. Culpamos-te pelos arrepios na nuca, pelos arrepios nas raízes dos cabelos, pelas despesas que fizemos em roupa para te atraír. Culpamos-te pelas massagens que nos fizeste sem ir mais longe, quando em nós tudo era já fantasia. Culpamos-te por nunca nos teres fodido, deixando-nos fodidas por não nos foderes. Culpamos-te por tudo isto e por todas as outras coisas que não ousamos sequer admitir. És culpado. E não tens direito a apelo. Como pena, expulsamos-te dos espaços onde entraste”.
Fez-se silêncio. Sepulcral. Assustador. E não aconteceu nada. Deixaram-no sentado, amarrado a uma cadeira com fita adesiva nos punhos e nos tornozelos, enquanto deixavam vagos os seus lugares no anfiteatro. A pena era, afinal, esta. A de conhecer os seus crimes e ser ignorado a seguir. O degredo.

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