20 novembro 2013

«Haja o que houver» - João

"As pessoas que se amam têm a capacidade de se magoar profundamente. É triste isso, mas não é difícil de se entender. Só nos magoamos com as pessoas que nos interessam. Um estranho não me magoará, porque eu não o valorizo, não o deixei entrar no meu espaço, e tudo quanto me diga será deflectido. Não fica cá dentro. Mas as pessoas que amamos deixam-nos mais vulneráveis. Somos sensíveis a quem amamos. Damos importância ao que nos dizem. Criamos expectativas. Queremos, de quem amamos, o amor de volta. E quando nos atiram facas, ficamos a sangrar muito. É triste isso, mas é fácil entender.
Quem na vida me amou já me magoou muito. Quem na vida eu amei, já magoei muito. Já se trocaram frases duras, que eu acredito que não eram honestas. As minhas eu sei que não eram. O amor não é tristeza nem amargura. O amor, quando cria tristeza ou amargura, é por isso, é porque sentimos mais as pedras no caminho, é porque nos abrimos para receber alguém e o peito fica à vista das balas.
Há pessoas que se amam muito. Há pessoas que sentem juntas aquilo que jamais sentiram com outras pessoas. E mesmo assim conseguem magoar-se. E não creio que se amem menos por causa disso. Não creio que sejam menos, juntas, por causa disso. Quanto mais se ama, maior a frustração do que não se tenha. Dos insucessos, das hesitações. E essa frustração gera frases horríveis. Ideias terríveis. Coisas que ferem muito.
Mas só o amor vale a pena. O ódio é feio. Destrutivo. Transforma as pessoas doces em gente amarga. É um desperdício de tempo. Eu prefiro amar. Calado. Invisível. Sangrando devagarinho até as frases horríveis perderem a força, e oferecendo um abraço que está sempre, sempre pronto, receber o amor nos braços e dizer que não mudou nada, tenha sido dito o que tiver. Haja o que houver."

João
Geografia das Curvas

«Envolvências» - exposição de escultura de Santos Carvalho

"O Erotismo e a espiritualidade urgem na minha escultura como uma relação Amor-Ódio.
O desbravar dos Materiais intensifica a paixão pela forma, que se vai tornando íntima e solitária.
A minha obra é uma metamorfose: que nasce, vive e morre em mim e renasce quando entra na alma de quem a observa"

Sou fã das esculturas do Santos Carvalho, mesmo tendo tido acesso às suas obras, até agora, somente em fotografia.
Mas finalmente tive oportunidade de ver alguma da sua arte ao vivo. E para uma lésbica como eu, esta exposição é um ramalhete de miminhos. Vai estar exposta até 28 de Novembro no ISCAC (Coimbra Business School), junto à Escola Agrária, em Bencanta, Coimbra.


Como é possível alguém concentrar-se a estudar contabilidade...


... com uma beleza destas do lado de lá (deles) do vidro?!


Nos meus tempos de estudante, eu não me lembro de ver nada disto quando ia ver as pautas dos exames!


Eu chamaria a esta peça «fada de Coimbra»:









«pensamentos catatónicos (298)» - bagaço amarelo

Estou na piscina dum empreendimento turístico no Algarve. Ao meu lado direito deita-se uma mulher inglesa, que sei que é de Manchester porque já a conheci, para apanhar Sol. Está assim há vários dias, como se o Sol acabasse amanhã, e varia apenas entre duas posições: ora de costas, ora de barriga para cima. Normalmente está sozinha porque o marido dela, um homem um pouco mais velho do que eu, raramente sai do apartamento. Quando sai, é para lhe dar um beijo e desaparecer de novo.
Depois dela, uma irlandesa faz mais ou menos ou mesmo. Passa os dias a ler e a apanhar Sol, com a singularidade que o faz sempre em pé. Nunca a vi deitada. É capaz de estar horas seguidas na vertical. Deve ter cerca de cinquenta anos de idade e já a ouvi várias vezes a dizer ao marido para deixar em paz.

- Leave me alone! - diz quando ele a chama por qualquer motivo.

À minha esquerda está um casal mais novo, dum país qualquer do leste. Ou russo ou ucraniano, acho eu. Ela é extremamente bonita e podia ser modelo. Passa os dias a ler deitada, de vez em quando protegida pela sombra dum guarda-sol. Pontilha os seus dias com um mergulho naquela sopa de cloro que está à minha frente e, quando o faz, o marido, que está sempre ao lado dela em silêncio, imita-a e mergulha também.
Por qualquer motivo, parece-me sempre que os homens são uma espécie de satélites das mulheres. Elas apanham Sol, eles esvoaçam à sua volta como moscas tontas.
É o meu caso.Sempre foi.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

A única utilidade do Google Glass

esperando pra comprar o meu.



Parece que essa gripe é contagiosa e tal.

Capinaremos.com

19 novembro 2013

A gente queixa-se do acordo ortográfico mas antes também a língua já era traiçoeira

Verga 
que 
verga 
não é 
verga!

São Rosas

A FODA COMO ELA É (V) - Golo do Benfica

Diz-se vulgarmente que o futebol é causa frequente de agruras para o enlevo conjugal, uma paixão que se manifesta de mão dada com o avançar da monotonia nas relações, etc. Não foi assim com este casal, cuja aventura me foi narrada por um amigo em comum.
Estavam ambos sentados no sofá da sala, diante da televisão, cumprindo a medíocre liturgia dos seus serões de Sábado. Ela passava o tempo lendo uma dessas revistas para a dona-de-casa badalhoca, célebre pelo correio dos leitores, em que pontificavam questões de grossa metafísica, tais como a possibilidade de se engravidar pelo cu. Ele assistia a um entediante Campomaiorense-Benfica, usando de uma paciência beneditina, sem qualquer interesse, não obstante ser benfiquista até debaixo de água. O marasmo espessava a atmosfera sobreaquecida da sala em que os dois vegetavam. Sem prelúdios de oratória, trejeitos físicos, nem desviando a vista da televisão, o fulano atirou casualmente: -"Vamos foder?" Em resposta recebeu um encolher de ombros, um descer de calça de fato de treino Quechua, um ás-de-copas oferecido e uma mão que desviava a cueca para o lado. Era sempre assim: entre eles, os preliminares tinham o encanto de uma repartição de finanças de província perto da hora do fecho. Montou-se o manfio na cachopa e deu início ao costumeiro martelanço, sem tirar os olhos do jogo de futebol. Juram-me que se ouviu um bocejo entre o slop! slop! de carnes. Mas eis que as papoilas saltitantes se agitaram e o Benfica marca um golo. No mesmo instante, o moço - tolo de alegria, a atenção colada ao ecrã com Araldite - retirou o malho da suave gruta e, fazendo o movimento de regresso segundo um ângulo errado, empalou com o caralho o esfíncter à cônjunge, a sangue-frio, enquanto gritava: -"Golo do Benfica!"
Não me contaram os instantes seguintes a tão bárbara invasão aos domínios do rego, mas sabe-se que as colegas de trabalho da menina, lá no call-center, estranharam que nessa segunda-feira ela se sentasse com mil cautelas e ostentasse um constante, misterioso, deliciado sorriso...

«Caminhos» - Susana Duarte

____seguirei sempre as ondas dos teus cílios____

escrevo-te a partir da noite, onde os olhos marejam
cerejas bravas, aquelas que engoli quando partiste.

escrevo-te a partir das sombras onde os cabelos gotejam
lágrimas de sol e de sal e de noite e de feitiços,
e as pálpebras refletiram as coisas todas que viste,
e eu vi; e eu, vi-as em ti: os dias da rubra
penumbra dos leitos dos amantes, ágape
dos corpos, antes que a solidão os cubra.

escrevo-te a partir da noite, onde feiticeiras volteiam
e dançam, como papoilas celebradas, renascidas,
rubras como os lábios, que me deixaste sós, ventre
desmaiado sobre a praia, onde os rumos das aves
são rotas por nascer. desmaio em traves ladeirentas,
que não consigo subir, por entre olhares sonhados:
e eu vi todas as coisas em ti- os dias da amora rubra
voltam a mim como sonho que se demora. ocupas-me

____os dias em que te escrevo, e as noites em que te sinto. ocupas tudo o que sei. como um rio que transborda. como uma maré que seguirei, como as ondas dos teus cílios.____



Susana Duarte
Foto de Ivano Cetta
Blog Terra de Encanto

«Eglise de Brou - la correction maritale»

A correcção marital.
Reprodução, num pequeno prato em estanho com 9,5 cm de diâmetro, de um casal no topo de uma coluna da igreja de Brou, em Bourg-en-Bresse (França).




18 novembro 2013

Em Glasgow sabem fazer fogo de artifício!

«coisas que fascinam (162)» - bagaço amarelo

A memória mais forte que tenho dela é o toque dos seus dedos. Foi com ela que aprendi que a compatibilidade entre duas pessoas pode ser o toque, muito mais do que a voz, a semântica ou o cheiro. Ou melhor, os toques todos. Aqueles que acontecem quando se dá a mão na fila do supermercado e se discute o preço dos chocolates, mas também os outros, que nascem e morrem no segredo duma cama.
Por causa desses toques, caminhámos em silêncio durante uma parte importante da nossa vida, unidos pelos dedos. Uma vez parámos num pequeno café em Espanha, a caminho de lugar nenhum. Lembro-me das ruas desertas, do calor intenso e do estranho sabor agridoce na boca, logo pela manhã. Era ali que eu tinha prometido levá-la, para a devolver a casa depois daquele tempo que decidimos ser o nosso. Deu-me um abraço, estendeu-me a palma da mão esquerda no ar e colou a dela à minha. Ao afastá-la, brincámos com as pontas dos nossos dedos, como se todos os toques estivessem ali guardados.
Acho que ainda estão. Eu, pelo menos, ainda os sinto.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

Luís Gaspar lê «Os noivos» de autor desconhecido

O noivo escreveu um poema para a noiva pouco antes do casamento:

Que feliz sou, meu amor!
Domingo estaremos casados,
O café da manhã na cama,
Um bom sumo e pães torrados

Com ovos bem mexidinhos
Antes de ir p’ ró trabalho
Tudo pronto bem cedinho
P’ra inda ires ao mercado

Depois regressas a casa
Rapidinho arrumas tudo
E corres pro teu trabalho
Para começares o teu turno

Tu sabes bem que, de noite
Gosto de jantar bem cedo
De te ver toda bonita
Com sorriso ledo e quedo

Pela noite mini-séries
Cineminhas dos baratos
E nada, nada de shoppings
Nem de restaurantes caros

E vais cozinhar p’ra mim
Comidinhas bem caseiras
Pois não sou dessas pessoas
Que só comem baboseiras…

Já pensaste minha querida
Que dias gloriosos?
Não te esqueças, meu amor
Qu’em breve seremos esposos!

Como resposta, a noiva escreveu um poema para o noivo:

Que sincero meu amor!
Que linguagem bem usada!
Esperas tanto de mim
Que me sinto intimidada

Não sei de ovos mexidos
Como tua mãe adorada,
Meu pão torrado se queima
De cozinha não sei nada!

Gosto muito de dormir
Até tarde, relaxada
Ir ao shopping fazer compras
de Visa, tarjeta dourada

Sair com minhas amigas,
Comprar roupa da melhor
Sapatos só exclusivos
E as lingeries p’ró amor

Pensa bem… ainda há tempo
A igreja não está paga
Eu devolvo o meu vestido
E tu o fato de gala

E domingo bem cedinho
Em vez de andar aos “AIS”,
Ponho aviso no jornal
Com letras bem garrafais:

Homem jovem e bonito
Procura escrava bem lerda
Porque a ex-futura esposa
Decidiu mandá-lo à merda!

Ouçam este poema na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

Sempre juntos

Sempre, mesmo.



Pô gente, a saudade melhora o relacionamento.

Capinaremos.com

17 novembro 2013

«Rumo ao futuro» - por Rui Felício


No meu gabinete de trabalho, há uma cadeira destinada a quem me vem consultar.
É confortável, pode ser manobrada para baixo, para cima, para os lados, é reclinável e está rodeada de variados instrumentos eléctricos. Parece uma cadeira de dentista, mas não é.
Ontem, uma cliente entrou, sentou-se e, depois de nos cumprimentarmos, perguntei-lhe ao que vinha.
Desencaixou a máscara, uma espécie de capacete semelhante a um grande ovo de cor creme e depositou-a em cima da minha secretária.
Pediu-me que lhe avivasse as sobrancelhas, lhe rosasse as faces, lhe repuxasse as pálpebras e lhe arrebitasse um pouco o nariz.
Agora, despojado da sua máscara craniana, o cérebro da minha cliente ficara à vista, esponjoso, ondulado, composto por aleatórios refegos sobrepostos.
Enquanto eu retocava a máscara craniana como me pedira, ia olhando constrangido, de vez em quando, para o seu cérebro nu ali ao alcance das minhas mãos, provocador...
Reparei nalguns neurónios soltos, desligados e perguntei à cliente se não queria que os soldasse.
Respondeu-me que sim e, já agora, que podia aproveitar para limpar o pó que devia estar a bloquear-lhe alguns dos circuitos cerebrais.
Deixei cair dois microscópicos pingos de solda nos neurónios afectados e testei a passagem dos impulsos eléctricos.
Liguei a pequena escova adjacente à cadeira e, delicadamente, fui limpando as poeiras entranhadas nos mais pequenos interstícios, aconselhando a cliente a não tirar a máscara muitas vezes, porque assim desprotegia o cérebro, sujeitando-o à sujidade ambiente
Devo-me ter descuidado ao fazer a limpeza do hipotálamo porque a minha cliente, de súbito, foi inundada de calores, abraçou-se a mim e incitou-me a fazer amor com ela.
Acordei hoje de manhã, confuso, com este sonho ainda bem presente.
Retive que tudo se passou na minha outra vida futura, no ano de 3152.
A minha profissão era (será) a de técnico neurológico.

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
Blog Escrito e Lido