20 novembro 2016

«Raspas de sono» - João

"Detiveram-se estacionados um bom tempo, de mãos nas mãos e dedos curiosos, a pensar entre eles quanto tempo era preciso para se fecharem dentro de casa. De quanto tempo precisavam para se foderem até à medula espinal e depois conseguirem ir trabalhar como seres humanos funcionais, capazes de o fazer depois de uma noite bem dormida. As promessas quebravam-se sempre. Hoje vamos dormir, mas depois não, bastava um milímetro de pele na pele ou um aconchego de corpos quentes e quando davam por isso já nem estavam a tentar resistir, estavam num completo estado de abandono, fodendo-se sem espaço nem tempo, essas coisas da física que interessam muito pouco a quem se quer muito. De quanto tempo precisavam afinal. Barricar-se-iam em casa, desligariam os telefones, deixariam encher a caixa do correio. Um mês, talvez. Pensaram que ao fim de um mês a fundir-se entre foda, amor e paixão haviam de conseguir dormir juntos sem se tocarem muito, e de sair normalmente em direcção ao emprego de cada um, fazendo as suas coisas sem pensar em sair a correr para foder o que não se fodera de manhã. Mas a carne é fraca. E um mês talvez fosse demasiado tempo sem conseguir ao menos comprar algo no supermercado. Deixar o corpo comer algo mais que o corpo do outro. Quinze dias. Ficavam assim, a meio, em quinze dias de pós-laboral. Concordaram que ao final de quinze dias abririam as janelas só para deixar o ar limpar. E talvez chegasse. Talvez fosse suficiente. Talvez ao décimo-sexto dia conseguissem finalmente dormir uma noite inteira e passar um dia completo sem calores e suores. E a roupa. A roupa. Lavar a roupa era preciso. Quinze dias de foda naquela casa, sem parede, bancada ou ombreira que ficasse por tocar. O tempo era trabalho, estrada, foda e raspas de sono. E sem roupa não se podia sair mais dali. E o tempo passaria a ser só foda e raspas de sono. E fumo venenoso a pairar, só para disfarçar o cheiro que a ninguém deixaria dúvidas da loucura que ali se vivia. Já só havia camisas dele e pouca coisa dela, a máquina a centrifugar, a vibrar, o programa a encher, rodar e esvaziar, e as janelas abertas, o tabaco a disfarçar, tímido, o fedor a foda, e ao décimo-sexto dia o sono continuava em raspas. Afinal, se tivessem sido espertos, tinham logo escolhido um mês inteiro. Só para ter a certeza."
João
Geografia das Curvas