27 novembro 2016

«Você é linda!» - bagaço amarelo

Estava na cozinha a abrir uma lata de tomate aos pedaços, daquelas mais baratas, quando o telemóvel tocou. Tu não sabes, mas há vários meses que me lembro de ti sempre que ele toca. Cada vez que o ouço, corro para ele na esperança de ver o teu nome no ecrã e preparo-me para te dizer "olá" com a voz mais natural possível.
Mais uma vez não eras tu e acabei, como é costume, por dizer "olá" num tom decepcionado. Prendi o telemóvel entre o ombro e a orelha para libertar as mãos e poder continuar a cozinhar. Despejei os pedaços de tomate para o wook, juntei dois dentes de alho esmagados, um fio de azeite e uma malagueta. Depois acendi o lume e encostei-me a uma das paredes da cozinha a ouvir a minha interlocutora.
Uma vez perguntaste-me se havia alguma música que me lembrasse de ti e eu respondi-te que sim. Aconselhaste-me a configurar o telemóvel para tocá-la sempre que fosses tu a ligar-me. Deixa-me dizer-te que ainda bem que nunca o fiz. Assim, agora ganho uma vã esperança de seres tu mesmo quando não és. São alguns segundos em que a minha vida volta a ganhar cor. E sabem-me bem, esses segundos. Obrigado por seres uma música.
Não sei se já te aconteceu não conseguir ouvir uma pessoa por estares a pensar noutra. A mim acontece-me frequentemente por estar a pensar em ti e admito que perdi, muito provavelmente, mais de metade do telefonema. Ainda assim, nesse pântano sonoro em que me encontrava, uma frase ficou-me gravada na memória como se fosse uma tatuagem definitiva.

- Não era bem contigo que queria falar, mas ele não me atende o telefone e eu preciso desabafar...

Não percebi logo o contexto em que ela me disse aquilo, mas foi como se me despertasse do hipnotismo em que estava por ter saudades tuas. Talvez, não sendo tu a telefonar-me, eu possa aproveitar a voz de outra pessoa qualquer, mesmo que seja de alguém que me chama apenas para desabafar. É como se nós pudéssemos emprestar um bocadinho do que somos a quem não quer tudo mas, de facto, um bocadinho dá jeito naquele momento.

- O que é que estás a fazer? - perguntou.
- A pôr dois ovos a escalfar em tomate frito. Se quiseres ponho quatro e vens cá jantar...

Um quarto de hora depois ouvi-a tocar à campainha. Já eu tinha a mesa posta com dois pratos, uma garrafa de vinho branco e uma música a passar no antigo sistema midi que ainda tenho na sala. "Você é Linda" do Caetano.




bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»