Com um finar de martelo culminou a sentença que, em voz monocórdica e olhando para ele como se fosse transparente, ditara. As últimas frases, ou melhor, os últimos parágrafos haviam-lhe soado em surdina, de tal forma o desfecho previsível e desfavorável se ia compondo como resultado do julgamento onde todas as testemunhas, uma após outra, tinham colaborado para o desmontar do seu argumento de defesa. Um leve burburinho elevou-se discretamente na sala enquanto os papéis se guardavam nas pastas e vozes imperceptíveis se trocavam entre os agentes de justiça.
Rodando o corpo para trás, de forma a ficar bem de frente para cada uma delas, fitou as testemunhas, uma após outra. Em vão procurou os seus olhares que preventivamente se distraíam pela sala, chão, tecto, adereços e outros olhares, evitando de forma ostensiva o seu.
Agora que o momento passara, distendendo a tensão, com alívio para uns mas com a morte na alma para ele, via nitidamente em cada um dos rostos a personificação dos sete pecados capitais.
A gula, pensou ele, ao olhar para um dos que, sabendo a verdade, tinham alterado os factos de forma a comprometê-lo. Fácil de comprar, pensou: bastaria uma boa jantarada ou duas ou uma saída à noite. Depois olhou para o outro, por sinal ainda aparentado. Magro, de óculos finos e fato austero era a imagem da avareza. Este teria sido quiçá o mais fácil de comprar. Uma leve sugestão de despesa extra se o caso tivesse tido um desfecho a seu favor, acrescentado talvez de alguma vantagem se fosse condenado.
Depois olhou para ela, a invejosa. Desde criança que fora assim. Essa também não seria difícil de convencer, estava convencida à partida. Desde que eu ficasse mal, mesmo que ela não beneficiasse coisa alguma.
Passou depois o olhar para outra. A ira: uma pessoa má. Não tinha amigos, de tal forma era rancoroso, incapaz de perdoar a mínima falha alheia. Sempre disposto a desenterrar antigos diferendos, mesmo que estes não tivessem qualquer importância ou que esta se tivesse esgotado pelo passar do tempo. Sim! Com este teria sido também muito fácil, pois nos encontros e rodas de amigos há já muito acontecidos, ele levara-o a melhor nos argumentos, coisa que o aborrecera profundamente e tinha levado a afastar-se.
A seguinte era a soberba em pessoa. Pensou um pouco mais demorado como teria sido possível comprar aquela testemunha, convencê-la a dizer algo que sabia não ter acontecido, mas depois fez-se-lhe luz. Também aqui a palavra aplicada no registo certo teria espoletado a característica-chave da sua personalidade. Algo do tipo: "ele anda a denegrir o teu trabalho, diz isto ou aquilo". Sendo artista e extrovertido e não cabendo em si pela falta de humildade, uma frase teria bastado, o resto seria questão de cozinhado.
De propósito saltou o sexto pecado, guardando-o para o fim, enquanto se deteve no elemento que personificava a preguiça. Detestava-o e dissera-lhe isso mesmo por mais de uma vez. Incapaz de dar uma ajuda a alguém, ficava a olhar, aparentemente alheio, sempre que alguma colaboração lhe era pedida. Mesmo se alguém estivesse aflito a precisar de uma mão, jamais se disponibilizara a dar uma ajuda. Ele sabia que nunca poderia ter estado naquele sítio, pois vira-o entrar para casa dela, cruzara-se com todos eles, os anteriores, quando tinha ido ter com ela, essa que de propósito guardara para o fim: a luxúria. Meu Deus! Como ela era fogo na cama. De todas as vezes que subira aquelas escadas ele, agora condenado, cumprimentara-o, ao preguiçoso, com uma tirada jocosa, ao que ele ruminava algo vago do tipo: "vai-te lixar"... mas ela… ela... Meu Deus! - repetiu de novo dizendo-o inconscientemente em voz alta. Veio-lhe à memória, como se fosse um só momento, todos os instantes, desde o abrir da porta, dos lábios sôfregos e mãos infinitas e dos seus corpos a explodir e morrer um no outro e, ainda, a efervescente forma como se tinham conhecido… mas agora?...
Condenado a vinte e cinco anos, a indemnizar com a incontornável perda de bens por falta de recursos suficientes, ia perder, além de todos os meios de fortuna, toda a vida social e profissional. Os amigos, até mesmo os mais verdadeiros, iriam um após outro rareando as visitas até ficar completamente entregue a si mesmo, à sua revolta e solidão. A família, pouca e distante, fora a primeira a afastar-se.
Mas porquê? - interrogava-se uma e outra vez…
Um coração acelerado e alimentado pela angústia e revolta surda não lhe davam outra resposta que não as gotas de suor frio que lhe humedeciam a testa.
Naquele momento, em que todo o céu desabara sobre si, confuso e demasiado próximo dos acontecimentos, não conseguia descortinar uma razão válida ou um motivo, por mais leve que fosse, para que tivesse sido condenado por um crime que não cometera. Sem dúvida que algumas implicações circunstanciais o poderiam ter indiciado, mas bastaria a palavra honesta das testemunhas para que ficasse de forma cabal inocentado. No entanto…
Fechou os olhos e, por uns momentos, reviveu o fogo da paixão dessa cujo testemunho fora determinante para a sua condenação. Luxúria, luxúria! Paixão... e depois... Deu-se conta como passava da sensação de agrado para a desolação e a raiva impotente e como o suor lhe empapava desconfortavelmente as axilas e lhe escorria pelo couro cabeludo até ao colarinho e como, mais abaixo, uma impressão de molhado denunciava as virilhas invadindo igualmente as roupas íntimas pelo fluido orgânico; suor e mais suor a juntar ao calor intenso que o tomava. Um abanar do corpo fê-lo querer abrir os olhos, em natural reacção, mas surpreendentemente reparou como não conseguia. Seriam os funcionários da presidiária, talvez, diligentes em dar corpo à decisão judicial, mas a luz apagara-se, sentia-se ainda mais confuso e debalde tentara dizer uma simples palavra.
- Acorde! - ouviu ele distante enquanto esperava que os guardas o levassem para o cumprimento da pena. Apenas um -“Ãhn? “- atordoado lhe saiu como vaga resposta.
- Acorde, está na hora de tomar os medicamentos. Esteve toda a noite com febre alta e pesadelos... - ouviu ele agora, já de olhos abertos para aquela voz feminina, que momentos antes estivera sem a farda de enfermeira a incendiar-lhe os sonhos...
- Fartou-se de falar, senhor Dr. Juiz...