É por isso que me lembro tão bem do momento em que conheci a Irina. Foi a única pessoa a quem associei a palavra “estranha” assim que a conheci. Não que ela tivesse um aspecto esquisito ou outra característica física qualquer fora do normal. O que se passou foi que, desde o primeiro momento, me pareceu uma pessoa totalmente racional e sem pingo de sistema nervoso ou emoção.
De resto, e se eu fizesse um esforço para atribuir uma emoção qualquer à sua face petrificada, era uma mulher bastante atraente. Tinha a pele muito branca, com alguns sinais bem visíveis, e uns cabelos longos e pretos que pareciam ter sido acabados de esticar.
A forma como a conheci também não foi muito normal. Os nossos olhares não se trocaram directamente, mas sim através do nosso reflexo no vidro do comboio. Ela estava a olhar para o meu reflexo e eu para o dela. Quando eu sorri ela falou pela primeira vez.
- Não te preocupes – disse – Quase todas as pessoas que viajam com um desconhecido à frente optam por analisá-lo a partir do reflexo no vidro.
- Não te estava a analisar – respondi.
- Estavas, estavas, só que não sabes.
Aquela certeza toda começou por me irritar e foi nesse momento que pensei que aquela mulher era estranha. Ainda assim, e porque entre Aveiro e Lisboa a viagem era de quase três horas, acabei por ir a conversar com ela até ao nosso destino comum. Às vezes olhávamo-nos directamente, outras vezes através do reflexo na janela.
Com o tempo eu fui falando cada vez menos e ela cada vez mais, até que eu acabei por me tornar num mero ouvinte do que ela tinha para me dizer. Isto aconteceu porque ela parecia saber tudo sobre mim. Não que soubesse factos concretos como a minha idade ou estado civil, mas sim como eu me sentia e como eu pensava em cada momento ou situação. Comecei a sentir-me cada vez mais transparente aos olhos dela, como se fosse apenas um reflexo, e acabei por me silenciar.
Foi então que ela me disse para eu não me assustar. Explicou-me qualquer coisa sobre existirem várias dimensões e nós não passarmos de apenas uma projecção. Disse-me que tem a capacidade de sentir que nós não estamos sozinhos porque sente constantemente outros seres inteligentes à nossa volta. Aquilo pareceu-me conversa de alguém alcoolizado ou sob o efeito de drogas. Ainda assim, por qualquer motivo, não me deu para rir. Segundo ela, todos nós vivemos da forma como nos tínhamos acabado de conhecer, ou seja, como uma série de reflexos que se confundem uns com os outros e com a própria paisagem.
Em Santa Apolónia despedimo-nos um do outro com dois beijos na face. Ela apanhou um táxi e eu segui a pé até à casa dum amigo que ia visitar. Pelo caminho fui sempre a pensar na sua última frase, até porque eu não lhe tinha dito nada sobre o assunto.
-Ah! Compreendo que me aches estranha! - disse.
Penso sempre nela quando vejo o meu reflexo numa janela.
bagaço amarelo
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