«Disfunções» - Fernando Gomes

Nem a paciência da telefonista japonesa faz com que ele leve a chamada para Tóquio até ao fim. Ela bem se esforça, mas a ligação não pára de cair. Há anos que as disfunções tecnológicas o perseguem.

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«Tempestade» - Fernando Gomes

A paixão relampejante acabou num casamento tempestuoso. Não houve anticiclone que valesse a tamanha depressão.

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«Aparências» - Fernando Gomes

O pai de Julieta tem fama de bruto e malcriado, mas as amigas dela garantem que ele é um querido. Quanto à mãe, apesar do seu ar encantador, todas concordam que é muito fria e distante na cama.

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«Triângulo amoroso» - Fernando Gomes

A hipotenusa, acusada de bigamia com dois catetos, foi condenada a pena de prisão. O tribunal, todavia, não se revelou tão obtuso com os dois cúmplices, principalmente devido ao depoimento abonatório do senhor Euclides. Este provou haver entre eles uma rectidão inquestionável, atestando que é sempre possível observar por mais do que um ângulo uma relação deste tipo. Após decretar a sentença, o juiz exortou os prevaricadores a recomeçarem com verticalidade uma nova vida como simples segmentos de recta e a esquecerem, de vez, o tempo em que se divertiam licenciosamente com um teorema do senhor Pitágoras, a testemunha de acusação.

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«Trânsito» - Fernando Gomes

É quase todos os dias o mesmo. Entre o silvo aflito do despertador e a torrada, lá vai abrindo os olhos a custo. Depois, enquanto escova os dentes, pensa na hora e meia de viaturas estagnadas que terá de suportar até ao escritório, ao volante do seu potente Lamborghini descapotável. Desata a chorar. Vem-lhe à cabeça que foi dos olhares cúmplices trocados no trânsito caótico que se tornou no infeliz possuidor de cinco ex-mulheres.

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«Despedimento» - Fernando Gomes

Assim que chegou, deu com a informação na secretária: tinha sido despedido. A folha A4, timbrada com o logótipo da empresa, garantia-lhe que não tinha perfil para o cargo que ali exerceu durante quase seis anos – algo que ele tinha percebido logo de início. O despedimento não o surpreendeu. Esperava por isso desde que, dois dias antes, decidira deixar de ser amante da directora de recursos humanos.

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«Ninharias» - Fernando Gomes

Sempre que o porteiro do condomínio saúda o casal Garcia, troca olhares lascivos com a mulher. O marido finge não ver. Se um gestor de sucesso perdesse tempo com ninharias, não chegaria onde ele chegou.

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«Em silêncio» - Fernando Gomes

Conversar distrai-os dos pormenores em que o seu amor se revela: um sorriso ténue, um toque subtil, uma ânsia suave... Preferem absorvê-los em silêncio. As palavras são importantes demais.

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«Baile dos bombeiros» - Fernando Gomes

Júlio venceu a timidez e pediu a Rosa licença para dançar com a filha. Permissão concedida, e ei-los – corpos à distância do decoro, mãos evitando toques suspeitos – a vencerem o descompasso da banda que trucida «El Reloj». A mãe observa-os, nostálgica e inquieta. Se há dezassete anos, depois do mesmo bolero, não tivesse acontecido o que aconteceu nas traseiras daquele salão, a sua Ritinha não teria nascido.

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«Chamadas» - Fernando Gomes

Todas as manhãs te ligo insistentemente enquanto caminhas pelo passeio sob a minha janela até desapareceres no cruzamento da avenida. Volto a ligar-te sem parar ao fim da tarde, quando ressurges na esquina e fazes o trajecto oposto. Não sei se as chamadas se perdem ou se as ignoras. A verdade é que nunca atendes. Nem sequer te vejo esboçar um gesto com essa intenção. Amanhã, tentarei de outro modo. Olhos nos olhos, talvez a telepatia funcione melhor.

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«Desafinações» - Fernando Gomes

Quando o violoncelo foi à viola, armou-se o baile. Em menos de um tempo, as coisas ficaram com fusas. A flauta levou na corneta, o trompete levou nos cornes, o oboé levou nas trompas, foram aos fagotes à tuba, o sax alto foi-se abaixo e o clarinete fez um cromatismo craniano. A batuta ainda tentou acertar o compasso, mas foi corrida a toque de caixa e gritos de filha da pauta. A marimba, como é seu timbre, não deu a mínima para o desconcerto final.

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«Traseiras» - Fernando Gomes

Juvândio começou por plantar cenouras na pequena horta das traseiras. Quando se dedicou a pepinos e curgetes, os vizinhos começaram a desconfiar daquela horticultura exclusivamente fálica. A certeza chegaria com os melões: a recepcionista das urgências vivia no mesmo quarteirão.

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«Telenovela» - Fernando Gomes

Passaram tantos meses a tentar contornar intrigas, combater preconceitos e ultrapassar desencontros, que já não se suportavam quando se casaram. Infelizmente, nem sequer teriam oportunidade de tratar do divórcio: aquele era o último capítulo.

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«Encontro imprevisto» - Fernando Gomes

Casado há vinte anos, deu de caras com a mulher a trabalhar num bordel clandestino, a uns quarenta quilómetros de onde moravam. Apesar do choque, o encontro foi civilizado, e procederam exactamente como se estivessem em casa: não se falaram. Ele, no entanto, fervia e tinha de se vingar. Diante dela, escolheu a prostituta mais feia, disse bem alto que era «mais bonita que a minha esposa», levou-a para o quarto e pagou-lhe para ficar sentada a um canto. Passou duas horas a fazer ranger a cama e a simular urros de prazer que se ouviram em todo o prostíbulo.
De manhã, quebrando o habitual silêncio do pequeno-almoço, comentou com a mulher:
— Ontem à noite é que foi. O melhor sexo que tive na vida. Deves ter ouvido...
— Não. Estive ocupada com homens a sério e fico surda quando tenho orgasmos múltiplos.
— Ficas surda quando quê?!
— Deixa. É natural que não saibas.

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«Depois» - Fernando Gomes

Há muito que a sua vida se ressente da procrastinite crónica de que padece – depois pensa, depois vê, depois faz... Quando encontrou a alma gémea, tudo lhe soou perfeito até ouvir «depois ligo-te». Percebeu nesse momento que, depois, não haveria depois.

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«Tetralógico» - Fernando Gomes

Diz, emproado, que se norteia pela «tetralogia dos efes»: Fado, que trauteia aos sábados na associação; Futebol, a loucura pelo Carquinhais, onde foi júnior, e Fátima, a amante de décadas. Uma vida cheia que não lhe deixa tempo para consultar dicionários.

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«Memória» - Fernando Gomes

Ele perdeu definitivamente a memória num lugar a que ela insiste em levá-lo amiúde. Diz que o faz na tentativa de que ele recupere o passado, mas a verdade é que tem a secreta esperança de ali perder também a sua. Não lhe parece justo que só um deles viva aquele amor como se cada dia fosse o primeiro.

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«Coração» - Fernando Gomes

Não pode correr o risco de falhar mais uma relação e decidiu fechar-se para o amor. Não que se tenha tornado incapaz de amar ou sofra de algum tipo de desequilíbrio emocional. O problema é apenas físico: o coração já não tem espaço para mais cicatrizes.

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«Terror» - Fernando Gomes

Morreu exangue na cela do hospício onde, durante uma eternidade, foi repetidamente violada e emprenhada. Anos depois, a sua história inspiraria um filme de terror. O argumento, como é normal na ficção baseada em casos verídicos, é muito fantasioso, especialmente o final. Na tela, os filhos acabam por vingá-la; na realidade, todos foram abortados à força. Em comum, só o sangue. Muito sangue.

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«Segredos» - Fernando Gomes

O marido sai para o trabalho antes das oito da manhã. Pelo caminho, deixa o filho na escola. Até uma hora antes de ir buscar o miúdo, a mulher entrega-se à secreta ocupação de satisfazer cavalheiros no quarto de hóspedes sempre impecavelmente limpo e perfumado.
Às vezes, os amigos brincam com o nome dela:
— E então, Fátima, tu também tens três segredos?
Entre sorrisos, costuma responder-lhes que até tem mais e que o maior é o quarto.

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