O relatório não deixa dúvidas: a desconhecida morreu de enfarte. Em circunstâncias suspeitas, é certo, mas a autópsia nada detectou de estranho. Encontraram-na há dois dias, seminua, na fria madrugada de um jardim de Marvila. O corpo barrado de chocolate branco e a ausência de quaisquer documentos de identificação levaram a que, na morgue, a alcunhassem de «achocolatada».
Foi há trinta e oito anos, uns dias depois da menarca, que Jalídia conheceu as crises de epilepsia idiopática que a acompanhariam toda a vida. A partir dos quinze, tornaram-se mais frequentes. Duravam pouco mais de um minuto, e a sensação violenta e doce que lhe assaltava cada nervo dava-lhe um gozo indescritível. Dostoievski tinha comparado tais crises a orgasmos, mas a adolescente, de romancistas russos, apenas sabia – por um poema numa aula de Português – que Álvaro de Campos não o era. Nem isso, nem parvo.
Só se interessou verdadeiramente pelo heterónimo de Pessoa quando, aos dezasseis anos, percebeu que as crises eram desencadeadas por chocolate. A sua vida mudou radicalmente, e passou a seguir o lema «Não há mais metafísica no mundo senão chocolate». Deixou-se de saídas nocturnas à discoteca e de ir ao cinema com as amigas. Preferia ficar em casa, com uma tablete a provocar-lhe mais prazer do que elas poderiam imaginar. Aos poucos, foi desenvolvendo um conhecimento notável acerca de chocolate e seus derivados e tornou-se uma verdadeira enciclopédia na matéria. O paladar foi-se refinando, e começou a escolhê-lo pela origem do cacau, pela qualidade dos ingredientes adicionais e por um sem-número de características desconhecidas dos leigos.
Não se casou e nunca se lhe conheceram amores. Viajava pouco, apenas com o fito de descobrir diferentes variedades da sua única paixão. Em suma, passou a viver para o deleite que esse delicioso catalisador epiléptico indirectamente lhe proporcionava. A morte, perto dos cinquenta, deu-se pouco depois do encontro com um vendedor clandestino de chocolate branco confeccionado com substâncias orgânicas ilegalmente importadas da Arábia Saudita. A ânsia por novidades achocolatadas guiara-a ao perigoso mundo de uma desconhecida e poderosa máfia de produtos alimentares açucarados. Felizmente, a sua intuição conseguia sempre antever possíveis riscos e defender-se deles.
Nessa noite, mal se viu com o balde de cinco quilos, não resistiu. Tinha de ser ali. Sentou-se num banco de jardim e foi rasgando a massa alvacenta à unhada, engolindo-a, sôfrega, quase sem respirar. A crise epiléptica não tardou, mas, desta vez, com uma pujança insólita e crescente que a fazia devorar mais e mais aquela delícia, repetindo mentalmente o seu mantra predilecto, adaptado de versos camposianos: «Come chocolate, Jalídia, come chocolate!» Já lá iam quatro minutos, e os espasmos não paravam. Perdeu a noção do que a rodeava. Quis sentir em todo o corpo a pasta esbranquiçada que a levava ao êxtase. Rasgou a roupa e besuntou-se toda, em delírio. O enfarte não tardou.
Jalídia descansa agora num gavetão da morgue, com uma etiqueta «Identidade Desconhecida» pendurada no dedão de um pé. Os investigadores forenses não sabem que não lhes será fácil descobrir quem é a «achocolatada». Para já, ter morrido virgem e casta acarretou o terrível inconveniente de não haver quem reconheça o corpo.
Fernando Gomes
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