04 novembro 2010

Fala-me da tua vida sentimental

Já tinham falado de tudo, já tinham rido de si e dos outros (que dueto faziam, na arte da má-língua!), já tinham desconversado (sempre tinham sido excelentes na arte do desconversar), já se tinham contradito ao explicar a terceiros como se haviam conhecido, há tantos anos atrás (uma coisa de pormenor, mas ela levava a sério qualquer pormaior, como lhes chamava), já tinham desfrutado da companhia (nem sempre presente) um do outro e encontravam-se agora a usufruir de um daqueles silêncios confortáveis, só possíveis entre quem está plenamente à vontade consigo e com quem está. Ela juraria que ambos sorriam.
Sem aviso prévio, ele interrompeu-lhe a tranquilidade e atirou:
— Fala-me de ti.
— Como assim, "fala-me de ti"? Já fizemos a viagem do costume pelos meses em que não nos vimos, já voltámos ao passado, já falámos dos futuros, já partilhámos planos e inventámos projectos. Que queres que te diga?
— Fala-me da tua vida sentimental.
— Ó P., que disparate, a que vem isso agora?
— Gosto de saber de ti.
— Eu sei. Mas já te disse que sou feliz, que tenho amigos que me fazem rir e uma família que me adora e apoia incondicionalmente e um emprego que me completa. Sou feliz, é nisso que consiste a minha vida sentimental.
Ele rodeou-lhe os ombros com o braço forte, enquanto a bombardeava com um olhar redondo mas fugaz e deixou-a exceptuar-se a ouvir-se dizer que tinha medo. Medo de não ser a miúda apaixonada e temerária que ele conhecera há quase uma vintena de anos atrás. Medo de, nos anos em que não houve contacto entre eles, ter perdido a capacidade de acreditar. Medo de se ter tornado numa mulher cínica e seca, daquelas que já não choram quando assistem a uma comédia romântica nem invejam a heroína da história porque sabem que, depois do "The End", vêm os desencontros e as discussões e que que têm a certeza de que não existe o "they lived happily ever after" a não ser nos projectos lucrativos dos produtores de Hollywood e na cabecinha das jovens tontas, como ela era quando ele a conheceu. Medo de se ouvir dizer, uma vez mais, que não tem pachorra, nem disponibilidade mental, nem capacidade para mudar a sua vida (feliz, reiteraria, se ele inclinasse a cabeça para o lado, como faz sempre que não a leva a sério) um milímetro que seja por quem quer que seja porque,
at the end of the day, nunca vale a pena e quem se lixa (ó-i-ó-ai) é sempre a tonta da romântica.
Ele deixou que ela não se ouvisse a dizer nada disto.
Ela agradeceu-lhe a amabilidade e amaldiçoou-lhe a capacidade de a pôr a pensar naquilo que faz por atirar para o saco das coisas a adiar.
E o silêncio, subitamente, desconfortou-a.

Tamanho não é documento

Cá está. Um baralho de cartas com imagens humorísticas, em inglês. As cartas são pequeninas... mas a qualidade é enorme.
Agora estão juntinhas às dezenas de baralhos de cartas e de tarots eróticos da minha colecção.


«030» - videoclip potente do grupo The Good The Bad


'030' by The Good The Bad (UNCUT) from 030 on Vimeo.

Enroscados

03 novembro 2010

Vendedoras de virtudes

Há muitos anos atrás, teria eu talvez 18 ou 19 anos, dirigia-me a pé em direcção à Costa do Castelo, com auriculares, ouvindo a minha música. É possível que fosse Pink Floyd. Ao passar na João das Regras (perto da Praça da Figueira) apercebo-me de uma mulher que me dirige a palavra. Estava encostada a uma porta. Ainda dei meia dúzia de passos em frente enquanto tentava perceber se era mesmo alguém a falar comigo, e se devia dar-lhe atenção. Decidi recuar. Tirando os auriculares perguntei à senhora: “Desculpe, falou comigo?”, e ela disse qualquer coisa que eu não percebi. Retorqui: “Como?”, e eis que entendi, finalmente, o que ela me estava a dizer “Jovem, não queres ir ali ao Hotel dar uma voltinha?”. Disse-lhe que não, que estava a fazer a digestão, e segui em direcção à Costa do Castelo, incrédulo.

Aurora Poema

Aurora
se tocas nas estrelas
sempre que me olhas
dizes-me quantas são?
Levas de mim toda a emoção
e os sonhos de frases amputadas
já não são poemas,
Aurora,
mas quando os levas
nas tuas palmas
dizes-me que não
e levas-me e trazes-me a solidão
mas se tuas lágrimas são abelhas
sempre que me deixas,
Aurora,
são estrelas do coração.

Que posso fazer, então,
senão deixar-me matar
para que possas estrelas contar;
diz-me, ao menos, quantas são?

Serenata de Emoções Descoordenadas

Senhora poeta de paixão nos dedos, que encontraste o menino grande que guarda segredos, somos seres elevados narradores de espaços.

A serenata não foi feita, mas dançámo-la ritmados. Alimentei-te de mim - de solos sagrados.
Desafio-te na escrita. Enervo-te nas letras. Envolvo-te nos braços.
Agrado-te como me fazes nos teus abraços.

Achaste aquilo que me mostrei? Sentiste ao aninhares-te no que te dei?
Recorda o espírito que falou ao anoitecer. Aquele que tanto gostaste. Aquele que o fez com prazer.

Dá-me letras - eu devolvo-te metáforas e pensamentos confusos, que depressa aprendeste a decifrar. Dou-te frases incompletas, dás-me palavras e opiniões repletas, refilas e voltas à doçura e à ternura.

No som que ouço até hoje, faltam notas que deves completar.
E na tua música? Faltam palavras, desfiles de vaidade que eu possa juntar?

O que vale mais? Mulher ou bacon?


Ser ateu, você perde a vida eterna no céu, ein!

Capinaremos

02 novembro 2010

«Sinto um alívio imenso» por Bartolomeu

"Sinto um alívio imenso
Uma sensação intensa
Prazer de puro incesto
Quando ao pegar-lhe e ela tesa
Sugere que lhe faça o que penso
Responde ao meu toque, presa
A uma rede complexa, cerebral
Pede-me que pense na Teresa
E naquela tarde, os dois no areal
Nos corpos juntos ardendo numa pressa
Nos sons loucos daquele terno madrigal
Como autómato executo a sua ordem
Mentalmente desfaço o que já foi feito
E sem nunca pensar nos que me fodem
Vou massajando o sardo com todo o jeito
Até que do seu corpo, alvos leites explodem
E assim me deixo adormecer em suave leito"

Bartolomeu

Será que me despeço de ti todos os dias?



Será que me despeço de ti todos os dias? Será que cada passo forçado e sofrido a teu lado me leva para longe, para esse sítio onde nos enredamos e perdemos e cegamos e sangramos e gelamos, onde finalmente morremos de desamor?
Como parar? Como mudar de direcção? Como olhar-te com olhos claros e corpo nu e mãos abertas e boca voluntariosa? Como varrer da memória a tua mentira? Como olhar para ti e não ver um monstro feio navegando em ondas de volúpia com uma harpia com quem só me zango porque tu não chegas sequer para tanta mágoa?
Como? Como segurar na minha mão o teu sexo duro, como sentar-me em ti, enterrar-te em mim, vir-me, fazer-te vir, se a tua boca quis outra, se o teu corpo deixou o meu em casa para se peder noutro, se voltaste como se nada se tivesse passado e mentiste como se eu não fosse quem sou?
Por isso, é como se me despedisse de ti a cada instante. Como se cada momento passado contigo mais não fosse do que mais um aceno, mais um copo, o prolongar do instante derradeiro e incontornável.


Medeia - [Infidelidades]

Asfixiante

Voltas, voltas e mais voltas.
Sou eu que me revolto
ou as palavras
se voltam sobre mim?

Volto. E volto. Volto.
Não se sobrevive,
voltando;
não se consegue respirar
em voltas, voltas
e mais voltas.

Asfixiante - no mínimo -
este voltar que sem voltar,
volta e volta,
numa revolta de adeus.

Poesia de Paula Raposo