Sabes, todos os pássaros sorriem
todos os pássaros aprendem a rir
para o azul assim que nascem
assim que azul podem ver, podem sentir;
rouxinóis, mochos, gaivotas, cotovias,
eu sei bem que tu já não sabias.
Sabes, eu sei que tu és um pássaro
sempre foste, mas sorrias tão pouco
o teu peito de penas emocionado e louco
secou à dor, eras suave e áspero.
Sabes porque ainda te espreito agora,
agora que tudo foi, que já me fui embora,
porque espreito, às vezes, a tua gaiola,
de garras esticadas, mão aberta para a esmola
que eu, nem quero saber porquê, ainda peço?
Sim, meu querido pássaro, a ti, eu confesso,
eu peço a Deus que me deixe ver-te sorrir,
eu peço a Deus por ainda te sentir
viver, assim, tão pássaro, tão meu querido pássaro.
01 maio 2011
30 abril 2011
A posta que há cada vez mais histórias por contar
Está na natureza humana gostar de histórias. Tribos inteiras reuniam-se em torno de uma fogueira para ouvirem os seus anciãos nas narrativas de coisas acontecidas ou, tanto fazia, de ficções nascidas do acrescento de um ponto ao conto contado pelos pais dos seus avós.
Os melhores contadores de histórias garantiam um lugar de destaque nos tempos de lazer, eram protagonistas dos filmes que projectavam nas imaginações daqueles que entretinham, ora choravam, ora sorriam, com histórias de gente que podiam ser pássaros disfarçados ou deuses traquinas que desciam ao mundo real para matarem o tédio de uma eternidade nos céus.
As estrelas e a lua, fascinantes e misteriosas, cobriam o horizonte visual por detrás das imagens que os espectadores criavam na tela escura da noite, caçadores trapalhões que fugiam, eles as presas, da sua caça que os apanhava a jeito agachados nas suas precisões, feiticeiros poderosos que transformavam os inimigos em insectos rastejantes, mulheres bonitas que conduziam tribos inteiras a guerras sem quartel, vidas contadas ou apenas inventadas pelas mentes dos contadores das histórias que divertiam os outros e lhes transmitiam saberes, as suas morais, que os ensinavam a respeitar o que mais valia e a temer ameaças que nunca haviam enfrentado até então.
As histórias propagadas pela voz profunda de um ancião a cada um dos seus sucessores, os futuros transmissores do registo possível de vidas a acontecerem num mundo tantas vezes hostil, mas quase sempre generoso nas oferendas de coisas que alimentam as vidas.
Como as histórias, preciosas, que distraíam os homens das suas preocupações diárias com a sua sobrevivência e a dos seus, que lhes abriam as portas dos céus com as memórias de antepassados que dessa forma não eram esquecidos ou a lembrança de filhos perdidos sob os rigores de um inverno mais duro ou numa armadilha montada por uma tribo rival.
Os mais jovens, sedentos de diversão, ouviam as histórias com mais atenção porque delas sorviam aos poucos tudo aquilo que lhes poderia valer ao longo do caminho pela existência forrada a pontos de interrogação tão numerosos como as estrelas no céu que não sabiam explicar mas existiam porque os seus olhos as viam como aos rostos enrugados e aos sorrisos desdentados dos velhos que imitavam os búfalos que atacavam os caçadores desatentos ou abriam os braços como asas dos falcões que diziam transportarem as almas de heróis que sobrevoavam os campos de batalhas vencidas ou de derrotas sofridas ou apenas para poderem rever as suas amadas depois de a morte os levar para o outro mundo que não lhes permitia falar para contarem as suas histórias, enriquecidas ao sabor da passagem do tempo com as impressões mais marcantes ou as informações mais importantes que os mais sábios ou os mais espertos precisavam divulgar.
Sim, está na natureza humana esta sede de contar e de conhecer as histórias que continuam a exercitar a imaginação ou a perpetuar uma tradição mais teimosa, capaz de resistir à influência perniciosa do progresso sobre os hábitos antigos e os detalhes que não se querem esquecidos das origens que se queiram respeitar ou apenas porque não se podem perder rastos da passagem do tempo, sabedoria, que desvendam os caminhos do futuro nas entrelinhas das histórias de ficção que já não se desenham no céu estrelado mas ganham vida nas páginas irrequietas de um velho livro agitado pelo vento num jardim descrito numa história de amor ou mesmo por detrás do reflexo romântico da lua destacada pelo olhar por entre o brilho das palavras escritas num moderno monitor.
Horas
Necessidade de isolar um tempo
Inexistente
Num mecanismo infalível
De obstrução.
Tal como as cerejas
As horas enrolam-se
E partem-se em ânsia
De as saborear.
Revela-se então
A desoras
A tempestade imutável.
Poesia de Paula Raposo
«Mulher deitada a fumar, com gatos»
Quadro a óleo sobre tela de 99x60 cm, de Gouvea. Este quadro atravessou o Oceano Atlântico para vir do Brasil para a minha colecção.
Não é uma obra-prima mas tem a sua piada.
Não é uma obra-prima mas tem a sua piada.
29 abril 2011
na tua boca
danço nos teus lábios
em movimentos suaves
que me relaxam
danço na tua língua
em movimentos ousados
que me excitam
Corpos e Almas
em movimentos suaves
que me relaxam
danço na tua língua
em movimentos ousados
que me excitam
Corpos e Almas
Perdidos e achados
Não estava a dormir quando acordei e dei por ti, dei connosco, no meio da cama de ninguém. O meu tempo estava triste e cansado por ter feito tão grande corrida, por eu nem o ter visto passar, como sempre, e, como sempre, estava na hora de fazer alguma coisa, esperavam-me com vontade grande da minha chegada. Mas o tempo, esse de quem tanto nos queixamos, também é sensato, ele viu tudo e todos e aprendeu todas as coisas de agora e as de ontem e as de amanhã, o tempo vestiu-se do teu olhar e sorriu-me no brilho macio dos teus lábios, soprou mais um bocadinho no nevoeiro e eu vi a pergunta despida: "não queres começar a viver?". Bastou! E fiquei. Mais tarde dei por ti no meio da minha cama e, agora, dou por ti no meio da nossa cama; são milhares de ponteiros, meninos perdidos, os fios do teu cabelos, perderam-se do tempo e riem-se muito quando encontram as minhas mãos; cheiro-as, cheiram ao tempo quando me ensinou a morar entre o Outono e a Primavera, quando me ensinou a esconder-me dele debaixo do teu corpo, se eu não o vir, ele não me vê, se eu não lhe falar, ele não me responde, o teu olhar é uma venda, a cova entre o teu ombro e o teu pescoço é uma mordaça, não digo nada, nunca mais digo nada, só o teu nome, e o único ritmo, o único tic-tac, é uma redoma, é o estremecer de tudo teu em tudo meu até ao estremecer da Luz.
O Amor é lindo!
Realmente é verdade ... o amor é lindo, mas a caça ao homem, também. As mulheres balançam entre estes dois conceitos e é uma dúvida existencial tão antiga como a evolução do sexo, desde a Idade da Pedra.
Todos os homens querem desesperadamente fazer sexo com mulheres. Nasceram com uma deficiência congénita chamada “microchispe” que os obriga, desde célula embrionária, a terem erecções e irem para a cama com todas as mulheres que puderem.
Antigamente, os homem para terem sexo, ou casavam ou iam às putas porque sexo antes do casamento era uma miragem e eles, coitados, tinham de seduzir o sogro, a sogra, as tias e o gato antes de chegar ao cerne da questão. A vida seguia um trilho estreito e rectilíneo onde, eventualmente, poderiam surgir linhas convergentes mas também paralelas.
Chamemos-lhe então o padrão da sociedade primitiva.
Agora, o quadro é ligeiramente diferente, a evolução social foi-se alterando devagarinho até chegarmos ao padrão da sociedade permissiva o que significa que se pode ter cama sempre que se queira e isto aplica-se, tanto a homens como mulheres.
- Casamento?
- O que tu queres, sei eu
- União de fato?
- Nem pensar, os fatos custam os olhos da cara e eu prefiro gastar a 3ª via
- Então como é?
- Vamos simular o IRS e depois logo se vê
É óbvio que ainda se encontram homens com padrão primitivo mas esses, quem é que os quer? São feios, chatos, fazem férias no Allgarve, usam meias ridículas, cuecas de gola alta e passam o tempo todo a chamar-nos “mori”.
Todos os homens atraentes, disponíveis, inteligentes e ricos estão felizes que nem uns touros no meio de uma manada de vacas.
Eu cá sou muito exigente ... o que me motiva é caçar um gajo e mantê-lo em cativeiro até ele parar de rugir com saudades da selva, nem que tenha de o açaimar e dar-lhe umas valentes doses de sexo à bruta, para ele perder a mania.
A sociedade protectora dos animais fica fodida e lança-me um Habeas Corpus?
E eu ralada, dou o caso como devoluto e mando-os a todos pastar.
Gaja do sec XXI é assim, quando caça por alimento ou desporto e descobre que afinal, ele não corresponde aos requisitos, está sempre a tempo de o devolver à selva e recomeçar a caçada.
Mudasti? – perguntarão vocês
E eu, que adoro Ice Tea mas sou uma gaja com formação clássica, limito-me a dizer:
Mutatis mutandis e mainada!
Coração
O Coração é uma moita nas Paixões, onde um homem, obsessivo, estremece até às bases, a arder...
O movimento, entre laços, o sangue, abismado, nu lume das linhas, se cose.
Onde uma lima faísca, entre as ilhas do meu próprio corpo, onde o astro é somente uma queimadura, um incêndio, algures, uma ilha, na rapidez das formas. Aceso completamente.
Ataca-me. Num lugar interno. Ata-me, em desvios florais de amores que dão à luz poemas, bálsamos, deleites de mel, da minha sobre a tua, língua, encontro.
O fluxo dele se desenreda, árduo, árduo, numa bolha que rebenta alta na porta, no âmago!
Carne rude, coberta de poros a ligar-me entre os arquipélagos que, me unem, que são EU!
O ilhéu, se transborda na frase. Pintando o ar. Calcinado a vermelho, louco, louco como um gás rutilante, que bombeia Deus onde eu começo...
in Nu Âmbar da Minha Escrita
[Blog Vermelho Canalha]
28 abril 2011
A pena
Anteriormente, em O julgamento:
Decidiu parar. Baixando a cabeça, para se recompôr de uma respiração mais agitada, aguçou a audição. Detectou passos, vindos de trás, do sítio por onde tinham entrado com ele inicialmente. Não conseguia ver. Gritou por ajuda e balançou-se na cadeira para fazer ainda mais barulho, mas o empenho foi tal que acabou por conseguir tombar, caindo de lado, desamparado. Alguém o ouviria, por certo. E os passos estavam mais próximos. Tombado no chão, e ainda por cima de costas para a porta, não conseguia ver quem se aproximava. Os passos tornaram-se mais lentos e eram novamente saltos. Era mulher.
"Acreditaste mesmo que fosse possível deixar-te ficar aqui, ou deixar-te ir sem que pagasses?", atirou-lhe, quase trocista. A face dele transformou-se da dôr em espanto. "Tu?". Era ela. De pé, ao lado dele, preso à cadeira com fita adesiva. Com saltos altos, saia e casaco, as mãos na cintura, e o cabelo solto. Olhava-o quase sem expressão. Ao baixar-se, frente a ele, flectiu as pernas e nesse misto de provocação, enquanto um dos seus joelhos tocava o chão, deixava-o ver a linha das coxas entre a saia, e dizia-lhe "Não acabou". Correram outras mulheres em direcção àquele palco e pegaram na cadeira, puseram-na direita, e cortaram-lhe as fitas. Tentou debater-se, mas era escusado. Perdeu os sentidos ao mesmo tempo que sentia uma agulhada forte. Tinha sido sedado.
Veio a si totalmente despido, o que, já de si, era uma vergonha. Os seus encantos, como se havia percebido no julgamento, não eram de natureza física, excepto talvez pelas características do seu toque, mas ninguém ali parecia ter interesse nisso, ou em ouvi-lo falar sobre sedução, amor e sexo. Já não existiam fitas adesivas a segurá-lo a uma cadeira. Nem sequer existia uma cadeira naquela cave. Parecia-lhe uma cave porque não vislumbrava janelas. Estava deitado no que lhe parecia ser uma marquesa. Preparava-se para tocar o chão com os pés quando pela porta entraram mulheres. De novo aquelas mulheres que tinham estado em frente a ele durante o julgamento. Com uma diferença assinalável. Muito assinalável. Estavam tão nuas quanto ele. E assim se percebia porque raio estava tão quente aquele espaço, numa altura do ano em que o frio impera. E, ainda sem certezas, desconfiava ele que a coisa ainda ia aquecer mais. Não estaria longe da verdade.
Aproximou-se de novo a mulher que parecia dirigir as hostilidades. Despojada das suas vestes, como todas as outras. Disse-lhes "segurem-no". "Eh lá, tenham lá..." e nem sequer acabou a frase, porque foi de imediato agarrado e vendado, forçado a deitar-se e silenciado com uma mão que lhe cobriu a boca enquanto ela lhe dizia para estar quieto, que era melhor para ele - e bem mais rápido - aceitar o facto de estar em clara desvantagem numérica. Deram-lhe a tomar comprimidos, e poucos instantes depois sentiu uma vulva pousar sobre a sua cara, enquanto outras humidades lhe tocavam as pernas e o pénis. Vendado e perturbado, tinha dificuldade em entender o que era o quê, mas havia poucas hipóteses. Sabia-se rodeado de mulheres nuas, era óbvio que a intenção delas era ter sexo com ele. Algum tipo de sexo. Fazê-lo pagar pela falta de sexo de que o tinham acusado. E, agora, num contexto de humilhação, num formato forçado, fazendo-o entender que a vontade delas imperava sobre a dele, e que nem sequer era dono e senhor do seu desejo, da sua anatomia e função eréctil. Elas queriam, e iam ter.
Durante horas foi feito objecto. Não sabe se foram todas, ou quem foram, as mulheres que se fizeram penetrar por ele, que se esfregaram no seu corpo, que o forçaram a cunnilingus contrafeitos. Houve orgasmos, por certo. Aos seus ouvidos chegaram muitos gemidos de prazer, e ele mesmo não conseguiu evitar os seus, em alguns momentos. Tudo aquilo era, no mínimo, sinistro. A junção da tortura com breves momentos de genuíno prazer, apesar da falta de controlo e da negação de algo que teria sido fundamental se aquele fosse um contexto consentido: a imagem.
Acordou sentado dentro do carro, com as portas abertas e a chave do carro dentro do bolso. Pegou-lhe e rodou-a na ignição para ver as horas. O relógio marcava 05:55, e era ainda noite muito fechada. Parecia-lhe ser o único no estacionamento e sentia-se perdido. Não sabia o que estava a fazer ali, só se lembrava de ter estado num jantar com colegas de trabalho, mas sentia-se muito cansado. Ao ajeitar-se no banco do carro sentiu os músculos extremamente tensos, e uma dôr imensa na genitália que lhe causou um apreciável esgar de sofrimento. E até movimentar a cabeça era terrível, tinha o pescoço extremamente dorido, a língua magoada e a cara como se tivesse sido passada com lixa. Levantou-se a custo para sair do carro e olhar à volta, tentar compôr a roupa que lhe estava a assentar mal. Esticar-se um pouco. Ao fazê-lo, veio em sua direcção uma senhora. Jovem e composta. Perguntou-lhe se estava bem. Respondeu-lhe que sim e disfarçou dizendo que procurava as chaves de casa, que lhe deviam ter caído por ali algures. Ela sorriu e disse-lhe "já procurou no porta-luvas?", e afastou-se, caminhando rápida sobre os seus saltos altos, com saia e casaco e os longos cabelos ao vento.
Fez-se silêncio. Sepulcral. Assustador. E não aconteceu nada. Deixaram-no sentado, amarrado a uma cadeira com fita adesiva nos punhos e nos tornozelos, enquanto deixavam vagos os seus lugares no anfiteatro. A pena era, afinal, esta. A de conhecer os seus crimes e ser ignorado a seguir. O degredo.O anfiteatro tinha começado a esvaziar-se. Havia o silêncio a preenchê-lo, tanto o dele, de pasmo, quanto o das suas acusadoras, que abandonavam ordeiramente o local, conferindo a tudo aquilo uma aura cerimonial, de passos bem coordenados, de entendimentos, de um procedimento muito bem estudado. Quando se sentiu sozinho achou por bem manter-se silencioso, mas começou a agitar-se na cadeira, tentando enfraquecer a fita que o segurava. Mas o esforço era inglório. Quando mais se torcia, mais a fita parecia endurecer, sem dar qualquer folga. Havia já a dor no corpo e uma sensação de desespero. Não sabia onde estava, não sabia que dia era, não fazia qualquer ideia de quando (e se) alguém viria socorrê-lo.
Decidiu parar. Baixando a cabeça, para se recompôr de uma respiração mais agitada, aguçou a audição. Detectou passos, vindos de trás, do sítio por onde tinham entrado com ele inicialmente. Não conseguia ver. Gritou por ajuda e balançou-se na cadeira para fazer ainda mais barulho, mas o empenho foi tal que acabou por conseguir tombar, caindo de lado, desamparado. Alguém o ouviria, por certo. E os passos estavam mais próximos. Tombado no chão, e ainda por cima de costas para a porta, não conseguia ver quem se aproximava. Os passos tornaram-se mais lentos e eram novamente saltos. Era mulher.
"Acreditaste mesmo que fosse possível deixar-te ficar aqui, ou deixar-te ir sem que pagasses?", atirou-lhe, quase trocista. A face dele transformou-se da dôr em espanto. "Tu?". Era ela. De pé, ao lado dele, preso à cadeira com fita adesiva. Com saltos altos, saia e casaco, as mãos na cintura, e o cabelo solto. Olhava-o quase sem expressão. Ao baixar-se, frente a ele, flectiu as pernas e nesse misto de provocação, enquanto um dos seus joelhos tocava o chão, deixava-o ver a linha das coxas entre a saia, e dizia-lhe "Não acabou". Correram outras mulheres em direcção àquele palco e pegaram na cadeira, puseram-na direita, e cortaram-lhe as fitas. Tentou debater-se, mas era escusado. Perdeu os sentidos ao mesmo tempo que sentia uma agulhada forte. Tinha sido sedado.
Veio a si totalmente despido, o que, já de si, era uma vergonha. Os seus encantos, como se havia percebido no julgamento, não eram de natureza física, excepto talvez pelas características do seu toque, mas ninguém ali parecia ter interesse nisso, ou em ouvi-lo falar sobre sedução, amor e sexo. Já não existiam fitas adesivas a segurá-lo a uma cadeira. Nem sequer existia uma cadeira naquela cave. Parecia-lhe uma cave porque não vislumbrava janelas. Estava deitado no que lhe parecia ser uma marquesa. Preparava-se para tocar o chão com os pés quando pela porta entraram mulheres. De novo aquelas mulheres que tinham estado em frente a ele durante o julgamento. Com uma diferença assinalável. Muito assinalável. Estavam tão nuas quanto ele. E assim se percebia porque raio estava tão quente aquele espaço, numa altura do ano em que o frio impera. E, ainda sem certezas, desconfiava ele que a coisa ainda ia aquecer mais. Não estaria longe da verdade.
Aproximou-se de novo a mulher que parecia dirigir as hostilidades. Despojada das suas vestes, como todas as outras. Disse-lhes "segurem-no". "Eh lá, tenham lá..." e nem sequer acabou a frase, porque foi de imediato agarrado e vendado, forçado a deitar-se e silenciado com uma mão que lhe cobriu a boca enquanto ela lhe dizia para estar quieto, que era melhor para ele - e bem mais rápido - aceitar o facto de estar em clara desvantagem numérica. Deram-lhe a tomar comprimidos, e poucos instantes depois sentiu uma vulva pousar sobre a sua cara, enquanto outras humidades lhe tocavam as pernas e o pénis. Vendado e perturbado, tinha dificuldade em entender o que era o quê, mas havia poucas hipóteses. Sabia-se rodeado de mulheres nuas, era óbvio que a intenção delas era ter sexo com ele. Algum tipo de sexo. Fazê-lo pagar pela falta de sexo de que o tinham acusado. E, agora, num contexto de humilhação, num formato forçado, fazendo-o entender que a vontade delas imperava sobre a dele, e que nem sequer era dono e senhor do seu desejo, da sua anatomia e função eréctil. Elas queriam, e iam ter.
Durante horas foi feito objecto. Não sabe se foram todas, ou quem foram, as mulheres que se fizeram penetrar por ele, que se esfregaram no seu corpo, que o forçaram a cunnilingus contrafeitos. Houve orgasmos, por certo. Aos seus ouvidos chegaram muitos gemidos de prazer, e ele mesmo não conseguiu evitar os seus, em alguns momentos. Tudo aquilo era, no mínimo, sinistro. A junção da tortura com breves momentos de genuíno prazer, apesar da falta de controlo e da negação de algo que teria sido fundamental se aquele fosse um contexto consentido: a imagem.
Acordou sentado dentro do carro, com as portas abertas e a chave do carro dentro do bolso. Pegou-lhe e rodou-a na ignição para ver as horas. O relógio marcava 05:55, e era ainda noite muito fechada. Parecia-lhe ser o único no estacionamento e sentia-se perdido. Não sabia o que estava a fazer ali, só se lembrava de ter estado num jantar com colegas de trabalho, mas sentia-se muito cansado. Ao ajeitar-se no banco do carro sentiu os músculos extremamente tensos, e uma dôr imensa na genitália que lhe causou um apreciável esgar de sofrimento. E até movimentar a cabeça era terrível, tinha o pescoço extremamente dorido, a língua magoada e a cara como se tivesse sido passada com lixa. Levantou-se a custo para sair do carro e olhar à volta, tentar compôr a roupa que lhe estava a assentar mal. Esticar-se um pouco. Ao fazê-lo, veio em sua direcção uma senhora. Jovem e composta. Perguntou-lhe se estava bem. Respondeu-lhe que sim e disfarçou dizendo que procurava as chaves de casa, que lhe deviam ter caído por ali algures. Ela sorriu e disse-lhe "já procurou no porta-luvas?", e afastou-se, caminhando rápida sobre os seus saltos altos, com saia e casaco e os longos cabelos ao vento.
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