O cirurgião tirara-lhe uns bons vinte anos, após três liftings, cinco peelings, uma rinoplastia, três blefaroplastias, um vibrolipossucção à papada e dois implantes – um capilar, outro de silicone no queixo. Enfim, três semanas de internamento, mascarado de múmia e alimentado por uma palhinha, que lhe mudariam a vida para sempre.
Teve o primeiro sobressalto na manhã em que regressou da clínica: o seu fiel pastor alemão, não o reconhecendo, quase lhe esfacelou a nova face num ataque feroz. O pior, contudo, estava para vir. Via-se tão diferente, que se lhe tornou insuportável a naturalidade com que a sua mulher se deitava com outro homem, ainda por cima com a aparência do seu filho. Começou a sentir-se traído por ele mesmo e entrou em profunda depressão. O pavor de poder vir a ser referido pela vizinhança como «o corno de si próprio» causava-lhe tanto sofrimento, que o simples acto de palmilhar dez metros de calçada para despejar o lixo o atulhava de vómitos e diarreia.
Em consequência dos incontáveis distúrbios psicossomáticos, os pontos relaxaram, os repuxões vacilaram, a pele estremeceu, e a cabeça distendeu-se para uma vez e meia o tamanho original. Partiu todos os espelhos de casa e nunca mais saiu. Embrulhou-se num desespero crónico e viciou-se em debates televisivos e programas de opinião política. Viveu o resto dos seus dias na cama, irreconhecível, de telecomando na mão, balbuciando frases desconexas de Paulo Portas, Mariana Mortágua, Marques Mendes e Pacheco Pereira.
Fernando Gomes