03 fevereiro 2006

Derrubaram a torre emblemática desse pedaço de mim - por Charlie

Sempre que passo ao Saldanha,
e olho para um dos lados da praça feita rotunda,
enche-se me os olhos duma nostalgia breve,
amarga e surda.
Falta lá o Monumental.
Um bocado da alma
das avenidas novas de Lisboa.
Uma destas noites atravessei esse espaço.
E desviando os olhos para não ver.
Olhei para o céu.
E num olhar baço,
lembrei-me sem querer,
dum poema de Pessoa...

"Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo.
Há tanto tempo...
Tenho dó delas

Não haverá um cansaço
Das coisas.
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?

De um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ao sorrir...

Não haverá enfim
Para as coisas que são,
Não a Morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,

Ou uma grande razão
Qualquer coisa assim
Como um grande perdão?"


Perdão... - pensei, escorrendo o olhar.
Não! Não poderei perdoar jamais a destruição das memórias!
Conheci esse largo atravessado por milhões de automóveis, pela primeira vez como a grande maioria das pessoas.
Subindo do Marques de leão aos pés pela Avenida Fontes Pereira de Melo com destino ao Apolo 70.
O must na época.
Mas foi mais tarde, quando passeando a pé pelas ruas que ligam a Av. Almirante Reis à Av. da República, circundando a Estefânia, Rua Pascoal de Melo, Casal Ribeiro e outras respirando Lisboa, que a encontrei.
Era linda como um poema de Pessoa.
Parámos olhando-nos um instante e os nossos olhares fixaram-se na mesma estrela brilhando a meias que de repente ofuscou o Sol.
Ela riu-se ligeiramente com o olhar e em mim incendiou-se em fogo o pó de que são feitos os Astros.
Convidei-a a um café e um pouco de conversa.
Mas ela disse-me, brilhando, que ia ao cinema e que estava quase na hora.
Nasceu desse segundo a Eternidade que faz hoje parte de mim.
Fomos os dois e uma amiga, que já a esperava no átrio, trocámos de lugares e ainda hoje tenho presente o filme que as nossas mãos e lábios rodaram nessa tarde.
Encontrámo-nos mais umas vezes.
Nós dois aves de liberdade em rota casual de convergência. Amámo-nos com a loucura inebriante de quem só é escravo dos desejos e que nada nem ninguém pode prender.
Os nossos lábios, corpos e almas só aos Deuses pertenciam e eles faziam de nós joguetes das suas paixões.
Amei essa jovem com toda a minha juventude e querer e, sem dar por isso, saltámos da nossa árvore para o céu livre e aberto dos nossos destinos.
O tempo consumiu-se numa aragem sem dar por isso...
Procurei-a recentemente. No mesmo sítio onde os nossos olhares abriram uma brecha e descobriram o sonho em pleno dia.
Não voltei a vê-la mais. As recordações souberam-me ao amargo das cores desbotadas dos prédios.
"Nunca voltes ao lugar onde foste feliz"
A canção soou-me como uma faca que eu mesmo espetava em mim. Uma sensação inexplicável de sofrimento desejado que os Portugueses inventaram e cultivam sob o nome de Saudade.
Parei antes de chegar ao amargo das minhas memórias e voltei para trás.
Rua Passos Manuel e outras ruelas até aos Anjos, onde os encontros não têm saudades.
Tudo o que ficou de ti é que passo ao largo do Saldanha e a alma sente o baque tremendo do dia em que derrubaram a torre emblemática desse pedaço de mim.

Charlie

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