03 abril 2007

O desvio

Estive ali hoje.
Durante anos a fio, sempre que ia com o meu ex para o Algarve, já quase no fim da viagem, via aquela placa na estrada a indicar a localidade. Lembro-me como ficava olhando para o vago casario a poucas centenas de metros da via rápida e que se ia diluindo na paisagem à medida que o carro avançava.
Das primeiras vezes, recém casada com o brilho da aventura ainda no olhar, pedia ao meu ex-marido para desviarmo-nos da rota e entrarmos naquele sítio, mais que não fosse só para ver como era. Mas ele respondia sempre que não tinha já tempo, que estava atrasado para o check-in do hotel, que para a próxima vez logo passariam por lá, e por aí fora...
Os anos seguiram-se, as férias passadas metade do tempo sozinha no hotel enquanto ele andava sabe-se lá por onde e por onde muito bem queria. As tardes na praia a ler uma revista qualquer a fingir divertir-me com o meu aborrecimento.
Na volta para Lisboa, perguntava novamente se podíamos desviar nem que fosse por cinco minutos, ao que ele respondia com a monotonia do roncar do carro a passar velozmente pelo silêncio. Até eu entender que o meu lugar era sempre o do adiamento, do amanhã, do agora não, do mais logo, do um dia destes, do logo se vê, do da próxima vez é que será e que nunca mais era...
Deixei de perguntar, fiz-me à rotina, limitei-me a sonhar de todas as vezes que por lá passávamos. A sonhar que nos restantes dias da minha vida ainda poderia ter sonhos, até ao dia em que mesmo os sonhos se transformaram em pesadelos e sobreveio o divórcio.
Hoje, desviei-me da via rápida e senti como se estivesse a atravessar o portal da liberdade. Estacionei o carro e andei a pé por aquelas ruas provavelmente iguais a outras em qualquer parte do Algarve, mas que me encheram de uma alegria indescritível.
Andei devagar, olhei para as casas, para as pedras do chão, para a areia que se acumula em camadas finas junto aos lancis dos passeios, para as pessoas. Olhei para tudo como uma recém nascida com os olhos rasos de novidade, vendo o sol em cada rosto que se cruzava comigo.
Quase em frente a um café olhei para ele. Tinha bom aspecto, tranquilo e trocámos um sorriso. Tinha um olhar firme e franco, não desviando-se do meu. Andei uns passos na sua direcção e já em frente ao estabelecimento perguntei-lhe tolamente onde poderia tomar uma bica. Sorriu e entrou comigo. Sentámo-nos, passámos dez segundos pelas trivialidades e lugares comuns e após uma breve pausa, falei com ele como se de repente o conhecesse desde sempre. Disse-lhe que o mais importante para mim era estar agora naquele sítio a falar abertamente com um estranho, que nem sequer seria importante ir para a cama com ele, apenas e só o facto de estar ali pela primeira vez em tantos anos era uma conquista. Esperei um pouco, registei a sua reacção calma e continuei. Contei-lhe a minha vida de casada, as viagens, os meus sonhos, as frustrações, os anos perdidos e a angústia que me sobrevinha de saber o tempo passado irrecuperável. De como nos últimos anos de casada, me sentira com se estivesse sido enterrada viva. Disse-lhe como agora recuperada após tantos anos de ter sido posta em último lugar na lista das prioridades do meu ex, e embora divorciada há mais dum ano, este sítio representava contudo algo libertador e mágico.
Ele ouviu-me em silêncio, levantou-se e voltou a sentar-se. Pegou-me no braço, olhou-me bem nos olhos e convidou-me para almoçar.

“Sem segundas intenções” frisou bem. “Apenas almoçar e conversar. Conheço um sítio encantador e sossegado, não é muito longe daqui”.
Almoçámos, conversámos, bebemos e rimos e acabámos por passar a tarde em casa dele, uma vivenda um pouco mais para o interior onde ele vivia só, e onde desfrutei todo o sabor que pode ter a liberdade de fazer amor sem compromissos maiores do que a posse e partilha plena daqueles momentos que trago de volta para Lisboa, em que todo o prazer do mundo foi nosso...

Margarida

foto daqui

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