14 outubro 2007

O Brinde

Ela deu uma sonora gargalhada demente e ele arrependeu-se imediatamente de ter concordado com o “joguinho”.
– E agora como te sentes? – perguntou a mulher, num tom contido, mas friamente ameaçador.
Assustado, ele lembrou-se dos legumes que ela comera em vez das batatas fritas, da conversa de ter acabado a meia-maratona, de ir ao ginásio todas as manhãs antes de ir trabalhar, de três vezes por semana praticar natação à hora de almoço e de ir todos os dias para o trabalho a pé. “Seis quilómetros”, dissera-lhe como se isso fosse uma coisa boa. Aflito, tentou sorrir, como se estivesse à vontade.
– Bem… – Teve de tossir para compor a voz. – Sinto-me bem – declarou, tentando parecer sereno. – Estou à espera…
Ela repetiu a gargalhada e acabou de se despir. Olhava-o e sorria, mas com um sorriso nada amigável. Um sorriso malévolo, aterrorizante.
Ele respondia ao sorriso, enquanto, disfarçadamente, forçava as algemas que o prendiam à cama.
– São de brincar? – perguntou, quase em pânico, quando lhe viu o corpo esculpido, as carnes secas, os abdominais perfeitos e as pernas e braços sem ponta de gordura.
Sem fechar o sorriso, ela levantou os braços e apanhou o cabelo num rabo-de-cavalo, obrigando-o a admirar a perfeição dos seios, redondos e duros.
– São para brincar – respondeu ela, reparando nos nervosos movimentos nervosos das mãos dele –, não são de brincar – concluiu, com um temível brilho no olhar.
– Estás a falar de quê? – perguntou ele, já esquecido da sua pergunta ou das algemas, magnetizado como estava pelos seios maravilhosamente esculpidos que se espetavam apetecivelmente na sua direcção.
A sobrancelha esquerda dela baixou, sinalizando a desconfiança que a pergunta dele lhe causara. Olhou para as mãos dele, agora imóveis, e fixou-lhe o olhar, que continuava cravado no seu peito. A sobrancelha direita solidarizou-se com a esquerda e, ambas, carregadas como uma tempestade tropical, quase que se uniram, obscurecendo-lhe o olhar e o rosto:
– São de brincar?! – murmurou ela, olhando os seus seios, e lançou-lhe com raiva: – O que é que estás a insinuar?!
– De quê?! – cacarejou ele. – De quê?!
Apavorado, o homem perdeu o controlo do rosto e, sincronizadamente, os seus lábios e pálpebras efectuaram movimentos semelhantes e, como numa repartição pública, os superiores afastaram-se dos inferiores, como se estes tivessem tinha. E ele deitado, nu, de mãos algemadas e olhar perdido, estabeleceu uma nova definição para o ar de parvo masculino – o que não é fácil, convenhamos. De boca e olhos escaqueirados, estáticos, expectantes, em pânico, olhava-a num silêncio sepulcral. Por sorte, o indicador direito quis juntar-se ao nariz, num habitual tique nervoso de desunhada coçagem, e, num súbito clarão, disparou:
– Eu estava a falar das algemas. Das algemas. São de brincar? As algemas, as algemas são de brincar?
– Ah – suspirou ela, friamente, como faria um contrariado carrasco na Florida com uma súbita, mas temporária, quebra de energia. – Por momentos, pensei que estavas a… – Calou-se, preferindo não verbalizar tão iníquo pensamento.
– As algemas estão a apertar-me – queixou-se ele, conseguindo emitir em tom de brincadeira para não dar parte de fraco.
– Hmmmm… – por uma vez ela fez um sorriso normal. – Faz parte do jogo, querido, faz parte do jogo – disse, encolhendo os ombros enquanto se dirigia ao fundo da cama. Parou e observou-o com atenção.
Mexeu-lhe nos pés com desdém e, com ar enjoado, inquiriu:
– Não cuidas muito bem dos teus pés, pois não?
Ele ergueu as sobrancelhas espantado, sem perceber o alcance da pergunta.
Ela fez um esgar de desprezo e desconforto.
Ele tentava, com muito esforço, disfarçar os seus verdadeiros sentimentos e mostrar-se tranquilo.
– Eras tu que dizias que os homens gostam de estar nas mãos das mulheres, não eras?
Ele mostrou os dentes, mas não conseguiu sorrir.
– E agora? – ela repetiu ao milímetro a gargalhada demente de quando acabara de fechar as algemas. – Ainda pensas o mesmo?
Ele ergueu o pescoço e acenou com a cabeça positivamente.
Ela sorriu, esperou que ele se sentisse confiante para abrir um sorriso tímido em resposta e, com estudada brusquidão, fechou o sorriso e sussurrou:
– “God, I love you”
Reconhecendo a frase e o filme, ele ficou lívido, deixou de sentir o corpo e sentiu-se diluir no colchão.
Olharam ambos para os pés dele.
Ela riu, ele não.

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