Já tinha perdido o conto às vezes que passara àquela rua. Um mero passo de passagem entre um qualquer ponto de partida e um outro lugar de destino de chegada indefinida. Tal como no anonimato dos amorfos viajantes, de sono ainda em cansaço, dissolvidos nas manhãs-madrugadas em comboios suburbanos. Deixam que sejam os rostos e paisagens a passar vorazmente pelas janelas das suas interiores quietudes. Assim, quando a atravessava, era aquela rua que passava por mim e não eu por ela.
Não lhe conhecia, nos anos iniciais, mais do que a vaga impressão da placa toponímica, de cujo nome nunca me recordava e, mais tarde, duma particular pedra de passeio onde uma distracção me levara um sapato a fazer companhia ao seu par, ainda em bom estado, rumo ao desprestigiante final na indiferença dum contentor de lixo.
E foi nesse dia que reparei, pela primeira vez, naquele cortinado a esconder subitamente o que eu adivinhara ser a persistência dum olhar. Fixei o ponto, a casa, o número da porta e olhei pela primeira vez para um fio de ferrugem com que as escorrências da ferragem tinham tingido a pintura da varanda.
- Nunca pensaste, quando das centenas de vezes que pisavas as pedras desta rua, que ficavas cada dia mais e mais aqui? - Disse ela ajeitando o lençol que cobria os nossos corpos suados. - Que embora passasses como se nada mais existisse senão o teu destino, ela já não era a rua que se tinha tornado nos dias em que não a atravessavas? Que quando desaparecias ao fundo dela ficava o vazio do dia ansiando pelo teu regresso?-
Calei-me pensando como vivemos fechados nos nossos invólucros, nos nossos universos que julgamos projectados ao infinito. Perfeitos até nas inúmeras imperfeições com que arquitectamos os valores que nos orientam e como passamos a vida olhando a partir do nosso ponto de observação para a grandeza do céu como se ele fosse só um e apenas o nosso. Como se o brilho de cada ponto fosse apenas um ponto do nosso universo e não universos dos quais somos apenas um ponto...
Levantei-me e atrevi-me, na nudez da manhã que despertava, a olhar para a rua vazia.
Encostado à varanda olhei para a ferrugem que teimava em reaparecer.
Senti de súbito a suavidade da sua mão no meu ombro e o calor da face no outro. Olhei para o extremo oposto da rua, para o vermelho do céu, e, em retrospectiva, para a adrenalina do dia em que entrara na sua casa pela primeira vez. Dos beijos ardentes, dos corpos em delírio, da noite feita em fogo...
Encostou-se mais a mim e dizendo baixinho para irmos para dentro que ainda corríamos o risco de sermos vistos nus, olhou secretamente para o passeio. Para o sítio onde anos antes saíra pela calada da noite e de faca na mão tinha levantado a pedra da calçada onde eu horas depois encalharia...
Foto daqui
Charlie
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