09 julho 2015

«Desvirtudes da ventura» - António Eça de Queiroz


Val­de­mira Gomes do Ó – ou Mirita, como todos a conhe­ciam em Tagilde, onde geria com pulso de ferro um mini-mercado com tasca asso­ci­ada – atra­ves­sou a ponte sobre o Tâmega em direc­ção à bela Igreja de S. Gon­çalo, onde entrou ani­mada de plano con­creto. Já den­tro do rico tem­plo pro­cu­rou a pequena capela do santo, que à hora do almoço não apre­sen­tava grande movi­mento – ape­sar daquele pri­meiro domingo de Junho ser a sua festa anual.
Junto ao túmulo de cal­cá­rio polí­cromo ape­nas duas mulhe­res reza­vam, tocando o monu­mento umas vezes com as mãos, outras com a cabeça.
Mirita espe­rou, de joe­lhos no chão.
A seu lado, no inte­rior de um saco colo­rido feito em espesso tecido bor­dado com moti­vos flo­rais, des­can­sava um outro saco de plás­tico trans­pa­rente bem cheio de Doces do Santo – uma espé­cie de cava­cas de Resende de for­mato ine­qui­vo­ca­mente fálico. Ela e o marido iriam nos dias mais pró­xi­mos ter por sobre­mesa exclu­siva os conhe­ci­dos ‘Cara­lhos de S. Gon­çalo’.
Mas fal­tava o prin­ci­pal, de acordo com os con­se­lhos da mulher de saber que con­sul­tara há duas sema­nas na Por­tela do Gove: devia esfre­gar a testa do corpo no túmulo do santo, mas sem qual­quer roupa em cima…
Por isso viera sem cue­cas.
Res­tava aguar­dar o momento em que a capela não tivesse nin­guém: então iria erguer a saia, esfre­gando de seguida a fel­puda inti­mi­dade no cal­cá­rio pin­tado que cobria e alin­dava o túmulo do santo padro­eiro de casa­doi­ras e infér­teis de longo curso.
Final­mente o momento che­gou.
Nin­guém à vista!
Mirita levan­tou a saia, que esco­lhera larga e apro­pri­ada à ousada mano­bra, e, cheia de cui­da­dos, esfre­gou uma e outra vez a testa do sexo no vér­tice já um pouco gasto do velho túmulo – ao mesmo tempo que mur­mu­rava a ladai­nha que a Bruxa de Eiriz, como era conhe­cida a sua mulher de saber, lhe indi­cara por con­ve­ni­ente.
Na sua devo­ção paro­xís­tica nem deu pela apro­xi­ma­ção de uma outra mulher, bem mais velha, que a assus­tou com um comen­tá­rio tro­cista:
– Ó san­ti­nha…, deixe-se lá disso, carago… Olhe que não vão ser essas esfre­ga­de­las que a vão aju­dar, isso é garan­tido…
Mirita, que bai­xara num repente o largo ves­tido e se apres­sava a ganhar alguma com­pos­tura no meio de uma cora­dela que não enga­nava nin­guém, apressou-se a ripos­tar uma quase irada e gague­jante per­gunta:
– E quem é você para saber se fun­ci­ona ou não?…
– Sou par­teira diplo­mada, Geno­veva Pires ao seu dis­por… Mas diga-me só uma coisa: já fez algum teste de fer­ti­li­dade?…
– Já fiz sim senhora!, e o dou­tor disse que eu não tinha nada estra­gado…
Então a diplo­mada Geno­veva pediu-lhe para a acom­pa­nhar para fora da igreja, pois tinha algo de muito impor­tante para lhe dizer.
Já cá fora, no par­que late­ral ao con­vento, mesmo em frente ao Museu Ama­deo de Souza-Cardoso, as duas encon­tra­ram poiso calmo e rela­ti­va­mente dis­tante de ouvi­dos alheios.
Geno­veva Pires foi direita ao assunto:
– Minha san­ti­nha, se você não tem nada estra­gado… então quem está estra­gado é o seu homem. Ele porta-se bem no ser­viço?…
Que sim, que era um ani­mal com­pleto, que não a dei­xava em paz noite nenhuma… A não ser quando apa­nhava grossa car­ras­pana. E acusava-a de não lhe dar filhos, um que fosse, e ela que bem que­ria, pois seria maneira dele a dei­xar em paz por uns tem­pos, ao menos…
– Então é por­que tem os lei­tes estra­ga­dos…, disse a diplo­mada em tom pro­fes­so­ral.
Que não podia ser, que nem lho pode­ria dizer, que a matava, que lhe fugi­ria – lamentava-se Val­de­mira Gomes do Ó, com lágri­mas fáceis a inflamar-lhe já as vis­tas.
O con­se­lho da diplo­mada par­teira che­gou seco e pesado com um relâm­pago do estio:
– Arranje outro macho para o ser­viço… Mas longe daqui, que não seja conhe­cido… E faça a parte de comer os doces, e diga ao seu homem que veio à igreja esfregar-se, que ele assim achará que foi mesmo mila­gre…
Da ime­di­ata reac­ção furi­osa de Mirita resul­tou o fim da entre­vista, com a par­teira Geno­veva a bater em reti­rada no meio de comen­tá­rios pouco abo­na­tó­rios à inte­li­gên­cia da puta­tiva mãe frus­trada.
À falta de melhor, a gerente comer­cial de Tagilde vol­tou à igreja em busca de con­solo no con­fes­si­o­ná­rio.
Cinco meses se pas­sa­ram, assim como muita água do Tâmega cor­reu por baixo da velha tes­te­mu­nha gra­ní­tica de napo­leó­ni­cos esfor­ços e galo­pes libe­rais ou abso­lu­tis­tas.
Num iní­cio de tarde outo­nal, Val­de­mira do Ó saía do res­tau­rante ‘Zé da Cal­çada’ apo­de­rada do braço de um homem atar­ra­cado que se esfor­çava, de forma quase hos­til para ter­cei­ros, por protegê-la de qual­quer encon­trão do muito povo que ani­mava as ruas. A pro­tu­be­rân­cia ven­tral que Mirita exi­bia não dei­xava dúvi­das: estava grá­vida, mui­tís­simo grá­vida!…
O casal encaminhou-se para uma Toyota Hiace, onde o homem, com cui­dado extremo, aju­dou a mulher a subir e a instalar-se como­da­mente no lugar do pas­sa­geiro. Depois, ligando o rádio e beijando-a com cari­nho evi­dente, rumou à Igreja de S. Gon­çalo.
Mirita cabe­ce­ava de sono quando um leve toque no vidro da Hiace a fez des­per­tar para uma incó­moda rea­li­dade: do outro lado, com um sor­riso de frin­cha negra, a par­teira diplo­mada fez-lhe sinal para des­cer o vidro.
Não que­rendo escân­dalo, a gerente comer­cial de Tagilde lá ace­deu em des­cer o vidro, para de ime­di­ato ouvir um sonoro «Ahhh!…».
– É, res­pon­deu Mirita seca­mente.
– E?…, per­gun­tou a par­teira Geno­veva.
– Oh!…, não lho vou dizer, carago…
– Diga-me só se é de longe, minha filha. Não lhe quero mal nenhum, e por isso é que lhe per­gunto se não é daqui… Por­que, veja bem, se for daqui e tiver mais filhos, ainda pode acon­te­cer uma coisa que você nunca que­re­ria… Ima­gine que tem uma menina e ela, daqui a 20 anos, se apai­xona por um meio-irmão que não conhece?…
– Bem…, come­çou a medo a futura mãe, ele não é daqui mas tem vivido por aqui…
– Eu sei tudo sobre os pais e os filhos desta cidade e arre­do­res…, bem, de quase todos… Diga-me só quem é, para saber­mos se há algum risco. Pela minha honra que nunca fala­rei no assunto…
Mirita corou como uma romã madura e bem aberta, antes de garan­tir que não havia perigo nenhum:
– … É o padre…
Geno­veva Pires dei­tou por momen­tos as mãos à cara, antes de decla­rar o seu espanto:
– Ai então não há perigo por ser o padre?!… Pois olhe que agora é que o perigo é grande, mulher!… É que eu nem lhe conheço os filhos todos, carago…
Eu bem lhe disse que isso era para se fazer longe daqui, san­ti­nha!…
A con­versa desfez-se ali, o vidro subiu len­ta­mente, com o mesmo vagar com que a diplo­mada se afas­tava da Hiace.
O atar­ra­cado marido regres­sava, de sor­riso estam­pado no rosto.
De longe ainda, apon­tou para um trans­pa­rente saco repleto de ‘Cara­lhos de S. Gon­çalo’.
Ao entrar no fur­gão anun­ciou com feli­ci­dade evi­dente:
– Hoje até me confessei!…

António Eça de Queiroz
Blog Escrever é triste