25 fevereiro 2019
«respostas a perguntas inexistentes (380)» - bagaço amarelo
Sempre tive este prazer com o café. Antes de o beber abraço a caneca fumegante com as duas mãos e aqueço-as. Pensando bem, talvez seja por isso que me habituei a gostar de países frios, pelo prazer de me aquecer.
Ela está a espreitar pela janela da cozinha na mesma posição de sempre. Tem os olhos grandes e abertos, que praticamente não piscam. Seja lá o que for que está ver não cabe em olhos semicerrados. Tenho até a sensação que olha sempre para o mesmo ponto lá fora, provavelmente a árvore do jardim.
Dou o primeiro gole e aqueço mais as mãos.
- É o nosso jardim. Está sempre igual. - digo-lhe.
Ela não desvia o olhar nem o pensamento.
- Não, não está. A árvore já foi verde, já foi vermelha e agora não tem folhas. Tudo mudou.
É então que me apercebo que ela não está a olhar para o espaço, mas sim para o tempo. É claro que não podia caber em olhos semicerrados. O tempo só entra em olhos bem abertos ou bem fechados.
- Queres que te faça um café? - Pergunto.
Alguns pássaros pousam na relva. Vêm comer o resto da comida que quase todos os dias damos a alguns gatos vadios que nos costumam visitar pela manhã. Ela não desvia o olhar.
- Não, já sabes que não gosto do teu café instantâneo mas, por favor, nunca pares de me perguntar. - Sorri.
Dou outro gole. Fecho os olhos para procurar nesse tempo a improbabilidade que nos permitiu partilhar esta manhã. Não a encontro, mas sei que está lá e é tão esguia como a nossa história. Talvez tudo deva ser apenas exactamente assim: um mero acaso.
Ela sai e afasta-se. Eu termino o café. As minhas mãos estão quentes. É por isso que gosto de países frios.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»
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