05 setembro 2008

A casa da praia

por Charlie

Era já noite com a lua a aproximar-se do seu estado cheio num céu claro de fim de Verão. Vista de baixo durante o dia, junto à praia que a estrada ladeava, não era mais que mais uma casa encastrada lá no alto por entre vegetação e penedos enormes e cinzentos.
Mas agora que dera os primeiros passos após ter dito pelo interfone embutido no pilar do portão ao que vinha, sentia progressivamente a magia duma flor a abrir, inesperadamente revelada a partir do botão, passo após passo após o som duma palavra secreta.
Andou uma boa dezena de metros pelas passadeiras entre a relva do jardim suavemente iluminado e abundante em toda a espécie de plantas num arranjo cuidado e envolvente rumo à porta de vidro de armações em madeira que deixavam antever um interior de tons ocre claro, mais por efeito das luzes interiores do que da cor das paredes.
Sentiu-se por momentos a menina dos contos das florestas encantadas e deu por si a pensar que não se espantaria se na volta do último arbusto desse com um duende ou um esquilo falador ou até mesmo se tivesse que abaixar-se de súbito perante o voo rasante dum provecto e ajuizador mocho.
Todos os pensamentos se diluíram no ligeiro acelerar do coração quando transpôs o limiar da entrada através da ampla porta de vidro meio aberta e desceu o pequeno degrau que dava para o espaço muito docemente iluminado que se lhe abria agora ao olhar.
Era um salão amplo de solo em tijoleira vermelha dividido por um enorme sofá de cor branco sujo ao lado do qual se via uma lareira agora apagada dada a estação do ano em curso. Mas o que lhe prendeu deveras a atenção foi a surpreendente parede do fundo quase toda feita de vidro, melhor; de duas grandes portas de correr de vidro que projectando a sala para o vazio deixavam o estonteante espectáculo da baía e da praia aos seus pés, desenhadas em sonho luz e reflexos do luar.
Uma voz grave fê-la despertar do encanto e instintivamente olhou na direcção do som.
- Aproxime-se... isso. Aí está bem!-
Ficou-se quieta à voz de mando. Reparara agora nas costas dum cadeirão de cabedal em tons escuros de onde sobressaía uma mão de anéis nos dedos segurando um cálice meio duma bebida de tons iguais ao cadeirão. Ficou a olhar tentando, num misto de desconforto e curiosidade, saber quem era aquele homem que solicitara os seus serviços e que agora a recebia assim, de costas voltadas e ordenando-lhe distâncias.
Um silêncio instalou-se assim como o aumento da sensação de desconforto, uma vontade de fugir de repente dali, de correr jardim afora, descer a vereda até ao carro;
- porque é que não levara ao carro até ao portão? - lamentava-se agora nos seus pensamentos. Um piscar nervoso de olhos fê-la desviar o olhar novamente para a parede vidrada de onde a magia subitamente dera lugar a um dejá vu indesejado, a lua sempre igual e a baía igual a todas as outras... Inspirou fundo. Reparou então no reflexo quase apagado do interior da sala que o vidro devolvia, na sua própria imagem, apenas um vulto, e no sorriso quase adivinhado por entre o translúcido dum sofá escuro que agora via de frente através do vidro.
- Ah...!- ouviu-se num tom inesperadamente jovial, mas que logo retomou a serenidade e inflexão grave do início. - Levou algum tempo a descobrir... Sim, gosto de receber assim, nem você me vê, nem eu vejo mais de si do que a baía sobre a qual irá flutuar como num sonho. Faça apenas o que eu lhe pedir.-
Mandou-a despir-se lentamente. - Essa peça primeiro... assim... agora dê uma volta... não tão depressa, faça do despir uma flor a abrir lentamente e à medida que mais e mais se abre, mais e mais pétalas vai deixando cair. Uma agora, ficando a flutuar no ar até tocar no chão como um beijo. Outra depois, que já livre de todo o peso, toma a leveza do ar, e sê tu própria – tratava-a já por tu - toda a leveza do ar...-
Sentiu-se lentamente invadida por uma estranha calma primeiro e depois uma sensação de maravilha como nunca tinha sentido antes. Obedecia à voz de comando de olhos fechados como ele ordenara, finalmente nua, mera nuvem navegando entre luares através de todo o céu e eternidade, já não salão debruçado sobre o abismo e a baía, nem voz de comando, mas ela mesma toda o Universo em cada poro descoberto em si, mãos e pele num infinito corpo de sensações.
Masturbou-se seguindo a voz que era já a voz do seu interior, intensa e completa, culminando num espasmo longo de prazer como jamais sentira nem pensasse ser possível sentir.
Depois; um momento de silêncio sem medida. Sem que mais alguma palavra se ouvisse, vestiu-se e dirigiu-se à porta por onde entrara e que sendo também de vidro prolongava deste lado a sala pelo jardim, tranquilo e agora plenamente cheio de luar.
- Tens aí sobre a mesa do lado esquerdo, debaixo do pisa papéis, um envelope. Leva-o. É o que combinámos.-
Esperou que saísse e depois levantou-se do cadeirão. Acabou a bebida, poisou o copo e dirigindo-se à parede, abriu uma porta disfarçada, quase invisível. Desligou uns equipamentos e retirou uma cassete. De sorriso nos lábios foi até ao gabinete ao lado e colocou-a numa estante junto a outras dezenas. Sentou-se novamente e olhando para a invejável colecção privada deixou-se trespassar pela profunda satisfação que só um grande diseur de poesia como ele sabe sentir após a emoção única e inultrapassável de declamar um grandioso poema...

Charlie

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