13 setembro 2008

A Predadora.

Por Charlie

...Teria que ir acordá-lo e desfazer-se dele...
(dedicado a ti que és insaciável)
A casa estava decorada ao estilo minimalista e sendo pequena via assim aumentada a impressão do espaço de que na verdade não dispunha.
Correu o anteparo de vidro acrílico onde uma mole vaga de gotas impressas se misturava agora com partículas de água que de verdade escorriam por entre essas outras, mais sugeridas que representadas. Uma pequena nuvem de vapor libertou-se em névoa do seu corpo, invadindo o restante da minúscula casa de banho, espalhando-se e como por encanto, indo desfazer-se no embaciar instantâneo sobre o espelho e azulejos.
Saiu de toalha à cabeça após ter-se limpo e esfregado vigorosamente e olhou com desagrado para a superfície brilhante transformada já num quadro de grosso orvalho a escorrer em dois ou três fios rumo ao lava-mãos.
O quarto logo ao lado, contíguo ao roupeiro de portas brancas, lisas e sem relevos, onde a casa de banho parecia estar embutida, devolveu-lhe um largo sorriso. Gostava de ver-se assim, nua, de aspecto ainda jovem através do enorme espelho. Cobria quase toda a parede fronteira à divisão de onde acabara de sair, com excepção dumas faixas laterais e de parte dos primeiros sessenta centímetros a partir do chão que eram ocupados por um móvel baixo e comprido com gavetas sobre cujo tampo brilhante se destacava, por entre uns pequenos frascos de perfume, um arranjo de ramos secos de tons escuros. Verdadeira "pièce de resistance", elevava elegantemente o olhar num fluir contínuo a partir do jarro estilizado em cristal, rumo a um momento Zen. Mesmo à ponta, no extremo oposto ao da cabeceira e quase a destoar do minimalismo da decoração, um pequeno televisor de tons vagamente prateados sobre um leitor de filmes. Logo ao lado ainda, um pauzinho de incenso no seu suporte e um minúsculo guarda-jóias faziam o pleno.
O espelho de tamanho desmedido, para o que era um quarto pequeno, - e o facto do móvel das gavetas ser baixo, parelho ao perfil da cama, ficando quase fora do olhar - além de multiplicar a tal sensação de espaço, aumentava ainda mais a luz natural filtrada pelos cortinados que cobriam por completo a parede e a porta de correr que dava para a varanda. Contrariamente ao que é habitual, a cabeceira da cama ficava voltada precisamente para essa entrada de luz natural embora as cortinas de cor clara, algo entre o translúcido e o opaco, ao ocupá-la de um todo, fossem mais como uma parede de luz que se prolongava quarto adentro já no virtual mundo paralelo e simétrico dos reflexos.
Olhou para ele espalhado pela cama. Dormia profundamente. Deixou-o estar. Afinal estaria decerto cansado da noite anterior. Sentou-se em silêncio aos pés da cama mirando-se mais uma vez ao espelho.
Aproximou-se e tocou-se através do vidro.
Como aquele espelho lhe era inseparável… Se alguma vez mudasse de casa teria de levá-lo com ela. À mente vieram-lhe imagens de si própria e dos corpos entregues, pernas e braços, lábios em voragem e volúpia percorrendo todos os caminhos nas sessões loucas de sexo a várias horas do dia, variando os homens com as horas, e guardando um especial para a noite. Tal como fora na noite passada. Tinha-lhe sido difícil arrancar este, um homem que se convencera ser de firmes princípios. Longe de tê-la desmotivado, fora antes e pelo contrário em cada avanço frustrado, mais um estímulo, mais um desafio a vencer. Casado e chefe de serviço, não se lhe conheciam escapadelas, infidelidades. Não por falta de oportunidade ou interesse pelo belo sexo, mas pela postura pessoal, pela norma de conduta que se impusera, numa palavra: pelo autodomínio.
Olhou para o quadro que desta feita ocupava, como peça única, uma parte da parede aos pés da cama. Uma cópia dum Picasso de boa qualidade: “Les Demoiselles d'Avignon” . Tinha o condão de arrancar sempre umas palavras a propósito e circunstância aos seus visitantes e ela passara a interpretá-las como a chave secreta feita em sons, rumo ao recanto dos prazeres, esse mundo de inúmeras variáveis e de perfil único em cada ser humano.
Olhou de novo para ele. Tecera-lhe habilmente a sua teia infalível de sedução. Não se enganara quando três meses antes tropeçara - a fingir ser sem querer - nele. Tudo fez para tê-lo por uma noite e aí estava agora, na sua cama, reduto de intimidade, profundamente adormecido, vencido...
Aquele homem era de fogo intenso, quiçá fonte de seu autodomínio e do esforço feito por controlar-se, subitamente libertado no primeiro beijo furtivo dois dias antes e que explodira inesquecível na noite que se finara em sucessivos vulcões, agora já ultrapassados.
Sorriu. Sempre em silêncio abriu a gaveta mesmo junto à cabeceira e retirou umas peças de lingerie. Vestiu-se e foi até à cozinha. De copo de leite na mão consultou a agenda.
Espreitou novamente para o quarto.
Teria que ir acordá-lo e desfazer-se dele. Para hoje teria a tarde ocupada, e à noite...
Ah... A noite seria o culminar de toda uma temporada.
Para passar o fim de semana alargado, chegaria no voo de Londres do final da tarde; ela, a sua namorada...

Charlie

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