01 fevereiro 2006

O almoço de Natal

A mesa estava posta com o requinte que a quadra exige: toalha de pano com motivos natalícios; os melhores talheres e loiças; ilustres copos de pé alto e uma vela acesa no centro da mesa.
Os quatro, pai, mãe, filha e genro, de guardanapos no colo, preparavam-se para o almoço de Natal, de sorrisos em formol e palavras em surdina.
O genro sentia uma inusitada e inexplicável frieza, confirmada quando o sogro lhe serviu um vinho tinto corrente de uma marca de supermercado. Algo não estava bem, nada bem.
Enquanto a sogra se levantava para abrir a terrina e servir a sopa, ele procurou os olhos da mulher tentando obter uma justificação, uma pista que lhe permitisse ter uma ideia do que se estava a passar. Ela ostensivamente baixou os olhos, evitando qualquer contacto. Resignado, agradeceu a sopa, pegou na pesada e amarelecida colher e começou lentamente a comer, calculando a qualidade e quantidade de elementos químicos que iria absorver no contacto com os vetustos talheres.
Todos comiam em respeitoso silêncio, até que
– Nunca me bates nas nádegas – disse a mulher, entre duas colheres de sopa.
Ele engasgou-se, tossiu, olhou para os sogros que não deram sinais de ter ouvido a queixa da filha e olhou-a para confirmar que tinha ouvido o que ouvira.
Ela acenou com a cabeça, confirmando a afirmação.
Ele levou outra colher de sopa à boca, procurando na normalidade do movimento algum consolo e segurança.
– Nunca me bates nas nádegas – tornou ela a lamuriar-se.
Ele abafou um risinho nervoso que lhe tomava conta do peito e ameaçava explodir descontroladamente e, sem levantar a cabeça, pousou a colher no prato, procurou o copo e preparava-se para beber quando o sogro lhe perguntou de chofre:
– Não estás a ouvir, João?
Ele perdeu a noção do espaço, sentiu uma vertigem e derrubou o copo cheio de vinho tinto, fazendo a mulher e os sogros darem um salto, afastando-se da maré vinícola que se espalhava em todas as direcções. Ele olhou a mesa a escorrer, balbuciou um abafado pedido de desculpas, endireitou o copo e erguendo-se devagar, apoiado na mesa, reafirmou:
– Desculpem, não sei o que se passou.
– Nós é que não sabemos o que se passa, João! – Recriminou a sogra, ríspida, como ele nunca a vira ou ouvira. – A Luisinha diz que tu não lhe bates nas nádegas!
Ele tornou a sentar-se, incrédulo.
O sogro, ainda em pé, tomou a palavra:
– Sim, a Luísa tem-se queixado à mãe que, desde que vocês se casaram, tu nunca mais lhe bateste nas nádegas.
– Eu nunca lhe bati nas nádegas – respondeu ele, num fio de voz.
– Pior – gritou o sogro. – É verdade, Luísa, este animal nunca te deu umas boas palmadas nas nádegas?!
– Não, paizinho, nunca... – choramingou a Luísa.
– Ó meu Deus – invocou a sogra, juntando as mãos no peito – isso é que tu nunca me tinhas dito, filha...
A mãe aproximou-se da filha e abraçou-a.
– Eu pensava que depois de casarmos...– começou a Luísa.
– Não, não! – Gritou o pai. – Casaste com um banana, filha! Um banana!
– Ó paizinho, não diga isso. – A Luísa largou a mãe, que chorava olhando o genro, e, virando-se para o pai, continuou: – Eu pensava que se me pusesse a jeito ele se entusiasmasse, paizinho, se entusiasmasse e me desse umas palmadas nas nádegas...
– Ó filha, te pusesses a jeito, filha... – soluçou a sogra. – És um anjo, minha filha, mas o João não é para ti, o teu pai tem razão, ele é um banana.
– Um banana! – Tornou o sogro, satisfeito com a escolha da fruta. – Nem umas palmadas nas nádegas da mulher sabe dar, o banana! Que tristeza... Que pouca sorte...
– Mas eu não sabia que ela gostava – tentou ele justificar.
– Não gostava?! – Rosnou a sogra. Ele olhou-a espantada, ela olhava-a, mas não o via. – Não gostava?! Mas há lá alguma mulher que não goste de levar umas boas palmadas nas nádegas?!
Ele sentiu a boca abrir e fechar sem produzir nenhum som. Viu o vinho entornado, a sopa coalhada e o cabrito assado em cima do fogão a rir-se, gozando-o.
– És um banana – repetia o sogro, abanando a cabeça e olhando-o com absoluto desgosto e desânimo. – És um banana.
– Ela nunca me disse nada – gemeu ele. – Podia ter dito.
– Podia ter dito?! – A sogra estava completamente descontrolada. – Podia ter dito?!
– Calma, mãezinha, calma.
– Mas quem é que tu pensas que a minha filha é? – Gritou a sogra. – Pensas que ela é o quê?!
– Calma, mulher – recomendava o sogro, já sentado, mas afastado da mesa, – calma.
– Calma, nada! – A sogra impôs-se, baixou o tom de voz, que continuava ameaçador e continuou: – Então, o senhor queria que a minha filhinha lhe pedisse – fez voz de coitadinha – "Ó Joãozinho, bate-me, bate-me nas nádegas, que eu gosto."
Ele olhou a sogra sem saber se havia de dizer alguma coisa, pensou em dizer que sim, que se ela gostava devia tê-lo dito, mas em boa hora não o fez, pois, o pior ainda estava para vir:
– A minha filha não é nenhuma rameira! – Espumou a sogra. – Pode gostar que lhe batam nas nádegas, como todas as mulheres, mas não o diz. Não o diz, ouviu?! É educada! Educada!
A filha abraçou a mãe que chorava baba e ranho – mais ranho que baba, mas isso é irrelevante – e fez sinal ao pai para dizer qualquer coisa.
O pai, compreendendo o melindre da situação e temendo que o cabrito ficasse rijo ou mesmo que encarquilhasse com o frio – as personagens pensam assim, o que pode um narrador fazer? O homem era maluco –, tornou a encher o copo do genro e disse:
– O que é que tu pensas da vida, meu rapaz?
A filha acenou-lhe agradecida, a mãe fungava e o genro sentiu que tudo se podia ainda compor.
– Achas que consegues dar conta do recado? – Insistiu o sogro.
– Deixe-me comer o cabrito – disse o genro, cheio de valentia, – que eu logo lhe dou o que ela quer.
A sogra suspirou e assoou-se ruidosamente, desanuviando o ambiente.
– Amanhã nem te sentas! – Berrou o pai, com uma gargalhada.
– Ó paizinho... – disse a filha, embevecida perante a perspectiva.
– Também não é preciso exagerar – aconselhou a mãe enquanto limpava o nariz. – As nádegas precisam de habituação e cuidado... É preciso jeitinho...
– Com jeito vai... – berrou o sogro, rindo. – Com jeito!
Ela lançou-lhe um beijo, ele respondeu mordendo o lábio inferior e com a mão direita deu umas palmadas em nádegas imaginárias.
– Tem jeito, o gajo – lançou o sogro, fazendo um brinde com o genro: – Que nunca nos faltem nádegas, meu rapaz!
– Que falta de educação, Francisco – recriminou a sogra, pegando na colher com ar afectado, enquanto eles batiam com os copos. – Que falta de educação.

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