Ficara estabelecido desde o primeiro instante, em acordo surdo que as semanas subsequentes ratificariam, a profunda antipatia que entre nós selaria para todo o sempre o tom do nosso relacionamento.
Na verdade não gostara dela ao primeiro sinal tal como ela, sem qualquer rebuço, me fizera sentir que entre a massa amorfa daquele conjunto de alunos, eu seria para ela, e por uma questão de isenção profissional, apenas um entre esses outros números a mais que constariam das listas no final dos períodos lectivos.
E aquilo que fora, nos primeiros minutos da primeira aula, uma acre impressão, - que passara a tónica após as duas frases que trocáramos- evoluiu para a hostilidade declarada quando no primeiro teste me deparei com a nota classificativa: apenas o antigo e inenarrável “medíocre mais”. Uma nota que além de ser nitidamente injusta por comparação com os testes dos meus colegas de turma, me soubera ao horror dum náufrago enleado nos cordames, preso e arrastado aos destroços: tinha a certeza que por mais esforços que fizesse morreria afogado a poucos centímetros da superfície salvadora do “Suficiente”.
Repetiram-se as provas, e repetiu-se a classificação. O primeiro período lectivo marcado na pauta pela nódoa duma e única negativa de valor igual àquele com que ela me pontuava nos testes. Descobri que ela nem os lia, aquí e ali punha a eito uns traços a vermelho a justificar o costumeiro “ mediocre mais”.
Foi então que um rasgo da fortuna, um momento que o Destino guarda como oportunidade a não repetir, se abriu por um instante.
Nesse dia, seguindo eu já atrasado, dei com ela a entrar para a sala de aulas. Mais uns segundos e teria a implacável marcação de falta. Nos bicos dos pés, fazendo-me invisível junto à parede e quase sem ruído, saltei os últimos metros antes que a porta se fechasse. Bastaria esgueirar-me por entre a primeira fila de carteiras e sentar-me em silêncio. Foi então que reparei no envelope que lhe caíra dos livros que ela transportava. Abaixei-me, apanhei-o e deslizei para o meu lugar. Estava preso duma terrível curiosidade, receoso de ser descoberto mas de tal forma excitado que não resisti. Disfarçando o nervosismo e muito discretamente para que ninguém notasse, retirei a carta do envelope já aberto e li o seu conteúdo. Um enorme sorriso me encheu por dentro, tão intenso que sem o mostrar nos lábios, temi que me traísse no resplandecer do olhar.
Reparei como o envelope não tinha nada a ver com o conteúdo e que apenas servira de invólucro pontual. No fim desse dia de aulas, já em casa, li e reli a carta guardando-a depois em sítio seguro.
E foi com a segurança na voz que no dia seguinte e ainda no corredor e em particular lhe disse:
- Professora?!... A Gisela manda-lhe um beijinho...- Ficou a fitar-me estupefacta e ruborizada. Continuei: - Já agora, sei que o seu marido é filatelista e tenho aqui uma coisa que ele gostaria de ter.- Acto contínuo tirei da minha pasta o envelope vazio que lhe entreguei. - É só descolar o selo... é lindo e ele irá gostar...-
Apenas uma única frase foi trocada meses depois entre nós. Sem que tivesse havido mudança de atitudes, passei esse ano lectivo com a pauta abrilhantada pelo “bom mais” depois de lhe ter dito no final do segundo período, e novamente em privado, que a nota “bom menos” não me agradara de sobre maneira.
A carta que ainda guardo como triunfo atípico duma época bem distante dos tempos actuais, valeu-me além da nota final, o gozo dumas boas punhetas tocadas às extensas das elucubrações lésbicas cuja leitura ainda hoje me serve de inspiração para alguns textos que vos confidencio neste espaço....
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