Desde muito pequeno, embora a expressão muito pequeno seja sempre relativa quando aplicada a um bisonte nascido com perto de cinco quilos, dediquei particular atenção às questões da língua.
A língua, que até à Pátria interessa sobremaneira, é de facto um instrumento fabuloso ao ponto de facultar por si mesma, pelo manancial do sentido duplo, motivo para algumas interessantes dissertações que tanto incidem no papel do escalope enquanto dotado de papilas como no de substituta ou de complemento de outros órgãos de um corpo humano.
Mas a língua, a portuguesa, que tantos afirmam traiçoeira acaba por ser a que me traz aqui para vos maçar com estas palavrinhas de puro jornalismo (só para entreter a malta).
Isto a propósito do tal duplo sentido que parece marcar a língua na sua utilização prática e até pode ilustrar uma característica lusitana mais comum do que gostamos de assumi-la.
Senão, vejamos: se tivermos duas pessoas a encararem uma outra mal encarada podemos obter em simultâneo duas verbalizações distintas e aparentemente contraditórias. Enquanto uma dessas pessoas pode optar por um esta gaja tem um mau feitio do caraças, é mesmo fodida! à outra pode sair-lhe, de forma espontânea, um esta vaca de merda tem mesmo tromba de mal fodida.
Com a mesma palavra a língua consegue transmitir a convicção de que a pessoa é mal e de que é mesmo, embora o seu papel possa ser de maior protagonismo do que se julga se tivermos em conta a tradução literal da palavra que também é fodida pela sua ambivalência.
Contudo, este fenómeno pode estender-se aos termos habitualmente associados à língua, nem que apenas por questões fonéticas. Por exemplo, e enfatizando a duplicidade intrínseca, se nos referirmos a um linguado podemos estar a recorrer a um atributo pouco explorado da língua que é a sua função GPS: é que basta o cheiro do peixe para podermos localizar o paradeiro recente de uma língua, se cheirar a bacalhau, um peixe do norte, sabemos de imediato que em termos cardeais a língua andou mais pelo sul.
Este excepcional sentido de orientação portuga pode no entanto depender não do olfacto mas da entoação e até do centro das atenções de quem verbaliza.
É o caso da expressão lambia-te todo, que encaminha de imediato e numa perspectiva apriorística a ideia da pessoa para um todo muito distinto do selo dos correios que possa estar em causa.
Muito mais haveria a dizer acerca deste tema fascinante, até porque a língua não é parca em recursos.
Todavia, às línguas como às postas compridas a maioria das pessoas associa uma carga pejorativa que é a de se falar demais e as línguas de trapos nunca estiveram na moda.
E eu, que sempre fiz a apologia do cliché do tamanho que não é documento, mesmo não sendo dessa forma juiz em causa própria, tenho que contrariar o meu impulso para o uso excessivo da língua pois, à semelhança de outros apêndices que a anatomia ou o Diciordinário Ilustarado nos possam sugerir, não é a sua dimensão que conta mas aquilo que efectivamente se consegue fazer com ela.
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