Às vezes, não sei bem porquê, há pequenas insignificâncias que se escrevem na minha memória de forma tão vincada que nunca mais me esqueço delas. Como se fossem um carimbo, surgem de vez em quando no meu raciocínio sem razão aparente. Normalmente são olhares. Chego a ficar anos sem me lembrar deles, mas num determinado momento relembro-os com tal frescura que parece que foi ontem que os vi.
Lembro-me, por exemplo, de ver dois homens a segurarem uma gaivota viva em Lagos, no Algarve, durante umas férias que fiz ali em criança. Eu tinha sete anos, portanto isto foi há trinta e três. Eu ia para a praia com o meu pai e a minha mãe, e vi-os pela janela de trás do carro. Lembro-me perfeitamente que um deles tinha uma camisa vermelha e o outro uma t-shirt branca e suja. A gaivota tentava soltar-se em vão e o homem da camisa vermelha, que lhe segurava o bico e uma das asas, fitou-me prolongadamente até o carro desaparecer numa curva. Era um olhar ameaçador, pelo menos na perspectiva duma criança, e assustou-me.
Outra memória é de há dezassete anos, numa esplanada em Praga, na República Checa, onde me sentei para beber uma cerveja com uma brasileira que tinha acabado de conhecer. Pois bem, nessa tarde em que nos sentámos na esplanada, numa outra mesa estava uma criança com uma máscara de caveira que nunca deixou de olhar para mim. Devo ter estado ali sentado quase uma hora com a máscara sempre a olhar na minha direcção. Fiquei de tal forma incomodado com aquilo que a certa altura me levantei e dirigi-me a ela. A criança fugiu, desaparecendo por entre a multidão de Národní Trída, e os adultos que estavam na mesma mesa nem sequer se mexeram. Só aí é que percebi que nem sequer eram parentes. Nunca mais a vi, mas também nunca mais me esqueci.
Já reconheci estes dois olhares várias vezes na minha vida noutras pessoas e situações. O olhar ameaçador do homem que prendia a gaivota e o olhar quieto, ameaçador e escondido da máscara daquela criança checa. Reconheci-os em entrevistas para empregos, nas alas de segurança de vários aeroportos ou em simples balcões de atendimento público. Reconheço-os por aí de vez em quando, e é quando os torno a lembrar como se fossem uma recordação de ontem.
Memorizo de tal forma alguns olhares que já pensei em catalogá-los por níveis de ameaça e de Amor. É só uma brincadeira, claro, mas ontem, enquanto tomava café, fiz uma tabela numa folha com vários olhares de que não me esqueço, incluindo os dois que já referi, e estabeleci para cada um deles uma intensidade emocional. Tenho lá olhares com apenas alguns meses e outros com muitos anos. O olhar da minha mãe quando me encontrou depois de eu ter fugido de casa em criança, que deve ter uns trinta e dois anos; o olhar da minha filha ao meu colo, em bebé, que tem onze anos; o olhar da Raquel quando me apaixonei por ela, que tem três anos e meio. Enfim, defini ao todo mais de quarenta olhares de que não me esqueço.
Acabei de beber o café e pedi uma cerveja. Estava só num bar em Aveiro e fui deixando o tempo passar enquanto olhava fixamente pela janela. Ainda tinha o meu moleskine aberto na tabela dos olhares quando, a duas mesas de mim, uma mulher e um homem começaram a discutir. Era nitidamente um discussão conjugal e, apesar de ela tentar falar baixo, ouvia-se nitidamente tudo o que dizia. Ele estava calado como uma criança envergonhada, de olhos postos no chão.
Acrescentei esse olhar à minha tabela. Era um olhar fugitivo, um olhar para o chão para não enfrentar a discussão. Um olhar de quem já Amou mas agora vê esse Amor como uma armadilha. Está preso, quer sair e não sabe como. Já se esqueceu do que é o Amor. E foi isso que escrevi.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»