09 janeiro 2013

«Quem é a Sónia?» - bagaço amarelo

Imagino que a Sónia morreu. É uma das coisas que costumo fazer quando estou triste e me sento ao balcão dum bar a beber uísque como se não houvesse amanhã, imaginar que alguém de quem eu gosto muito acabou de morrer. Depois sofro, e embora tenha plena consciência de que estou a sofrer devido a uma mentira que eu próprio acabei de inventar, sofro realmente. Sofro tanto que acabo por chorar.
Pois bem, a Sónia morreu e as minhas lágrimas caem no balcão gasto do bar como uma chuva triste. A empregada, uma mulher que aparenta ter uns dez anos a menos do que eu, pega no meu copo vazio e pergunta-me se quero outro. Que é oferta da casa, diz com uma voz tão macia quanto uma cama com lençóis lavados e passados. Eu aceno que sim com a cabeça e sorrio-lhe.
Adoro mulheres que amaciam os modos e a voz quando vêem um homem triste. Aprendi, durante os meus quarenta anos de vida, que são o tipo de mulheres com as quais um homem não pode contar, porque quem amacia a voz dum momento para o outro também é capaz de a endurecer. Mas adoro-as na mesma. Com uma mulher de voz macia, sou capaz de passar uma noite inteira mesmo que essa noite me pareça uma eternidade.
Estas mulheres são assim, tão próximas e distantes de mim que ao pé delas não consigo ser muito mais do que um snobe idiota. Embora já esteja num estado adiantado de embriaguez e quase sem dinheiro, a seguir vou pedir outro para lhe demonstrar que só aceitei o uísque de oferta porque realmente me apetecia bebê-lo. No fim pago a conta e deixo gorjeta, apesar de provavelmente não me sobrar dinheiro para comer o resto da semana.
Os últimos clientes, uns tipos que passaram a noite com risinhos estúpidos numa mesa do canto, estão agora a sair. Deixam-me sozinho com a empregada e as minhas lágrimas param. Nem outra coisa podia acontecer, comigo na presença exclusiva duma mulher tão bonita. Agora sinto-me feliz, mas a verdade é que não posso sorrir. Uma mulher pode certamente gostar dum homem triste ou dum homem feliz, mas detesta sempre um que seja as duas coisas.
Cheguei ao ponto em que a voz se enrola na minha língua e o meu raciocínio se atola neste pantanoso terreno de desejo e uísque. De dois em dois minutos endireito o corpo encurvado e penso em qualquer coisa para dizer à única mulher da minha noite, uma empregada de bar que agora acende um cigarro pensativo e silencioso. Imagino-a como minha mulher, imagino-me como homem dela. Talvez estivesse ali no mesmo sítio, se fosse assim, mas sóbrio e a ter sexo com ela. Ambos apoiados no balcão e a suar.
O meu olhar cansado pousa no corpo dela, como um abutre que se prepara para devorar um cadáver. Mas eu não preparo nada. Ela pede-me que pague e é o que eu faço. Depois saio.
Na cidade todos têm onde passar a noite. Até os insectos que já se instalaram no calor dos candeeiros das ruas, até os cães que já se aninharam junto a uma árvore, até um sem abrigo que me olha desconfiado a partir dum vão de escada. Menos eu. Imagino que a Sónia me chama. É uma das coisas que costumo fazer quando estou só, imaginar que alguém de quem gosto muito me chama.
Quem é a Sónia?


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»