09 dezembro 2013

Luís Gaspar lê «Cinco horas» de Mário de Sá-Carneiro

Minha mesa no Café,
Quero-lhe tanto… A garrida
Toda de pedra brunida 

Que linda e que fresca é!

Um sifão verde no meio 

E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.

(Eu bani sempre os licores
Que acho pouco ornamentais: 

Os xaropes têm cores
Mais vivas e mais brutais).

Sobre ela posso escrever 

Os meus versos prateados, 

Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber.

Sobre ela descanso os braços 

Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traços 

Da minha vida passada.

Ou acendendo cigarros,
— Pois há um ano que fumo
-
Imaginário presumo
Os meus enredos bizarros.

(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beijá-la, claramente…).

Um novo freguês que entra
E novo actor no tablado, 

Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.

E o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha ideia persiste 

E nunca mais se desloca.

Cinge tais futilidades

A minha recordação,
E destes vislumbres são

As minhas maiores saudades…

(Que história d’Oiro tão bela

Na minha vida abortou:

Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou…).

Nos Cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
— Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passa em corrida.

Passar tempo é o meu fito, 

Ideal que só me resta: 

Pra mim não há melhor festa, 

Nem mais nada acho bonito.

— Cafés da minha preguiça,
Sois hoje — que galardão!
— 
Todo o meu campo de acção
E toda a minha cobiça.

Mário de Sá-Carneiro
(Lisboa, 19 de Maio de 1890 — Paris, 26 de Abril de 1916) foi um poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa