I
Nesta claridade silenciosa e pálida os vultos
deslizam como sombras no entanto nítidos e
contornados por um brilho que entontece o
olhar.
Há uma distância incomensurável entre nós. E
dir-se-ia que nenhum gesto é bastante para os
atingir. O tempo se fez distância.
Paralisado em transparência gélida eu não
mudei porém. Pelo contrário é como se
contido o ardor fosse maior.
E doloroso mais. Porque de antigamente o
não-ter e o perder ainda eram certeza de
atingir, senão de amor.
II
De amor eu nunca amei senão desejo visto ou
pressentido. Um corpo. Um rosto. Um gesto. E
nunca de paixão sujei o meu prazer ou o de
alguém. Por isso posso
mesmo as audácias recordar sem culpa.
Tudo o que fiz ou quis que me fizessem o
paguei comigo ou com dinheiro. E só
lamento as vezes que perdi
retido por algum respeito. Errei
por certo — mas foi nisso. O que me dói
não é tristeza de quem dissipou
no puro estéril quanto esperma pôde gastar
assim. O que me mata agora é este frio que
não está em mim.
Jorge de Sena
Jorge Cândido de Sena (Lisboa, 2 de Novembro de 1919 — Santa Barbara, Califórnia, 4 de Junho de 1978) foi poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário português.
Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa