18 dezembro 2016

«um gato numa varanda» - bagaço amarelo

De vez em quando morríamos de Amor. Principalmente aos Domingos depois do almoço, que era a altura em que descobríamos que não tínhamos coragem para dizer um ao outro que precisávamos de estar sozinhos. Na verdade, era também nesses momentos que tínhamos tempo para estar os dois juntos sem as preocupações inerentes à vida mesquinha que levávamos. Por isso nem sequer a nós próprios tínhamos coragem de o dizer.
Ela tinha um gato que eu nunca vi. Sempre que a visitava perguntava-lhe por ele, mas ela dizia que em Lisboa é normal os gatos frequentarem os telhados dos edifícios dos bairros antigos. Cheguei à conclusão que ele só entrava em casa para comer e saía logo outra vez. De facto, na cozinha havia sempre uma taça com comida e outra com água.

- Como é que podes ter a certeza que é o teu gato, e não outro, que vem cá comer?
- E se for outro, isso incomoda-te?

Era Domingo e eu tinha chegado apenas no dia anterior. Como é que numa relação onde só nos víamos ao fim de semana já se notava um desgaste tão grande? Pensei na pergunta, mas engoli-a imediatamente, para não provocar uma discussão.

- Se queres ter sexo antes de ires embora tem que ser agora. A seguir tenho que estudar...
- Esta semana estava a pensar ir só amanhã...
- Então deixa estar. Temos logo à noite.

Se ela ia estudar, eu tinha a porta aberta para me perder em Lisboa. Dei-lhe um beijo seco nos lábios e saí. É, sem dúvida, uma das cidades que eu gosto de visitar e revisitar, Lisboa. Nunca me canso de tentar perceber o labirinto de ter muitas cidades pequenas numa cidade grande. Talvez Lisboa seja um bocadinho como a minha vida, uma cidade onde me posso perder, mas onde também me posso aconchegar num pequeno bairro qualquer.
De qualquer forma, aquela tarde foi diferente. Passei-a a olhar para os telhados a ver se descobria algum gato. Vi vários e cheguei à conclusão que ela podia ter razão. Fiquei cinco minutos a olhar para um que, empoleirado no ferro enferrujado duma varanda, me fitava também. Era cinzento com riscas mais escuras. Enfim, um gato normalíssimo que só me despertou a atenção por estar a olhar para mim. Tinha uma coleira vermelha.
Nesse fim de tarde decidi que não fazia sentido voltar a Lisboa tão cedo para a visitar e acabei por apanhar um comboio para Aveiro. Estava farto de morrer de Amor ao Domingo. Não lho disse logo. Planeei telefonar-lhe na quarta-feira para a informar da decisão, o que acabei por não fazer. Por isso mesmo, a última conversa que tivemos foi sobre o gato dela.

- Conheci o teu gato. Estava na varanda dum prédio ao cimo da rua...
- Como é que sabes que era ele?
- Incomoda-te se for outro?

E saí. Ela também nunca mais me telefonou.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»