25 junho 2017

«respostas a perguntas inexistentes (362)» - bagaço amarelo

Pára com isso!

Tenho um dedo torto. Quase ninguém sabe porque não se nota. É preciso mexer-me nas mãos para perceber esta pequena deficiência no meu mindinho esquerdo. Às vezes quando estou sozinho, mesmo sabendo que isso é impossível, tento endireitá-lo com a mão direita, forçando-o a esticar-se. Ele estala, mas nunca me dói. Depois paro.
Acabei de o fazer agora mesmo, sentado na areia húmida desta praia que as ondas do mar estão a beijar como se beija repetidamente a face duma mulher que se Ama. São beijos pequenos e repetidos. Lembro-me da Ana, que às vezes me segurava as mãos, mas mandava-me sempre parar quando me via a esticar o dedo.

- Pára com isso! - Dizia.

Depois dava uma estalada no ar, como se estivesse a enxotar moscas das minhas mãos. Eu parava. Enquanto caminhávamos os meus lábios iam dar à pele das bochechas dela em pequenas e inofensivas ondas de mar, até ela me informar que já estava cansada.

- Pára com isso! - Dizia.

Repetia o gesto da estalada no ar, mas enxotando as moscas da minha cara.
A Ana não sabe, mas às vezes parece-me que vou ouvir o "pára com isso" dela. Aconteceu-me neste exacto momento em que tentei esticar o meu dedo torto. Não ouvi, claro. Ela não está comigo.
Aquilo que ela me ensinou, no entanto, ainda está comigo. É a passagem do tempo e de como algumas coisas nos ficam para sempre. Outras não.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»