– O normal?
– Não – respondi a custo e obriguei-me a dizer: – Hoje quero mudar, quero qualquer coisa mais drástica.
Ela sorriu como se estivesse à espera da senha há muito tempo e abriu-me um mundo de possibilidades, que eu ouvi entre o espanto e a delícia. Afinal, pode fazer-se arte em todo o lado.
Mas a noite mal dormida e os dois preventivos ben-u-rons tomados em jejum não me deixaram em grande estado de lucidez e atenção. Ouvia, mas continuava apenas a tentar convencer-me. A minha preocupação não era tanto o que deixar, como deixar, o que aparar e com que aspecto ficar. As minhas cogitações iam directamente para a radicalidade pretendida mas ainda não completamente decidida. Tinha dúvidas e fazia ininterruptas contas de cabeça: somava desejo com surpresa; subtraía medo à vontade; multiplicava o prazer pela visibilidade total; a que diminuía o choque e exuberância da exposição; dividia a dor imediata pela volúpia futura e a tudo subtraía pintelhos, pintelhos e mais pintelhos. Todos. Ora estava decidida, ora sorria como uma adolescente aparvalhada e recuava indecisa. E os ben-u-rons a entrarem em velocidade de cruzeiro, com a fome a apertar e a falta de café a esmagar-me. Se querem saber, estava mais para lá do que para cá mas, realmente, tinha sido essa a intenção.
– Tudo! – exclamei, como se saísse de um longo transe, como se tomasse uma decisão com consequências para o futuro da humanidade.
Pela primeira vez, ela olhou-me com genuíno espanto e admiração.
– Tudo? Tiramos tudo?
Acenei que sim com a cabeça, sem coragem de me ouvir. A minha decisão assente em dois ben-u-rons e na vontade de despachar a função e sair dali o mais depressa possível carecia de uma base sólida que me permitisse estar descansadamente a discuti-la.
– Normalmente, as senhoras começam por deixar um pequeno triângulo ou uma faixa estreita – explicou ela, provavelmente com a melhor das intenções.
Eu acenei que não.
– Tudo – disse. – Não quero triângulos dourados, nem jaguares perfumados, Ana Lee.
– Diga?
Por sorte, só por sorte, a depiladora não percebeu a frase, senão ainda havia de dizer que eu estava incapacitada para tomar decisões.
– Nada! Não disse nada. Era uma música.
– Ah! Tem a certeza?
– Que era uma música?
– Não! – A depiladora podia ter rido mas não o fez. É engraçada mas não tem grande sentido de humor. – Que é para tirar tudo? – esclareceu sorrindo, como se tivesse dito alguma coisa com graça.
– Tenho – respondi, séria. “E vamos embora com isso, que daqui a bocado passa o efeito dos comprimidos.” – Tudo!
“E em ti o que me torna afim o que me cativa é esse sorriso vertical como uma impressão digital”
Fiz bem! Muito bem! Agora sinto-me diferente, mais limpa, mais sensível. Sinto-me bem. E gosto! A língua dele tornou-se mais húmida, mais lubrificada, mais suave. Eu estou mais sensível, sinto-o e há pele que nunca tinha sido beijada, lambida, em que nunca lhe tinha sentido a língua quente, um músculo duro mas suave, mole mas rijo, ligeiramente intrusivo mas esmagador quando me lambe, quando passa e repassa ora com a ponta, ora com todo o seu volume, temperatura e humidade. Agora sinto-a. Sinto-a melhor. Veludo, como se diz nos livros, se eu gostasse de veludo. E ele ainda sorriu, com um brilho intenso no olhar que eu não via há algum tempo.
– Gosto do teu sorriso vertical – e beijou-me, lambeu-me, acariciou-me com um novo fulgor mas com antigos vagares, com redobrado cuidado, com já esquecida meiguice.
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