Naqueles tempos de liceu, fazer um diário, foi moda a que grande parte dos adolescentes aderiu.
Não primavam pela imparcialidade nem pela objectividade. Eram mais um repositório anotado ao fim de cada dia, no recato do quarto, antes de dormir, que espelhava episódios vistos sob perspectivas próprias e individuais, raramente validadas inteiramente pelos factos.
Nele ficavam guardados sentimentos, desejos, sonhos, vontades próprias de jovens que tinham atingido a puberdade e começavam a descobrir a vida e as sensações próprias da idade.
Muitos desses episódios ocorriam no caminho que as alunas faziam desde o liceu feminino até ao bairro, no fim das aulas, acompanhadas em grupo pelos rapazes do liceu masculino, que desciam a ladeira do Cidral ou a dos Loios, em louca correria, a tempo de se integrarem no grupo das raparigas que, disfarçadamente, atrasavam a saída do liceu, para darem tempo a que eles aparecessem e as acompanhassem, num namoro virtual e platónico pleno de risinhos e de frases soltas que só os duplos sentidos permitiam desvendar.
Anos mais tarde, tive acesso aos diários da Rita e do Pedro:
Diário da Rita
Coimbra, 09 de Março de 1960
Estou muito feliz hoje! Amo o Pedro há muito tempo, sem que ele até agora tivesse demonstrado se também gostava de mim. Ele é muito tímido, talvez seja por isso.
Mas hoje fiquei com a certeza que ele também me ama. Ao atravessarmos a passagem de nível tropecei , cambaleei e caí para cima dele. O Pedro amparou-me, segurou-me nos braços, para eu não me estatelar na linha. Ficámos abraçados durante um bocado, olhámo-nos nos olhos, apaixonados.
Ele fez uma caricia na minha cara que me arrepiou toda e que ainda agora sinto.
Depois o resto da malta começou a gozar connosco a dizer que já eramos namorados. Corei, envergonhada, mas o Pedro foi um querido. Começou a correr atrás dos outros para me defender.
Foi o dia mais feliz da minha vida!
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Diário do Pedro
Coimbra, 09 de Março de 1960
Odiei este dia!
E agora a malta não se cala, na rua e no Café do Silva, sempre a chatearem-me dizendo que eu gosto da Rita. E que nós até já namoramos!
Deus me livre! Eu gosto é da Luisa, mas essa não me liga nenhuma.
Já reparei há muito tempo que a Rita gosta de mim. Tenho feito tudo para ela desistir. Mas hoje as coisas complicaram-se.
Estávamos todos a atravessar a linha do apeadeiro e ela tropeçou e caiu para cima de mim. Olhámos um para o outro durantes uns segundos mas eu desviei os olhos. Não me apetecia nada suportar o olhar arremelgado que ela me deitava.
Reparei que ela tinha colado na cara um resto da chiclete que estava a mascar antes de cair. Estendi a mão, tirei-o e deitei-o fora.
Ela deve estar a pensar que o que lhe fiz foi uma caricia, mas só foi por simples cortesia.
Como se não bastasse, a malta ria-se às gargalhadas e gritava que já havia mais um namoro no bairro. Corri atrás deles para dar um estalo no primeiro que conseguisse agarrar, para fazê-los parar com aquela cantilena que já me irritava.
Foi um dia horrível este. Talvez amanhã a Luisa me dê uma alegria.
Rui Felício
Blog Encontro de Gerações