É como se o Amor fosse uma coisa maior do que aquilo que o sustenta, ou melhor, do que aqueles que o sustentam. Talvez por isso acabe sempre em derrocada. Não é que as pessoas em geral não queiram Amar e ser Amadas. Apenas não o sabem fazer nem são capazes. É uma pena quando não percebemos que o Amor também exige algum esforço, alguma coisa de nós.
As caricas, para quem não sabe, eram uma espécie de Playstation 3 para os rapazes da minha geração. Escolhíamos aquelas cuja abertura da garrafa não tinha danificado assim tanto, alisávamo-las durante largos minutos na pedra da calçada, e fazíamos corridas com elas em pistas desenhadas no cimento com os restos de tijolos das obras que iam ampliando o bairro. Quando o fim da tarde chegava, eu guardava as minhas melhores caricas no armário com o mesmo cuidado que o meu pai punha o carro na garagem.
Houve uma manhã qualquer da minha infância em que fui mais feliz que o normal por causa de nada. Ou quase nada. O Seabra, dono de uma taverna junta à Fonte dos Amores, tinha-me dado um saco de caricas de cerveja que tinha acabado de varrer do chão e eu, atónito pela enorme dádiva de quase nada, pulei o muro dum terraço onde sabia que as podia alisar melhor, aquele onde aos sábados à tarde eu e os meus amigos da rua fazíamos corridas perante o olhar amigo da mulher que lá vivia.
Ouvi um grito, depois uma espécie de choro que não consegui descortinar se era de tristeza ou de raiva, e percebi que todo aquele emaranhado de sons caminhava na minha direcção. Vi o puxador da porta rodar e saltei para debaixo do tanque mal ela começou a abrir. A mulher estava no meio da nossa pista tentando conter algumas lágrimas. O homem, que até então eu nunca tinha visto, gesticulava nervoso e empurrava-lhe a cabeça na direcção do chão. O problema era nada. Ou quase nada. Ele ralhava com ela por nos deixar riscar o seu próprio terraço quando ele ia de fim de semana.
Nunca percebi para onde é que ele ia de fim de semana, mas quando contei o que tinha visto aos meus pais, eles convenceram-me a não ir mais para lá brincar. A partir daí, convenci também os meus amigos a nunca mais saltar aquele muro que guardava horas e horas da minha infância e vim a saber, umas semanas depois, que ele tinha ido "de fim de semana" e nunca mais tinha voltado.
Hoje de manhã lembrei-me deste episódio da minha infância porque os vi aos dois, perto da estação de comboios, a caminhar lado a lado no que me pareceu serem os últimos passos duma vida inteira. Lentos, silenciosos, e acima de tudo contemplativos. Não sei a história da vida deles, mas sei que o terraço onde eu desenhava pistas de corridas de caricas, e que deu origem a tanta discussão entre eles, já nem sequer existe. Destruíram-no para fazer um condomínio privado. Talvez eles tenham feito o mesmo da vida deles. Destruíram-na e construíram outra. Por causa de nada. Ou quase nada.
Olhei para eles pelo canto do olho mas ela não me reconheceu. Curvados, como se o Amor das suas vida os tivesse esmagado durante demasiado tempo por não saberem lidar com ele. É verdade que o Amor acaba sempre por nada. Ou quase nada. O que a mim me custou a perceber, nesta vida, é que também é assim que ele começa. Por nada. Ou quase nada.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»