Por princípio, poderia ser considerado um amigo nerd e insuportável, mas não é. É alguém que eu adoro visitar de vez em quando para ter daquelas conversas, sempre regadas com algum uísque, que se estendem pela noite dentro. Também gosto de o receber, e se me conseguir esquecer que ele sabe exactamente quantos degraus precisa de subir para chegar a minha casa, conseguimos ter conversas normais.
Noutro dia fui eu visitá-lo, e depois dele me dizer quantas vezes em média eu limpo os sapatos no tapete da entrada, sentámo-nos e ele serviu-me o primeiro de seis copos de uísque Bushmills (segundo ele, é essa a média de uísques que bebemos por cada noite destas). A partir daí, ficámos na conversa até às cinco da manhã e, suponho eu, ultrapassámos em muito a média do álcool ingerido. Todas as nossas conversas são, pelo menos a meu ver, interessantes precisamente por isso. Eu falo das coisas numa perspectiva sempre mais solta, ele sempre preso à sua lógica sequencial ou estatística.
A ele, durante estes mais de dez anos em que nos tornámos amigos, só lhe conheci uma namorada. Ele gostava tanto dela que passou a comprar cadernos de capa dura para registar tudo o que considerava importante, penso eu que para que esses registos durassem mais. Um dia a namorada nunca mais apareceu e ele nunca me explicou porquê. Abanava os ombros cada vez que eu lhe perguntava e rapidamente mudava de assunto.
Dei o primeiro gole e ele perguntou-me porque é que eu estava triste. Abanei os ombros e disse-lhe que a minha namorada me tinha dito que precisava de algum tempo para pensar na nossa relação e que, acabada de chegar de férias, nem sequer ainda me tinha vindo ver. Disse-lhe que o mais horrível de tudo era esta urgência que eu tinha de estar com ela e que ela, nitidamente, não tinha de estar comigo. Olhei-o de frente e ele sorriu, como se me percebesse e finalmente, com esse olhar, me estivesse a explicar o que lhe tinha acontecido a ele.
Vi-o levantar-se e voltar com um desse caderninhos de capa dura dos tempos em que tinha namorada. Na capa, com uma esferográfica azul, tinha escrito "...da deterioração do Amor". Abriu-o com muita calma e explicou-me que entre o princípio e o fim da sua relação, o número de beijos que a namorada lhe dava por sua iniciativa desceu de vinte e dois por dia para apenas três, o número de vezes que ela lhe dava a mão na rua desceu de cem por cento para apenas dois por cento. Olhou-me nos olhos para tentar perceber a minha reacção, mas eu ouvia-o impávido e sereno, sem esboçar fosse o que fosse. Por fim, disse ele, o número de vezes que tinham sexo desceu de seis vezes por semana para uma vez de duas em duas semanas.
Bebi tudo o que restava no meu copo de uísque e eu próprio me servi de outro, sem o servir a ele porque ainda tinha o copo cheio. Perguntei-lhe se tinha sido ele a acabar com ele ou se tinha sido ela, só para ver se ele, finalmente, abria um pouco o véu que cobria o fim da sua relação. Abanou os ombros e respondeu-me que, desde então, abana os ombros cerca de três vezes por dia, ou seja, sempre que alguém lhe fala de Amor.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»