Corria o Natal de 1961, annus horribilis do Estado Novo, marcado pela perda de Goa uns dias antes, pela conspiração do quartel de Beja e pelos ataques dos angolanos em Luanda.
Os cientistas não tinham dúvidas!
A tenebrosa notícia era difundida ininterruptamente, entremeada com música clássica, pela televisão e pela rádio, fundamentada com cálculos matemáticos indiscutíveis. Salazar, com ar pungente, falou ao País, recomendando ao grande povo português que soubesse comportar-se com dignidade na hora da tragédia, porque a Pátria saberia renascer das cinzas, mesmo que ficasse orgulhosamente só no mundo, porque este era o castigo divino para aqueles que nos atacavam.
Um meteoro de enormes dimensões iria romper a atmosfera terrestre naquela noite. A energia do choque seria mais de um milhão de vezes superior à que libertara a bomba de Hiroshima! Sabia-se com exactidão o ponto onde ocorreria o impacto, perto do apeadeiro de São José, em Coimbra e era certa a destruição total do planeta Terra. Não havia forma de lhe escapar. Seria indiferente mudar de uma cidade para outra, de um país para outro. Era o apocalipse, o fim do mundo, tal como Nostradamus previra.
Interpretei o calor abafado que estranhamente me inundava o corpo naquela noite fria de Dezembro, como efeito da lenta aproximação incandescente do meteoro, depois da sua entrada elíptica nas altas camadas da atmosfera. A multidão em pânico olhava a bola luminosa que, a cada minuto, ia aumentando de diâmetro no breu da noite.
Ao meu lado, na rua, aquela bonita rapariga que eu só conhecia de uns fugazes encontros nos bailes do Clube Recreativo do Calhabé, tremia de medo sem saber o que fazer, tal como todos nós. Não havia mais do que um superficial conhecimento entre mim e a Ângela, por termos dançado duas ou três vezes, mas a aflição daquele momento aproximava-nos, impelia-nos um para o outro.
Olhámo-nos. Sem necessidade de quaisquer palavras, decidimos aproveitar os últimos momentos de vida. Beijámo-nos longamente, indiferentes aos gritos aterrorizados da multidão. À espera do fim próximo que o calor cada vez mais intenso prenunciava, queimando-nos os corpos, o beijo catalisava as profundezas de todos os sentidos...
Subitamente, acordei sobressaltado, exausto, com o coração a bater desenfreado. Espreitei pelas persianas do meu quarto, e em vez do imaginado cenário de destruição, vi o verde das árvores dos quintais do bairro e a calmaria de um bonito sol de inverno, rebrilhando no orvalho das plantas e das flores . Afinal tudo não passara de um sonho!
Vesti-me à pressa, corri à Fonte da Cheira e bati à porta da Ângela que a abriu sorridente, pegando-me delicadamente na mão. Por algum efeito telepático, também ela, como eu, tinha sonhado com o hipotético meteoro. Também ela tinha sentido o mesmo calor abrasador que eu senti...
Rui Felício
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