02 junho 2019

«Espremamos o mundo como se fosse um limão» - bagaço amarelo


Espremamos o mundo como se fosse um limão. Pode ser para um copo ou até para o chão. Fiquemos a ver as gotas ácidas a cair, uma a uma, como uma chuva de memórias. O que é que fica? Quase nada e, no entanto, tanto.
Penso nisto enquanto brindo com uma mulher búlgara a divisão duma garrafa de uísque e repito com ela a palavra "nazdrave", como se dissesse "saúde". Dá igual. Porque é que estou aqui com ela, numa cidade secundária do Reino Unido? Porque fugi de Portugal. E ela? Porque fugiu da Bulgária. Um encontro improvável de dois fugitivos. "Nazdrave" outra vez.
No televisor da minha casa o Youtube oferece-nos quase aleatoriamente uma música sérvia chamada "Perspektiva" que eu ouvi várias vezes em festas perdidas nos meus tempos da Bulgária. Porque é que existem festas perdidas assim? Porque a solidão tem que se encontrar, claro.
Pois, pois, perspectiva. Ponhamos tudo em perspectiva que o planeta não se importa. Os fascistas na Hungria que cospem nos trabalhadores estrangeiros, o plástico nos oceanos, a aniquilição de um povo no Iémen, as prisões políticas na Bulgária, os novos escravos da indústria textil na Etiópia e prostitutas nas montras da Red Light em Amsterdão.
Ponhamos tudo em perspectiva. Afinal de contas a espécie passa e o planeta fica. Está tudo bem. O Benfica até foi campeão.
Espremamos o mundo como se fosse um limão. Já me apaixonei numa praia à meia-noite, já abracei a Lua como se fosse minha e conquistei sozinho o Império impenetrável de um bar de esquina numa cidade sem nome. Foi lá que impus a minha ditadura e gritei ao povo que era proibído ser triste.
Nunca fui deposto mas o povo, composto por uma mulher usada e um empregado de balcão cansado, abandonou o barco assim que o tasco fechou. Cobardes!
Às vezes brindamos ao frio e sabemos que esse momento é nosso. Somos apenas uma gota espremida, sem importância, como o sorriso mecânico dum funcionário do MacDonalds ou a distância incontável duma Estrela distante e sem brilho, mas somos nós. Nós.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

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