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15 março 2012

A Fisioterapia

– Hum… Já não nos encontrávamos desde o ano passado, David.
– Pois não. Bom ano, Lucília!
– Obrigado, bom ano para ti também.
– Ah!... Muito obrigado.
– Estás bom?
– Bom?! Bom?! Tu estás a gozar comigo, não estás?... Só podes!
– Não… eu…
– Como é que queres que eu esteja bom, Lucília? Como?... Eu não posso estar bom!...
– Não sabia… Desculpa.
– A gaja não te disse nada?
– Quem, a Cristina?
– Sim, essa gaja cujo o nome eu não vou repetir, não te disse nada?
– Não, acho que não.
– A gaja não te contou nada?!...
– Não. O quê?
– A gaja pôs-me fora de casa…
– Não posso… Quando?
– Na semana passada…
– A Cristina pôs-te fora de casa na semana passada?!
– Foi. A seguir à passagem de ano.
– Porquê?
– Sei lá porquê!... Porque é doida!
– Hum… Alguma coisa deves ter feito.
– Qual feito, qual carapuça. A gaja é doida. Não estás bem a ver…
– Doida?
– Sim, completamente doidinha.
– E pôs-te fora de casa?
– Foi mas eu voltei.
– Voltaste?
– Sim, dois dias depois.
– E não me disseste nada?
– Achei melhor não. E tu tinhas ido com o Leandro à terra.
– Pois foi, e ela?
– Ela não.
– Ela não, o quê?
– Não foi à terra contigo e com o Leandro.
– Isso sei eu, parvo!... O que é que ela fez?
– Não fez nada. É doida!
– Mas ela acusou-te de alguma coisa?
– A mim?
– Não, a mim!...Ó David, toda a gente sabe que tu não és nenhum santo…
– Eu nunca disse que sou!
– E até te digo mais, se eu fosse a ela já te tinha posto na alheta ao tempo.
– Mas eu não fiz nada, foi tudo um mal-entendido!
– Ah!... Sempre houve alguma coisa.
– Houve que a gaja é doida.
– E que mal-entendido foi esse?
– O mal-entendido é que a gaja é doida!
– Isso não é um mal-entendido, ou é ou não é.
– É!
– É a tua opinião e olha que eu trabalho com ela quase todos os dias e não me parece.
– Ela disfarça.
– E, afinal, do que é que ela te acusou?
– Que eu andava metido com uma gaja na fisioterapia.
– Tu andas na fisioterapia?!
– Não te disse?
– Não.
– Ando.
– Andas?
– Ando.
– A fazer o quê?
– Ando lá.
– Sim, isso já me disseste, mas andas lá exactamente para quê?
– Por causa da baixa. O seguro mandou-me e eu ando lá.
– E a gaja?
– Qual gaja?
– A gaja que a Cristina diz que tu andas metido.
– Deslocou um ombro.
– Um ombro?
– Sim, teve um acidente e deslocou um ombro, uma coisa simples mas depois imobilizaram-na como se tivesse partido e a seguir tiveram de partir para que ficasse deslocado e se pudesse curar. E agora tem de andar na fisioterapia…
– Coitadinha… Olha que, para quem não anda metido com ela, tu sabes muito sobre a gaja com quem não andas metido.
– A fisioterapeuta é a mesma.
– Sim, claro e foi ela que te contou.
– Foi.
– Porque tu não andas metido com ela.
– Eu não ando metido com ninguém, Lucília! Também tu, bolas?!
– Andas metido comigo.
– Mas tu não andas na fisioterapia.
– Pois não.
– E a Cris... E a gaja não sabe, nem desconfia.
– Esperemos que não. E a da fisioterapia sabe que tu andas comigo?
– Bolas, Lucília! Não há ninguém na fisioterapia! A gaja é doida, já te disse.
– Deixa lá, eu depois esclareço isso com a Cristina. Agora chega aqui, para eu ver se a fisioterapia te tem feito bem.

08 março 2012

um mero acontecimento

O movimento foi involuntário mas quando Justina sentiu no seio o braço de Cesário foi invadida por uma súbita e irreprimível vontade de ir para a borga. Riu-se do trocadilho ainda que, na verdade, não soubesse se o homem se chamava assim. “Tem cara de Cesário” justificou-se, observando a barbicha que emoldurava o rosto bolachudo do homem a quem se encostara quando a composição do metropolitano balançou.
Cesário sorriu embaraçado mas sem mover o braço. Por ele, podiam ficar assim o resto da vida, um seio encostado ao seu braço era coisa que lhe acontecia pouco. “Muito pouco”, pensou, algo frustrado e com a ligeira impressão que todo o episódio que, na realidade, nem um episódio chegava a ser – era um mero acontecimento –, podia provavelmente indiciar que qualquer coisa não ia bem na sua vida sexual – se a tivesse –, na sua vida social e afectiva – que também sabia não ter – e na sua sanidade mental – sentia-se um pervertido mas não conseguia afastar o braço da mama da mulher.
Justina não se sentia mal e, tão furtivamente quanto lhe permitia a proximidade dos rostos e dos corpos, apreciava o dono do braço que lhe amparava a mama. Cesário tirando a barba mal semeada mas impecavelmente aparada e cirurgicamente delineada, os olhos ligeiramente esbugalhados com ar de eterno espanto, que ora se fixavam num ponto longínquo ora se dispersavam descontrolados por tudo o que os rodeavam, o sorriso desequilibrado que tanto parecia ir explodir numa gargalhada demente como no instante seguinte se resumia a um quase imperceptível movimento ascendente das comissuras dos lábios, a falta de gosto na roupa e no penteado e o ar geral de tarado não estava mal de todo e cheirava bem, o que agradou a Justina.
– Isto é uma chatice – reclamou baixinho Justina, dirigindo-se a Cesário, que, nas suas rápidas e confusas deambulações oculares, parecia fixá-la por mero acaso. Sem perceber se ele a ouvira, Justina acrescentou: – Os transportes públicos estão cada vez pior. Este país é um caos.
– Uma chatice – repetiu Cesário, como se tentasse apreender o sentido das palavras e sem lhes dar qualquer entoação. – É um caos.
Justina olhou-o perplexa. “Este homem não podia trabalhar na televisão”, julgou, definitiva: “Está verde.”
Cesário que também se tinha ouvido com a mesma perplexidade – “Pareces um tontinho, McFly”, censurou-se –, decidiu aproveitar a energia que o seio que se mantinha aninhado no seu braço lhe dava e procurou rectificar a impressão que causara na proprietária da mama.
– É verdade – ponderou Cesário, falando pausadamente –, a ausência de uma politica realística de transportes, que deveria assentar nas necessidades dos utentes e não somente em directrizes economicistas, tem causado uma degradação acentuada da qualidade dos nossos transportes colectivos urbanos.
Justina assentiu com a cabeça satisfeita, tinha a mama no braço de um intelectual bem-cheiroso ainda que mal apessoado.
– Rodriga – apresentou-se Justina.
– Ah! – Cesário olhou para a mama no braço e depois para a outra: – E esta?
– Eu é que sou Rodriga – disse a mulher, surpreendida por uma memória recalcada de uma imagem de musgo verde num presépio da sua infância de que se lembrou quando se ouviu. Pasmada, perguntou sem querer: – Já não se fazem presépios, pois não?
Cesário olhou-a como se pretendesse decifrar o verdadeiro sentido da pergunta.
– Presépios? – questionou ele para ganhar tempo, a primeira carruagem estava a chegar a Arroios.
– Sim, com musgo.
Sem saber porquê, Cesário pensou em virilhas mas não nas suas nem nas da mulher cuja mama continuava emprateleirada no seu braço.
– Eu chamo-me Fausto e faço presépios no tempo deles – mentiu Cesário, que, na verdade, foi baptizado como Mauro.
– Com musgo?
– Não, o musgo lembra-me virilhas – confessou Cesário, repugnado.
– Virilhas com musgo?
– Não – respondeu Cesário, abanando a cabeça –, só virilhas. O musgo lembra-me virilhas.
A composição parou com um solavanco provocando com malícia que Justina enfiasse o nariz no cabelo de Cesário.
– O teu cabelo cheira bem, Fausto – apreciou a mulher.
“Arroios” avisou, atrasada, a carruagem.
– Eu vou para Roma – informou Cesário, julgando que a carruagem falava para ele. – Obrigado, é um shampoo – disse, respondendo a Justina.
– Passar o natal?
– Não, Pantene – esclareceu Cesário.
Justina viu a porta fechar e sentiu uma mão na nádega esquerda. Olhou em volta e só viu Cesário. O homem sorria deliciado.
– Azul? – perguntou Justina.
– O quê?
– O Pantene.
– Não, branco.
– O frasco?
– De plástico.
– E Roma?
– Não sei, nunca lá fui.
Justina e Cesário entreolharam-se cúmplices. Sentiam uma afinidade crescente – mais ele que ela na parte do crescente. Justina tirou a mão do bolso de trás das calças de ganga e agarrou o varão com ambas as mãos. Cesário ponderou seriamente em afastar-se para lhe dar espaço mas, apavorado com o facto de poder perder a mama, deixou-se ficar.
– É uma pouca vergonha – referiu Cesário só para continuarem a falar mas com ar sério e ligeiramente ofendido.
Justina ainda procurou perceber do que estava ele a falar seguindo-lhe o olhar errante mas não só não conseguiu como se sentiu enjoada. Era velocidade a mais para olhos que não estivessem habituados.
– O quê? – perguntou, engolindo em seco.
– Isto.
Justina tornou a seguir-lhe o olhar e voltou a sentir-se agoniada.
– O quê? – repetiu, baixando a cabeça e respirando fundo.
– Colocarem varões nos transportes públicos – criticou Cesário.
– Ah! – Justina riu-se. – É só um objecto, Cesário, e os objectos são amorais. É o uso que se lhes dá que é ou não contrário à moral vigente em cada momento. O varão por si só não…
– Cesário?! – interrompeu o homem, melindrado e afastando o seu braço da mama da mulher.
– Quando te vi achei que te chamavas Cesário – explicou a mulher, inclinando-se para voltar a pousar a mama no braço dele.
“Alameda” avisou a tempo a carruagem.
Para atestar que compreendia que Justina lhe chamasse Cesário e lhe perdoava essa fantasia e para demonstrar a sua alegria por voltar a ter uma mama no braço, ainda que agora fosse a outra, Cesário avançou com as sobrancelhas até meio da testa, que recuou temerosa até à esbarrar na franja, que se espetou de imediato numa coesa e intransponível linha defensiva. Cesário sentiu o cabelo levantar como se pusesse a mão num gerador de Van der Graaff mas não ligou, isso acontecia-lhe muito.
Receosa, Justina deu um passo atrás: não gostava de rock progressivo.
Na Alameda, a composição voltou a parar e as portas a abrirem-se escancaradas e sem vergonha. Justina olhou-as com inesperado e mal disfarçado interesse. Assustado com a perspectiva de a perder, Cesário rojou-se aos seus pés. Figurativamente, na verdade, por agora, o homem só pediu:
– Desculpa.
Justina olhou para a porta aberta ainda com olhos de fuga mas hesitou.
– Podes chamar-me Cesário – segredou Mauro, fixando-a, o que, para ele, era como se rojasse aos pés dela.
– Vais para Roma? – perguntou Justina, sorrindo complacente.
– Sim – confirmou Cesário. – E tu?
– Não sei. – Justina encolheu os ombros. – Ia sair aqui.
As portas fecharam-se com inusitado estrondo, impedindo Justina de sair. Mais do que sorrir, Cesário brilhou e cresceu. As portas tornaram a abrir-se. Cesário empalideceu. Justina largou o objecto metálico e cilíndrico que não iremos nomear e deu um passo na direcção de Cesário, que ganhou cor. A mulher, sem parar, piscou-lhe o olho esquerdo e continuou até à porta. Cesário ficou branco, sem pinga de sangue, sem força nas pernas, nem vontade de viver. Então, ela voltou-se para trás e perguntou:
– Vens?
Sem hesitar, ele foi.

01 março 2012

Hidromassagem

Sexo.
– Sexo?
– Sim, sexo.
– Sexo, o quê?
– Uma das coisas que agora são melhores.
– Desculpa?!
– Não me perguntaste o que é melhor, agora que estamos separados?
– Perguntei.
– É isso.
– O sexo é melhor?
– É. Não achas?
– Se eu acho que o sexo que tu tens, agora que estamos separados, é melhor?!
– Sim, não achas?
– Tu estás a perguntar-me se eu acho que…
– Sim. Estou. Não achas?
– Sei lá… O que eu acho é que tu devias ter vergonha.
– De quê?
– De me estares a dizer isso e a perguntar se eu não acho.
– Tu é que me perguntaste!
– Sim mas não foi agora.
– Mas eu estou a responder-te agora.
– Porque é que tu nunca respondes às coisas quando eu te pergunto?
– Boa pergunta.
– Típico!
– O quê?
– Não respondeste.
– Nisso não melhorámos.
– Tu não melhoraste! Tu!
– Mas no sexo melhorámos.
– Eu melhorei.
– Melhoraste?
– Sim, agora tenho melhor sexo.
– Temos.
– Tenho.
– Apesar de estarmos separados, se temos os dois: temos.
– Sim mas nem sempre ao mesmo tempo.
– Hã?!
– Ah!
– Ah?!
– Agora é que eu percebi.
– Agora é que percebeste o quê?
– O sexo e o facto de me estares a dizer assim.
– A dizer assim, como?
– A anunciares com esse ar…
– Que ar?
– Como se fosse uma coisa boa.
– E é.
– Sim, agora já percebi isso mas, ao princípio, não estava a perceber.
– Eu é que não estou a perceber.
– Ao princípio pensava que estavas a gozar comigo, por isso é que te disse que achava mal estares a dizer-me e a perguntar se eu não achava.
– Porque é que havia de estar a gozar contigo?... Tem sido realmente melhor, não achas?
– Sim, claro. Tem sido realmente melhor.
– O que é?
– O meu soutien?
– Vais-te já embora?
– Tenho de ir… Ah! Está aqui! Queres as tuas cuecas?
– Importaste que eu fique?
– Aqui?
– Sim.
– Não. Fica. Eu é que tenho de me ir mesmo embora.
– Vou aproveitar a banheira de hidromassagem. Não te importas?
– Não, Paulo. Fica… É uma das coisas boas de estarmos separados.
– O quê?
– Fazermos o que nos apetece.
– Isso é verdade.
– Beijos.
– Falamos amanhã?
– Provavelmente… Boa hidromassagem.
– Obrigado… Olha, Ana!
– Diz?
– Só não percebi uma coisa: nem sempre ao mesmo tempo, o quê?
– Nada, depois falamos. Não adormeças na banheira.

23 fevereiro 2012

O doutor

O doutor repetiu, simplificando:
– Se são casados em separação de bens, caso se divorciem, os bens dele são dele e os seus são seus.
– Mesmo os que tivermos comprado durante o casamento?
– Sim, desde que efectivamente se comprove quem os comprou…
– Bonito serviço!... Eu não posso ter nada em meu nome, nem tenho conta nem nada. Está tudo em nome dele. Foi tudo comprado em nome dele, com cartão ou cheques em nome dele, por isso é tudo dele, é isso?
– Em principio…
– Em principio e no fim!
– Provavelmente.
– E se ele morrer?
– Tem de o enterrar.
– Ah! Não é isso! – A mulher deu uma gargalhada nervosa. – O doutor está a brincar mas até nisso ele é do contra: o homem não quer ser enterrado. Diz que quer ser cremado e que as cinzas têm de ser lançadas no jardim da casa dos pais.
– Da casa dos pais? Qual é a casa dos pais?
– Não é dele! – A mulher abanou a cabeça com veemência, desesperada por antecipação. – Calhou em partilhas a um tio com quem ele não se fala há mais de trinta anos. Não fala com ninguém dessa parte da família!
– E quer as cinzas lá?
– Mesmo por isso! – A mulher riu-se. – Ele é um retorcido do pior, doutor, até já me disse que quer que eles saibam que ele está lá. E acho que também já disse ao filho. – A mulher recolocou a expressão séria e formal do início da reunião e, pousando as mãos na mesa, fixou o advogado com um olhar vítreo, concentrado, e disse: – Mas isso agora não interessa nada, doutor, o que eu preciso de saber é se ele morrer quais são os meus direitos. Tenho direito a alguma coisa ou, como estamos casados em separação de bens, não vejo nada?
– Se ele morrer é herdeira dele…
– De todos os bens?
– Sim.
As pálpebras afastaram-se e os olhos da mulher brilharam mas o rosto continuou tão formalmente impassível como antes.
– Mas se me divorciar não? – perguntou, com a voz ligeiramente trémula de comoção.
– Se se divorciar deixa de ser herdeira.
– Sim e não apanho nada. – Os olhos da mulher continuavam a brilhar e os dedos entrelaçavam-se e separavam-se em movimentos nervosos, calculistas.
– Para usar a sua expressão, sim, não apanha nada.
– Mas se ele morrer, herdo tudo! – A mulher não conseguiu disfarçar um sorriso, que camuflou com um providencial ataque de tosse e consequente movimento da mão a tapar a boca.
– Tudo não. O seu marido tem um filho, não é?
– É, tem um.
– Então são os dois herdeiros.
– Eu e ele…
– Sim.
– Quer dizer que o doutor é da opinião de eu não me divorciar.
– Eu não sou de opinião nenhuma. Isso é uma decisão pessoal e, parece-me, nem deve ser uma decisão exclusivamente económica.
A mulher soltou uma gargalhada genuinamente divertida.
– Desculpe mas essa foi boa!
– É o que eu penso.
– E se o casamento tiver sido uma decisão económica? – A mulher lançou a pergunta ainda acompanhada do anterior ar de riso e satisfação que, no entanto, se começou a esbater logo que se ouviu fazê-la e, ainda a sorrir, acrescentou: – Dos dois.
– Sendo assim…
– Foi assim – interrompeu a mulher, concludente, enquanto lhe passava uma sombra pela expressão que lhe levou o sorriso e o brilho no olhar. Depois de uma pausa, ela disse como se se confessasse: – Eu queria mudar de vida e ele queria ter-me com exclusividade. Achámos os dois que ficávamos a ganhar. E… – A mulher falava para as mãos, entrelaçadas pelos dedos e pousadas em cima da mesa. – E, na realidade, naquela altura, eu gostava dele e ele de mim. – A mulher levantou a cabeça e cruzou o olhar com o do advogado, procurando aferir da expressão dele o que dizer e o que calar. Calou-se: – Mas isso não é importante.
O doutor ensaiou um sorriso que não chegou a estrear, percebendo, na frase curta e no olhar duro da cliente, que esta tinha captado a expressão de entediado desinteresse que deixara escapar enquanto ela falava. Censurou-se por ter sido apanhado e isso poder influir nos honorários a pedir, e decidiu remediar a situação:
– A nossa vida, para nós que estamos dentro dela, é sempre importante. Muito importante. – O doutor gostou do som cheio com que dissera uma frase tão vazia e continuou: – Todavia, por vezes, temos de tomar decisões… – Lembrou-se a tempo das dúvidas que assaltavam a mulher para quem falava e acrescentou: – De fazer ou não fazer. Decisões que podem parecer exactamente como se não decidíssemos quando, na verdade, é isso que fazemos…
E o doutor continuou, com empáfia e presunção, a martelar frases como se as fizesse ressoar num bombo, frases com tanto conteúdo como o instrumento. Deixara a lei, a doutrina e a jurisprudência e seguia deleitado a ouvir-se falar sobre a vida e o seu sentido. A mulher ouvia-o apenas por cortesia, decidida não só a não lhe dizer mais nada, como em deixá-lo masturbar-se à vontade à sua frente com o seu longo e oco monólogo – quanto mais o ouvia e via mais lhe parecia que ele estava a ter prazer físico em ouvir-se falar.
Dormente, a cliente esperava apenas que ele concluísse as redondas e ocas “alegações finais” e não lhe cobrasse o tempo extra que estas estavam a demorar, no entanto, não se conseguiu conter quando, depois de arengar mais uns minutos, o advogado repetiu:
– E é isso, há decisões que podem parecer exactamente como se não decidíssemos quando, na realidade, é isso que fazemos. São decisões difíceis, quantas vezes incompreendidas…
– Se é isso que realmente fazemos – interrompeu a mulher, ácida –, então não estamos a decidir nada. – O advogado olhou para ela, incomodado pela interrupção. A mulher pensou que ele não tinha percebido mas que a estava a ouvir e explicou: – Se as decisões se parecem com a ausência de decisões e, na realidade, como o doutor disse, foi isso mesmo que fizemos, então o que fizemos foi não decidir e a aparência e a realidade são uma e a mesma coisa, apesar de nós próprios podermos depois imaginar a não decisão como uma decisão por uma razão qualquer, de conforto ou de auto-ilusão, ou outra, e, provavelmente, sem termos sequer a noção disso. Não decidimos ponto final mas como a vida não espera pelas nossas decisões…
– Ah! – O doutor olhou para o relógio que lhe ocupava o pulso todo e ainda sobrava. A mulher achou o relógio apalhaçado mas não disse nada. – A nossa conversa… – o advogado riu-se – sim, porque isto já não é uma consulta, nem sequer uma reunião, é uma conversa – o doutor tornou a olhar para o relógio, que fez questão de mostrar explicitamente de forma sub-reptícia em todo o seu esplendor. – A nossa conversa alongou-se e eu tinha uma outra reunião às seis e já são seis e catorze. Não sei se ainda a posso ajudar em mais algum assunto.
– Não, estou esclarecida, doutor.
O advogado levantou-se e ficou em pé a olhar para o decote da cliente que, ainda sentada, guardava o telemóvel e a carteira na mala.
– Muito bem, muito bem – apreciou o doutor. A mulher olhou-o e ele completou, subindo um palmo o alvo do seu olhar: – É sempre importante que as pessoas tomem decisões esclarecidas. Sempre importante. E pode contar com os meus serviços para o que entender… Para o que entender.
A mulher levantou-se, abanando a cabeça para cima e para baixo. O doutor sorriu e deu-lhe passagem, procurando vê-la de outros ângulos, o que fez com milimétrico cuidado. Satisfeito, passou-lhe à frente, roçando-se descaradamente no seu braço e, agarrado à maçaneta da porta que não abriu, chilreou:
– A sua situação não é nada fácil: há questões pessoais, claro que há, mas também há questões legais de fulcral e decisiva importância; por essa razão parece-me que há uma manifesta e aguda necessidade de ponderação e de um acompanhamento abrangente que permita enquadrar, a todo o tempo, as várias vertentes em conflito. A precipitação é um erro trágico e, muitas vezes, irremediavelmente caro mas que se pode prevenir com um mero telefonema ou um mero encontro… Mesmo fora de horas. – O doutor largou a maçaneta e tirou um cartão e uma caneta do bolso do casaco. – Vou-lhe dar o meu número pessoal e a senhora não hesite em contactar-me. – O doutor escreveu no cartão e entregou-o à cliente, com um sorriso oleoso, peganhento. – Podemos encontrar-nos quando quiser. Quando quiser.
A mulher recebeu o cartão e o sorriso com o mesmo asco. Agradeceu como se realmente agradecesse e estendeu a mão para se despedir.
– Liga-me? – insistiu o doutor, sem lhe largar a mão, enquanto abria a porta. – Eu gostava muito… – A mulher não conseguiu esconder uma careta de espanto e reprovação. O doutor, com o sorriso mais angelical que conseguiu, completou: – De a ajudar, claro… Eu gostava muito de a ajudar.

16 fevereiro 2012

Márcia, farta dos silêncios dos últimos dias, sentou-se no sofá ao lado de António e interpelou-o mais uma vez, agora directamente sem rodeios nem meias palavras, fê-lo numa difícil conjugação de sentimentos com modos ásperos e ar aborrecido mas num tom compreensivo e disponível:
– Mas afinal o que se passa contigo, Tó?
António olhou-a de relance, engoliu em seco, encolheu os ombros e sussurrou apático: – Nada – voltando a fixar-se na televisão na esperança que a conversa não chegasse a arrancar.
– Nada?! – O semblante de Márcia endureceu mas, após o “nada” dito num tom mais consentâneo com as faíscas no olhar, a voz voltou a ser macia e agradável: – Tu não falas, não dizes nada. Andas a cair pelos cantos com cara de enterro. – A mulher ajeitou-se no sofá, virando-se mais para ele, e pousou a mão na sua perna esquerda, levando a que ele tornasse a olhá-la e que os olhares se cruzassem. Ela aproveitou: – O que se passa, António? É comigo?... É connosco?
Ele apreciou-lhe os olhos que chispavam dando ao castanho-amendoado ainda mais fogo e cor, reparou no ligeiro arquear das sobrancelhas que lhe dava um ar tristonho mas suplicante e nas pequenas rugas nas comissuras dos lábios que só surgiam quando ela estava tensa e séria. António parecia inocentemente embevecido quando se fixou nos lábios carnudos sem serem grossos e esqueceu as comissuras ou o arquear das sobrancelhas. Ela sentiu o olhar e sorriu. António, que adorava sentir-lhe os lábios e o que ela lhe fazia com eles, temeu que ela percebesse a volúpia no seu olhar e baixou os olhos que, “ó martírio!”, ficaram presos no decote dela. Adorava o que ela lhe fazia com as mamas. “Grisolete”, pensou António, sem saber como se escrevia ou sequer se o termo realmente existia e engoliu um sorriso por suspeitar que, se o mostrasse, o teria de explicar.
– Não, Márcia, não é nada contigo – disse António a meia voz, olhando para a janela da sala. – Nem connosco.
Márcia gostou do tom contido da resposta e do olhar esgazeado que ele lançou para a rua, apertou-lhe a perna com os dedos como se lhe quisesse transmitir força e depois acariciou-lhe o joelho.
António esperava que a mão lhe subisse pela perna. Adorava o que ela lhe fazia com as mãos. Esqueceu o decote, as mamas e a grisolete que, concluíra com mágoa, estava fora de questão e, até, os lábios, mas, sentindo a mão no joelho, pensou em tirar imediatamente as calças, que era o que lhe apetecia; só não o fez por julgar que era prematuro e, provavelmente, contraproducente. “Tenho de ter paciência,” pensou. “O joelho é um mero apeadeiro”, e riu para si.
– Mas, então, o que se passa? – insistiu Márcia, sem afastar a mão do joelho, sentindo que ele não ia continuar a falar.
– No outro dia percebi uma coisa – disse António, sério e compenetrado, ainda que não conseguisse deixar de pensar porque é que ela não lhe largava o joelho e não lhe subia pela perna acima. – Uma coisa em que nunca tinha pensado antes e de que só me apercebi há dias – continuou ele lentamente, fixando-se na mão dela que tentava puxar telepaticamente mais para cima, sem sucesso. Frustrado, esqueceu-se do que estava a dizer e calou-se.
Márcia suportou o silêncio enquanto conseguiu; percebeu que o estava a fazer muito para além do habitual mas quis respeitar-lhe o ritmo. Não o queria apressar ou pressionar. Esperava uma confissão dorida ou a exposição de qualquer coisa séria que o atormentava e, sabia-o por experiência própria, era necessário que a pessoa que se expõe possa fazê-lo nas suas condições, nos seus termos, seguindo os seus próprios ritmos e sentimentos.
Continuaram calados: ele a olhar para a mão, ela a olhar para ele.
– E? – Lançou Márcia num murmúrio respeitoso, na dúvida entre o temor de que o momento tivesse passado e o medo de estar a ser precipitada.
Alheio às dúvidas de Márcia, António dividido entre a decepção dos seus malogrados esforços telepáticos e a enumeração fantasiosa das virtualidades que um poder desses podia ter para melhorar a sua vida sexual que o “E?” subitamente interrompeu, respondeu sem pensar, num tom ressentido e com expressão naturalmente aparvalhada: – E, o quê?
Márcia tomou o tom e o ar de António como a resposta à sua precipitação: ele precisava de mais tempo. “Os homens são assim”, pensou. “Precisam sempre de mais tempo.”
– E… – Márcia falava com ar compungido como se pedisse desculpa. “Coitados!” – O que é que percebeste no outro dia?
– Ah! – António esquecera-se mas relembrou-se e anunciou tristemente: – No outro dia é que percebi que já ninguém me pergunta o que quero ser quando for grande.

30 dezembro 2011

Márcia, farta dos silêncios dos últimos dias, sentou-se no sofá ao lado de António e interpelou-o mais uma vez, agora directamente sem rodeios nem meias palavras, fê-lo numa difícil conjugação de sentimentos com modos ásperos e ar aborrecido mas num tom compreensivo e disponível:
– Mas afinal o que se passa contigo, Tó?
António olhou-a de relance, engoliu em seco, encolheu os ombros e sussurrou apático: – Nada – voltando a fixar-se na televisão na esperança que a conversa não chegasse a arrancar.
– Nada?! – O semblante de Márcia endureceu mas, após o “nada” dito num tom mais consentâneo com as faíscas no olhar, a voz voltou a ser macia e agradável: – Tu não falas, não dizes nada. Andas a cair pelos cantos com cara de enterro. – A mulher ajeitou-se no sofá, virando-se mais para ele, e pousou a mão na sua perna esquerda, levando a que ele tornasse a olhá-la e que os olhares se cruzassem. Ela aproveitou: – O que se passa, António? É comigo?... É connosco?
Ele apreciou-lhe os olhos que chispavam dando ao castanho-amendoado ainda mais fogo e cor, reparou no ligeiro arquear das sobrancelhas que lhe dava um ar tristonho mas suplicante e nas pequenas rugas nas comissuras dos lábios que só surgiam quando ela estava tensa e séria. António parecia inocentemente embevecido quando se fixou nos lábios carnudos sem serem grossos e esqueceu as comissuras ou o arquear das sobrancelhas. Ela sentiu o olhar e sorriu. António, que adorava sentir-lhe os lábios e o que ela lhe fazia com eles, temeu que ela percebesse a volúpia no seu olhar e baixou os olhos que, “ó martírio!”, ficaram presos no decote dela. Adorava o que ela lhe fazia com as mamas. “Grisolete”, pensou António, sem saber como se escrevia ou sequer se o termo realmente existia e engoliu um sorriso por suspeitar que, se o mostrasse, o teria de explicar.
– Não, Márcia, não é nada contigo – disse António a meia voz, olhando para a janela da sala. – Nem connosco.
Márcia gostou do tom contido da resposta e do olhar esgazeado que ele lançou para a rua, apertou-lhe a perna com os dedos como se lhe quisesse transmitir força e depois acariciou-lhe o joelho.
António esperava que a mão lhe subisse pela perna. Adorava o que ela lhe fazia com as mãos. Esqueceu o decote, as mamas e a grisolete que, concluíra com mágoa, estava fora de questão e, até, os lábios, mas, sentindo a mão no joelho, pensou em tirar imediatamente as calças, que era o que lhe apetecia; só não o fez por julgar que era prematuro e, provavelmente, contraproducente. “Tenho de ter paciência,” pensou. “O joelho é um mero apeadeiro”, e riu para si.
– Mas, então, o que se passa? – insistiu Márcia, sem afastar a mão do joelho, sentindo que ele não ia continuar a falar.
– No outro dia percebi uma coisa – disse António, sério e compenetrado, ainda que não conseguisse deixar de pensar porque é que ela não lhe largava o joelho e não lhe subia pela perna acima. – Uma coisa em que nunca tinha pensado antes e de que só me apercebi há dias – continuou ele lentamente, fixando-se na mão dela que tentava puxar telepaticamente mais para cima, sem sucesso. Frustrado, esqueceu-se do que estava a dizer e calou-se.
Márcia suportou o silêncio enquanto conseguiu; percebeu que o estava a fazer muito para além do habitual mas quis respeitar-lhe o ritmo. Não o queria apressar ou pressionar. Esperava uma confissão dorida ou a exposição de qualquer coisa séria que o atormentava e, sabia-o por experiência própria, era necessário que a pessoa que se expõe possa fazê-lo nas suas condições, nos seus termos, seguindo os seus próprios ritmos e sentimentos.
Continuaram calados: ele a olhar para a mão, ela a olhar para ele.
– E? – Lançou Márcia num murmúrio respeitoso, na dúvida entre o temor de que o momento tivesse passado e o medo de estar a ser precipitada.
Alheio às dúvidas de Márcia, António dividido entre a decepção dos seus malogrados esforços telepáticos e a enumeração fantasiosa das virtualidades que um poder desses podia ter para melhorar a sua vida sexual que o “E?” subitamente interrompeu, respondeu sem pensar, num tom ressentido e com expressão naturalmente aparvalhada: – E, o quê?
Márcia tomou o tom e o ar de António como a resposta à sua precipitação: ele precisava de mais tempo. “Os homens são assim”, pensou. “Precisam sempre de mais tempo.”
– E… – Márcia falava com ar compungido como se pedisse desculpa. “Coitados!” – O que é que percebeste no outro dia?
– Ah! – António esquecera-se mas relembrou-se e anunciou tristemente: – No outro dia é que percebi que já ninguém me pergunta o que quero ser quando for grande.

23 dezembro 2011

O Cometa

Vera entrou em casa, viu as chaves de Manuel dentro do cinzeiro em cima do móvel da entrada e gritou enquanto caminhava à procura dele:
– Um planeta. Um planeta!
Manuel, sentado em frente ao portátil pousado na mesa da cozinha, viu Vera entrar, lançar a mala para cima da mesa e, em silêncio, ouviu-a repetir num sussurro sentido:
– Um planeta!
O homem coçou a sobrancelha esquerda num tique nervoso e permaneceu sentado e calado à espera da explicação para os três planetas que Vera lançara desde que entrara em casa.
Vera abriu a mala e procurou, no meio do caos e da matéria negra que se concentrava aí dentro, o seu telemóvel.
Manuel passou as pontas dos dedos da mão direita pelo queixo, suspeitava saber do que estava ela à procura e de onde lhe provinha a fúria mas permaneceu calado e expectante, tendo confirmado as suas suspeitas quando ela lhe mostrou o telemóvel como se o objecto fosse, só por si, uma acusação incontestável. Manuel só não conseguia perceber de onde vinham os planetas.
– Sabes o que é isto? – Perguntou Vera agitando o telemóvel. Manuel anuiu com a cabeça. Vera continuou: – E para que serve? – Manuel repetiu o gesto. Vera acrescentou com desprezo: – Bem me parecia que era só por não me quereres ligar.
Manuel juntou as mãos em cima da mesa e entrelaçou os dedos.
– Nem uma mensagem, foda-se! – Recriminou Vera, largando o telemóvel em cima da mesa ao lado da mala. – Nem um miserável sms…
Manuel pensava numa desculpa que, na realidade, nem lhe apetecia dar. “Não me apetecia falar e sms é para meninas.” Manuel riu para dentro: “Ou para enviar a meninas.”
– Não dizes nada?! – Vera esperara por uma das desculpas esfarrapadas com que o companheiro a costumava brindar e que a enfureciam mas, ao mesmo tempo, a divertiam; a ausência de desculpa era uma novidade para a qual não estava preparada. Puxou uma cadeira e sentou-se, olhando-o fixamente como se, assim, lhe conseguisse arrancar uma resposta.
Manuel esperou, olhou para os dedos que movia sem separar as mãos, e esperou que ela voltasse a mexer no telemóvel. Nervosa, Vera desviou o olhar e tocou no telemóvel, fazendo-o girar. Deixou-o parar por si e agarrou-o. Sem levantar os olhos das mãos, Manuel sorriu. Fechou o sorriso e perguntou:
– E o planeta? O que era o planeta?
Vera uniu as mãos com o telemóvel lá dentro. Sérgio dava-lhe valor, mimava-a. Ligava-lhe para lhe dizer que se lembrara de si por coisas insignificantes e mandava-lhe mensagens dúbias com segundos e terceiros sentidos que a faziam corar e rir como uma adolescente. “E, no entanto, é este parvo que me tem. Que me come.” Sérgio era um satélite. Uma lua que girava em torno de si. “Um planeta. Eu sou um planeta…”
– E tu pensas que és o sol – concluiu Vera, sem mais explicações.
– Eu penso que sou o sol?
– Sim, pensas – concordou Vera – mas não és.
– E o planeta, és tu?
– Sou.
– E eu sou o sol – Manuel sorriu luminosamente; sentia-se assim.
– Não – atalhou Vera, com cortante secura –, não és.
O sorriso de Manuel extinguiu-se. Vera estudou-lhe o rosto, invulgarmente tenso, e sentiu uma estranha leveza, um bizarro e surpreendente bem-estar. O telemóvel vibrava-lhe nas mãos sinalizando a recepção de um sms.
– És um cometa – disse Vera a sorrir. – Um cometa brilhante, que nos alegra as noites e nos assombra os dias… – Vera sentia cócegas nas palmas das mãos e sorria – mas que se vai. – Manuel olhava-a em silêncio com ar estranho, algo alucinado. O telemóvel parou de vibrar. Vera concluiu, sem contemplações mas ainda tranquila: – Um cometa que brilha como o sol e que nos engana e que depois nos maravilha…
– Que nos alegra as noites e assombra os dias – repetiu Manuel que gostara da frase.
– Sim mas que se vai e no fim deixa apenas um rasto que se vê durante algum tempo mas depois se perde e se esquece…
– Até que volta.
– Tu não és dos que volta.

16 dezembro 2011

Transparente



– Se me soubesses ver eu não precisava de estar aqui.
– Se eu te soubesse ver?
– Sim. Se tu visses quem eu realmente sou, eu não estava aqui.
– Tu estás aí porque eu não te vejo como tu realmente és?!
– Sim.
– Estás a brincar!?
– Não.
– Estás a falar a sério?
– Estou.
– Estás a dizer que a culpa é minha por estares aí?
– Eu não disse isso. A culpa é minha.
– Mas se eu te visse como realmente és não estavas aí.
– Sim. Acho que sim. Não estava.
– Mas eu vejo-te, Diogo. Aliás, se queres saber, eu vejo-te como realmente és e, ao estares aí, só dás razão ao que eu vejo que és… Não!... Desculpa.
– Não?!
– Não, não é por estares aí que me dás razão…
– Não?
– Não, não é. O que me dá razão é a essa conversa. O facto de estares a fazê-la aí é indiferente; podias fazê-la noutro sítio, noutra circunstância. O que interessa e o que me dá razão é a conversa. A tua conversa. E a pessoa que eu vejo é a pessoa que tem essa conversa, que faz essa conversa e não há outra pessoa para ver. Só essa. Só tu.
– Mas eu não estava a dizer que a culpa é tua.
– Eu sei, já me tinhas dito… Já te chamaram?
– Já.
– Do Ministério Público ou do Juízo?
– Dos dois. O julgamento é às 11:30.
– São 20 para o meio-dia. Não devias estar a falar com o teu advogado?
– Advogada.
– Não devias falar com ela?
– Eu queria era falar contigo.
– Já falaste. Acho que agora devias ir falar com a advogada.
– É feia. Eu não quero falar com ela. Quero falar contigo, não queres cá vir?
– Não, obrigada. Dispenso.
– Podias ser minha testemunha.
– Acho que não ias querer isso. Parece-me bem que não te ia favorecer.
– Contavas a nossa história e como me deixaste de rastos…
– Quanto foi?
– O quê?
– O grau. Quanto é que acusou?
– Dois e vinte sete gramas por litro.
– Bom!... A que horas?
– Às 5:20… (Sou eu!)
– Estão-te a chamar?
(– Sim, está bem.)
– Diogo!... Diogo!
(– Não, não falei. É aquela?... Posso falar.)

09 dezembro 2011

Laços de Família

Qd é q me ias dizer?
O q?
Q tenho 1 madrasta.
Ah! Viste no facebook?
Pois, mudaste o teu estado
:-) estou numa relação!
Eu não gostei, cota, axo q 1 filho deve ser informado.
No stress, man. Stay cool. E, para não dizeres que não te digo nada, dou-te uma novidade em 1ª mão.
?
não tens só uma madrasta!
Então?!
Tens duas, meu caro.
Uau! Tás em grande, velho!
Não sou eu.
Pior. Comé isso?
A outra é da tua mãe :-p
...Da-se e ainda me melgam para eu ter juízo?!?!?... Vcs orientem-se, meu. Tenho dir
bjs

02 dezembro 2011

A Sanduiche

– Que ar é esse?
– Que ar?
– Esse, essa espécie de aparvalhado contentamento deslumbrado.
– Nem queiras saber.
– Apareceu comprador para a casa?
– Não.
– Arranjaste uma casa para te mudares?
– Não.
– Sabes o que eu acho?
– Não.
– Acho que as pessoas quando se divorciam devem mudar-se logo.
– É capaz. Mas por mim está tudo bem.
– Tudo numa boa?
– Na maior.
– Estiveste a fumar alguma coisa ou quê?
– Achas?!
– Sei lá, essa espécie de aparvalhado contentamento deslumbrado não é normal.
– A minha tarde não foi normal, se calhar é por isso.
– Não deve ter sido… Não deve ter sido nada normal, não. Mas, se queres saber, isso não me interessa nada! Vou jantar.
– Se queres saber…
– Não quero…
– Hoje fiz uma sanduíche!
– Boa!... Eu fiz sopa.
– Ah! Não… Não foi uma sanduíche dessas.
– Não?! Então foi de quais?
– Das outras.
– Quais outras?
– Daquelas… Tu sabes: uma sanduíche! Uma san-duí-che, estás a ver?
– Não devo estar, porque o que eu vejo não justifica esse aparvalhado contentamento.
– Uma sanduíche humana, bolas!
– Com pessoas?
– Sim, com duas pessoas, ou melhor, com duas mulheres!
– Ah!
– E a tua sopa?
– A minha sopa?!
– Sim, a sopa que fizeste é de quê?
– Vens me dizer que estiveste a fazer uma sanduíche e agora queres saber do que é a sopa que eu fiz?
– Sim. Um homem não vive só de sanduíches.
– Estou a ver. Ou melhor, não estou, nem quero ver nada!
– Tu é que perguntaste.
– Pois fui mas depois disse-te que não queria saber.
– Foi… E, afinal, a sopa é de quê?
– De legumes.
– Ah… De legumes… hmmm…
– E, na sanduíche, tu eras exactamente o quê? Uma desenxabida fatia de fiambre de peru magro fora do frigorifico há três dias?
– Qual peru, qual carapuça!... Eu era a carne! Carrrrne!
– E elas eram o pão?
– Sim, supostamente. Se era uma sanduíche.
– E foi em carcaça?
– Foi em carcaça, o quê?
– A sanduíche. Foi em carcaça ou em pão caseiro?
– Não estou a perceber… Não era pão! Não era uma sanduíche de pão.
– Sim, eu sei. Já me disseste, foste tu e duas mulheres. Tu eras a carne e elas eram o pão. Uma espécie de bifana.
– Sim.
– No prato?
– No prato?!
– Bolas! Se a bifana foi servida num prato, foi?
– Não era uma bifana…
– Ou uma sanduíche, é o mesmo. Foi no prato?
– Mas não era uma sanduíche, não havia prato. Éramos nós três.
– Tu e duas mulheres?
– Sim…
– Deitados?
– Ah!... Também… Porquê, no prato era se estávamos deitados?
– Era. Tu eras a carne e tinhas uma fatia de pão por baixo e outra por cima?
– Tinha!
– Coitada da fatia de baixo.
– Coitada?!
– Sim, ter de gramar contigo em cima e ainda com uma fatia de pão por cima a fazer mais peso… Que pouca sorte.
– Ah! Não, quando estivemos deitados foi de lado.
– Tipo cachorro…
– Quente!
– Pão, tu e pão.
– Pois.
– Pelo menos tinhas as costas aconchegadinhas…
– Achas que eu me importava com isso!?
– Sei lá, nunca fiz uma sanduíche. E empurrava-te?
– Quem é que me empurrava?
– A fatia de trás.
– Se me empurrava?
– Sim, contra a fatia da frente. Empurrava?
– Se calhar… Acho que sim… Esfregava-se, pelo menos.
– A fatia de trás esfregava-se em ti e tu esfregavas-te na fatia da frente.
– Sim… Mas isso dito assim…
– Como?
– Nada. Não interessa… Esquece a sanduíche.
– É o que eu mais desejo!
– Ainda há sopa?
– Se eu ainda tenho da sopa que fiz?
– Sim. Há?
– Tens.
– Tenho?
– Não. Não é “Há?”, é “tens?”. A sopa é minha, não é nossa.
– Era só uma forma de dizer.
– Acredito, mas não é a forma correcta.
– Ainda tens sopa?
– Tenho.
– Posso comer uma tigelinha?
– O quê?
– Se posso comer uma tigela de sopa.
– Podes, por mim podes. Podes comer as tigelas que quiseres! Podes mesmo comeres todas as tigelas que conseguires do armário da esquerda! Essas são todas tuas!

25 agosto 2011

Ponto de vista

Encontraram-se numa rua de Lisboa. Cumprimentaram-se e foram tomar café. Falaram disto e daquilo. Da curiosidade de se encontrarem e de se verem de vez em quando, por acaso. Riram-se de episódios passados do tempo em que trabalharam juntos. Era tarde e foram jantar.
Jantaram, conversaram e decidiram ir beber um copo.
No passeio à porta do restaurante, enquanto decidiam onde e como ir, António pôs um ar sério e perguntou, coçando a barba de três dias que lhe emoldurava a face:
– Posso dizer-te uma coisa?
António fez a pergunta olhando em frente e manteve-se assim. Alice fixou-se no perfil dele; estranhou-lhe o tom e o olhar perdido mas abanou afirmativamente a cabeça em resposta, ainda que sem grande convicção, pois, para mais, tinha a certeza que ele não a estava a ver.
– Podes – acabou por verbalizar Alice, continuando a estudar-lhe o recém-adquirido e inesperado perfil seráfico. A mulher aguardou ainda mais um momento para que ele dissesse o que queria dizer ou para que, pelo menos, se virasse para ela mas como nada aconteceu disse, ainda com um sorriso na voz: – Podes, desde que seja qualquer coisa boa.
Alice viu-lhe as pálpebras semicerrarem por um instante, como se ele estivesse a analisar a conformação entre o que lhe queria dizer e o pedido dela, e, sem saber porquê, não gostou.
– Não sei – confessou António, virando-se para ela. Os olhares cruzaram-se e Alice não conseguiu evitar franzir o sobrolho. António explicou: – Há coisas que nós não sabemos se as outras pessoas gostam de ouvir, apesar de nós termos de as dizer.
– Se tens de dizer deixa de ser importante a minha vontade, não é? – disse Alice, desconfortável.
António voltou a olhar em frente. Alice procurou ver o que ele estava a ver.
– Sim – anuiu António. – Se eu acho que tenho mesmo de o dizer nem te devia perguntar nada. Dizia-o e pronto.
– Diz.
– Para que me interessa andar atrás de ti se depois não dou o último passo na tua direcção? – perguntou António, em tom declamatório.
– O quê?
– Para que me interessa andar atrás de ti se depois não dou o último passo na tua direcção? – repetiu António.
– Tu é que sabes. – Respondeu Alice, surpreendida, sem saber do que estavam a falar. – Andas atrás de mim?
– Ando – reconheceu António, ainda olhando em frente. – Ás vezes procuro-te nos sítios por onde andas, ainda que normalmente não te veja.
– Isso não é normal. – Não havia censura na voz dela mas também não havia espanto, o que a espantou.
– Pois não. Mas passo lá, dou voltas que não precisava, invento caminhos para cruzar as ruas em que te podia encontrar…
– Mas procuras-me ou passas?
– Passo à tua procura.
Ele olhou para ela, os olhares cruzaram-se e ambos os mantiveram.
– Mas não paras? Não ficas à minha espera? Não me procuras ver?
– Não, não e nim. – António acompanhou a resposta com um sorriso, que se esbateu por si quando concluiu: – Procuro ver-te mas na verdade não te procuro para te ver.
– Isso é tudo muito estranho. Não é normal, pois não? Tens consciência disso?
– Tenho.
– Mas às vezes encontramo-nos.
– Sim.
– Ah… Mas não é por acaso…
– Não, não é por acaso, é porque eu procuro cruzar-me contigo…
– Ah…
– E procuro-te no facebook e em blogues.
– Porquê?
António cerrou os lábios e arqueou as sobrancelhas.
– Isso é que é o pior.
– O quê?
– A resposta ao porquê – disse ele. Ela ficou a olhar para ele, interpelando-o com uma expressão quase cómica de triste perplexidade e desencanto. Ele continuou sério e solene como se o que dissesse fizesse sentido: – Porque eu não sei bem… – hesitou. – Porque eu não sei porquê – corrigiu. – Não sei mesmo, nem bem nem mal – concluiu.
– Tu és um mar de dúvidas e incertezas, não és? – perguntou ela, omitindo o “continuas” que pensou que a frase devia ter.
– Nem sempre. – António encolheu os ombros com um sorriso agarotado e disse: – Hoje dei o passo em frente.
Ela abanou a cabeça, pensou por um momento e lançou-lhe:
– Vamos ser francos e directos um com o outro?
Ele concordou de pronto:
– Sim.
– E definitivos?
Ele cerrou os lábios numa expressão convicta e empenhada e anuiu com a cabeça:
– E definitivos.
Ela deu-lhe um beijo na face, agradeceu o jantar, disse-lhe adeus e foi-se embora.
Ele ficou em silêncio a vê-la afastar-se, contemplando embevecido o seu andar, congeminando razões e ocupações que a levavam a despedir-se assim, certo que a coisa correra bem.

18 agosto 2011

Coabitação e um gato

Deitada na cama, Ana terminou o primeiro parágrafo da página 214 do livro que estava a ler e marcou-o com o indicador direito. Conferiu as horas no seu relógio de pulso, vinte e cinco para as dez, e decidiu que eram horas de parar de ler. Tacteou a cama com a mão esquerda à procura do marcador, que estava parcialmente debaixo da sua nádega esquerda, virou-se um pouco para o lado contrário e tirou-o. Abriu e fechou o livro, depois de deixar o marcador entre as páginas onde antes estivera o indicador, e pousou-o na cama, com a intenção de voltar a ler quando se deitasse – estava a gostar. Afagou o gato deitado ao seu lado, que arqueou as costas para melhor sentir a mão da dona, e levantou-se. Olhou para o computador portátil, ligado mas em modo de suspensão, que estava numa mesinha preta ao lado da cama, confirmou as horas no relógio da mesa-de-cabeceira, 21:34 e tornou a olhar para o computador, hesitando entre conferir os e-mails e o facebook ou ir comer imediatamente. Na dúvida, rodou a cabeça e olhou para o gato como se lhe pedisse ajuda para tomar uma decisão. O animal percebendo o olhar da dona, saltou prontamente da cama para o chão e dirigiu-se à porta encostada, transmitindo claramente os seus desejos. Ana sorriu, achava que mais do que desejos o gato transmitia ordens. Olhou para o computador como se se justificasse à máquina, apagou a luz do candeeiro e seguiu o animal. “Tens razão, já são mais do que horas de comermos”, transmitiu-lhe telepaticamente quando abriu a porta do quarto e o deixou passar.
O gato correu para a sala e ela olhou para aí de esguelha, sem ver mais do que a televisão acesa na Fox. “Como é que ele vivia antes de haver tantos canais? De haver séries e filmes a toda a hora?”, pensou Ana referindo-se ao marido, de quem se esqueceu imediatamente quando o gato a ultrapassou vindo da sala mas já sem correr. A mulher achou graça aos passos decididos e à cauda empertigada do animal, como se ele fizesse questão que ela o visse e a obrigasse a segui-lo, e ficou a pensar no descaramento aristocrático do animal e na sua sorte por ter comer já feito e até quem o servisse, ao contrário dela que não fazia ideia do que ia preparar e comer ou pior, deu um risinho que não passou de um suspiro, sem saber sequer se tinha alguma coisa em condições para preparar.
Inventariando mentalmente o conteúdo do seu lado do frigorífico, sem deixar de seguir a cauda do gato, Ana foi apanhada de surpresa quando viu os pés do marido junto ao fogão quando o animal se enroscou neles. Parou na ombreira da porta, puxando instintivamente para trás o pé direito que já estava dentro da cozinha.
– Ah… Estás aí? – soltou Ana sem querer, incomodada pela presença do marido e pela ligeireza interesseira do gato; afinal estivera a ler para lá da hora de jantar para não se cruzarem e tinha vindo naquele momento principalmente por causa do gato.
O marido não lhe respondeu, não a ouviu ou fez que não a ouviu. Ela hesitou, voltou-se para trás mas olhou para o relógio e rodou sobre os calcanhares voltando-se de novo para o interior da cozinha, ainda sem entrar. Suspirou e esboçou um sorriso enfastiado na direcção do marido, que se voltara para ela sem expressão.
Alexandre, o marido, sem largar o cabo da frigideira, onde fritava dois ovos mexidos com um tomate e uma pequena cebola cortados em quartos, um dente de alho esmagado e folhas de orégãos frescos e pimenta preta, que agarrava com a mão esquerda, nem a espátula de madeira com que mexia o cozinhado, alternou, por segundos, o olhar entre os ovos e a mulher que parecia ter de vencer um campo de forças que ele emanava para entrar na mesma divisão da casa.
– Ainda não jantaste? – questionou Ana, sem se mexer nem disfarçar a censura que lhe moldava o tom, servindo-se de uma pergunta de resposta óbvia para esconder o aborrecimento de ver o gato enrolar-se nas pernas dele pedindo-lhe descaradamente mimo e comida, não necessariamente por essa ordem, e o facto de não ter voltado para trás enquanto tinha podido fazê-lo em silêncio.
Ana e Alexandre, casados, sem filhos mas com um gato, um sacaninha que parece ter verdadeiro e consciente prazer em provocá-los sempre que os apanha juntos, vivem num apartamento pequeno, com dois quartos, uma sala, uma cozinha, uma dispensa e uma casa de banho, que agora parece ter encolhido e em que eles parecem esbarrar continuamente um com o outro, apesar de não se quererem ver, como se a casa se voltasse contra eles e os quisesse levar ao confronto e ao fim do último dever conjugal que ainda cumprem: a coabitação.
Alexandre tornou a olhar para a mulher, baixando ostensivamente o olhar para os pés dela que não se moviam. Não conseguiu evitar um sorriso mas, quando se apercebeu que não o conseguiria esconder, virou-se para o fogão, evitando que Ana o visse. Então, apagou o lume, retirou a frigideira para um bico frio, baixou-se para afagar o gato ganhando tempo e perguntou com ar de quem não ouviu bem a pergunta da mulher:
– Se eu já jantei?
O casal olhou-se com ar sério, ela em pé junto à ombreira da porta, ele agachado ainda a fazer festas ao gato. Ana manteve a pergunta deixando descair a cabeça e proferindo um sim sumido. O marido olhava-a calado como se esperasse qualquer coisa. O gato parecia rir-se para ela, ainda que ela estivesse certa e segura que o gato não se ria para si mas de si, o pérfido.
– Sim, ainda não jantaste? – reforçou Ana, comprimindo o silêncio que a enervava.
– Já – mentiu Alexandre, passando uma última vez a mão pela cabeça do gato, antes de se levantar e se virar para o fogão, agarrar a pega da frigideira e completar a mentira em tom neutro: – Estava a fazer estes ovos para ti.
Ana, que recomeçara a andar lentamente, procurando, sem conseguir, desviar os olhos do gato, falhou um passo, o que ele percebeu pelo som dos chinelos no chão da cozinha. Alexandre sorriu e, satisfeito, imaginou-lhe a expressão surpreendida.
– Ainda não jantaste, pois não? – perguntou o homem, prolongando a farsa.
Ela aproximou-se do fogão e ficou ao lado dele, observando os ovos mexidos. Há muito tempo que não estavam tão próximos um do outro. O gato roçou-se na perna direita de Ana e na perna esquerda de Alexandre.
– Tem bom aspecto – reconheceu Ana, a quem a súbita visão da comida cozinhada, pronta a ser servida e a comer agravou a sensação de fome e vazio no estômago.
Entediado, faminto e desesperado, o gato esticou a cauda na horizontal e entrelaçou-se caprichosamente entre as pernas de ambos, levando-os a sorrir um para o outro, agoniando-o de tal maneira que, se pudesse, o gato lhes retraçava as pernas todas até chegar aos ossos e fazer um mar de sangue no chão da cozinha.

12 agosto 2011

O Tapete

Foi uma cena de filme: dois indivíduos param o automóvel, abrem a mala, tiram com algum esforço um grande tapete enrolado e atado com uma corda em volta, que parecia embrulhar qualquer coisa com a forma de um corpo, e lançam-no, com inesperado à vontade, às águas acastanhadas do Tejo. Fizeram-no com tal descontracção que quem viu a operação – atletas de fim de tarde, namorados de principio de noite e velhos babosos interessados em ver as atletas e as namoradas (e um que via os atletas e os namorados) – ficou espantado mas sem acreditar verdadeiramente no que via.
E, quando os dois homens se meteram no carro e se afastaram calmamente, os mais esclarecidos e os menos distraídos com as atletas que continuavam a correr e com as namoradas que continuavam a passear – o que apreciava os atletas e os namorados não pensou em nada, ou melhor, censurou os homens por deitarem fora um tapete com tão bom aspecto e uma corda nova – procuraram câmaras de filmar e tomaram atenção para ouvir um “corta” gritado. Só que nada aconteceu, ou melhor, aconteceu o que tinha de acontecer da forma mais prosaica que seria imaginável: o tapete afundou-se e desapareceu, os homens sorriram a quem os olhava e seguiram sem deixar rasto, matrícula ou algo que ajudasse à sua identificação e os atletas continuaram a correr, os namorados a namorar e os velhos (alguns não eram assim tão velhos) continuaram a tomar atenção aos corpos em que estavam interessados.
Para variar, a polícia chegou um pouco depois, o que causou um certo burburinho e expectativa entre os presentes, reconheça-se, mas o agente vinha buscar um dos velhos que, sem mostrar os genitais, se masturbava e gritava palavras de incentivo quando as corredoras passavam – as palavras eram de incentivo ao seu acto e não aos dotes atléticos das corredoras, o que, provavelmente, provocava os indignados telefonemas anónimos efectuados por vozes ofegantes para a policia – e, por isso, o burburinho e as expectativas esmoreceram e desapareceram logo que o agente em vez de se dirigir ao rio se dirigiu, como habitualmente, ao velho indecente.
– Ó Artur, pá, sabes bem que tenho uma grave micose na virilha – resmungou o idoso, justificando-se sem tirar a mão direita de dentro das calças quando o agente o abordou.
O agente riu-se e, agarrando-o cuidadosamente pelo braço esquerdo, disse-lhe:
– Vamos lá embora, senhor Anselmo.
O velho levantou-se e, após um longo suspiro, murmurou:
– Estava quase, pá. Quase! Hoje é que era…
– Mas porque é que você grita, homem?
– É mais forte do que eu – reconheceu o velho onanista encolhendo os ombros. O agente sorriu, condescendente. Picado pelo sorriso, o velho ergueu o braço e num gesto largo que abarcava todos os mirones resmungou injustiçado: – E eles?!
– Eles não gritam – informou lacónico o agente, abrindo a porta do pendura do veículo com o dístico de “Escola Segura” para o velhote entrar.
O velho aceitou a resposta, que sabia ser verdadeira, pediu ao agente que o deixasse em casa e contou-lhe a estranha história de dois tipos que levavam um tapete na mala do carro e que, sem mais, o tiraram do carro com esforço, porque o tapete estava pesado e parecia enrolar qualquer coisa, e depois o deitaram ao rio mas o agente – tal como vocês – não acreditou.

04 agosto 2011

verde-código-verde

Passou o produto no leitor de códigos de barras, ouviu o sinal sonoro da introdução do preço na conta do cliente, olhou para o tapete rolante vazio à sua direita e, esforçando-se por mostrar um sorriso, ainda que tristonho e cansado, perguntou se era tudo. O cliente acenou que sim com a cabeça e fez um ligeiro trejeito com os lábios. A mulher perguntou-lhe se tinha cartão de cliente. O homem estendeu a mão e deu-lho juntamente com o cartão de Multibanco e um papel que dava desconto. Ela usou-os, anunciou o valor a pagar, carregou na tecla que fechava a conta e, sem qualquer comentário ou gesto supérfluo, fez a operação de cobrança que o homem concluiu com o verde-código-verde habitual. Ele agarrou nos sacos de plástico com a mão esquerda e ela deu-lhe a conta e um desconto em combustível que ele segurou com a mão direita. Desejaram-se mutuamente boa tarde, cruzando os olhares uma fracção de segundo mais do que o normal e pensando ambos, naquele instante antes de o homem seguir carregando os sacos e a mulher recomeçar a passar produtos no leitor de códigos de barras, que a tarde seria boa se a passassem juntos.

28 julho 2011

E os homens também.

Sentado na esplanada, B. vê A. caminhando com ar perdido e acena-lhe para o chamar. A. retribui o aceno com aparente dificuldade e caminha lentamente na direcção do amigo. Sem falar, puxa uma cadeira, deixa-se cair como se tivesse sido baleado naquele momento e fica aparvalhado a olhar para o horizonte, no caso a fachada em ruínas de um prédio do outro lado da rua. B. que lhe conhece os exagerados gestos teatrais a pedirem tortuosas explicações, bebe metade da imperial, agarra meia dúzia de tremoços para ir debulhando como pipocas no cinema e pergunta sem preâmbulos:
– Então, o que foi agora?
A., suspira ruidosamente recuperando vitalidade (mas pouca), estica o braço para colher uma mão cheia de sementes amarelas demolhadas em água e sal, ergue um dedo a pedir uma imperial, ergue outro a pedido de B., espera que o empregado lhe veja os dois dedos no ar e, quando isso acontece, aponta para o copo quase vazio de B.
– Ó pá... – A. interrompe-se para descascar e comer um tremoço, numa sucessão perfeita de movimentos mínimos mas absolutamente eficazes, e, depois de deglutida a semente cozida, continua com ar sofrido: – Não me digas nada... não me digas nada.
B. bebe o resto da cerveja, pensa como era bom se isso resultasse e murmura:
– Se eu não disser nada tu também não dizes?
– O quê?! Estás a rezar ou quê?
– Não. Estava a pensar numa coisa.
– Ah... Quem me dera ser assim, a poder pensar noutras coisas, a poder estar sentado como tu, despreocupadamente, numa esplanada a beber cervejas e a comer tremoços...
– Pois é... – B. mantém-se sério. – Ás vezes, as pessoas nem percebem a sorte que têm em poder estar assim, sentados, numa esplanada a beber cervejas e a comer tremoços... Aliás,...
A. concorda movendo a cabeça em câmara-lenta, com o ar cómico de quem vai desfalecer se continuar a concordar com tanto empenho.
B. olha-o, percebe que A. não o ouve e só espera que ele se cale para desfiar as suas últimas e insuperáveis tragédias, e conclui:
– Aliás, parece-me que há pessoas que mesmo quando estão sentadas numa esplanada a beber cervejas e a comer tremoços não sabem que aí estão e que, se depois lhes perguntarem, negam ou então dizem que só lá estiveram por absoluto altruísmo para acompanhar um amigo, só por isso, e só beberam uma imperial e comeram um tremoço por solidariedade e com muito esforço.
– Pois é... – A cabeça de A. continua a pender e a subir e a pender e a subir como se tivesse ganho autonomia. – Ó pá mas tu nem sabes o que me aconteceu...
– Mas vou saber.
– As gajas são todas iguais. Não há uma que se aproveite.
– Essa é que é uma grande verdade – intromete-se o empregado, que pousa as duas imperiais e, agarrando no copo vazio, declara enfático, antes de se afastar: – Leiam os meus lábios: Ne-nhu-ma! Nem uma, amigos!
B. não comenta, agarra no copo cheio e dá dois goles. A. agarra no seu copo e acompanha-o, depois, a cabeça, logo que a boca se vê livre do copo, volta por motu próprio ao anterior movimento pendular e, por fim, diz:
– É que quando querem alguma coisa de um gajo – "Mas alguém quer alguma coisa de ti?" admira-se o amigo –, não o largam, andam atrás, não descolam, e isto e aquilo, e que torna e que deixa e ronhonhó...
– E re-béu-béu pardais ao ninho...
– Pois é – anui A., pondo na boca todos os tremoços que tem na mão, sem os descascar, uns sete ou oito, que come de boca aberta ante o olhar espantado de B., e, ainda com a boca cheia e a cuspir pedaços amarelos, continua: – Depois de terem o que querem, deixam de nos ligar e um gajo que se lixe!
A. espera que B. concorde mas este, hipnotizado pelo espectáculo amarelo, branco e cor-de-rosa que se desenvolve na boca de A. e arredores, demora a perceber e só depois de um "Não achas?" sibilino e amarelecido de A., replica, sem saber do que está a falar:
– Podes crer.
Satisfeito, A. bebe o resto da sua imperial para empurrar a massa de tremoços e cascas que não tinham sido engolidas ou expelidas como projécteis e conclui:
– É que são todas. As mulheres são todas iguais!
– Mas há umas que são mais iguais do que outras – replica B.
– É, lá isso é – concorda A. imediatamente, sem ouvir, mais preocupado em ser visto pelo empregado e garantir a pronta reposição de cerveja na mesa do que com o rumo da conversa. – Queres outra? É que hoje estão a escorregar que é uma maravilha!
B. diz que sim, que quer, que sim, que estão, e sorri satisfeito, mas com uma ponta de remorso, certo da inevitabilidade de ter de ouvir o que aconteceu a A. mas seguro de que isso só acontecerá quando ele próprio já estiver alcoolicamente preparado para tal.