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30 junho 2011

Impressão

O homem, baixo, feio, hirsuto e ligeiramente manco, aproximou-se com um deslocado sorriso radioso por baixo de um bigode mal amanhado e perguntou gentilmente:
– Boa noite. A menina desculpe, está a trabalhar?
A “menina” que o vira aproximar-se num crescendo de pânico e repulsa foi surpreendida pelo sorriso, pela gentileza e pelo timbre da voz do homem que, no entanto, não superaram a primeira impressão de horror e nojo que se instalara e que a dominava em cada olhar de esguelha que lançava ao homem.
– Sim, estou – respondeu a “menina”, com um sorriso plástico sem expressão.
Os olhos do homem brilharam de contentamento e, num gesto nervoso, rápido e quase imperceptível, levou a mão direita ao bolso das calças onde guardava a carteira, tocou no bolso, sentiu o volume da carteira e perguntou:
– E está livre?
– Eu não sou nenhum táxi – resmungou a mulher, liquidando o ar de menina com que se apresentava.
– Desculpe – pediu o homem. – Eu... Eu não...
– Estava a brincar – interrompeu ela, fazendo um esforço por dar verosimilhança à frase e ao riso com que a dissera. – Não ligue!
O homem voltou a sorrir, abanou a cabeça como se tivesse achado graça e, por fim, quando ela parou de rir, insistiu na pergunta com um ligeiro movimento da cabeça e um simples – E?
– Ah, sim. Estou. Estou livre – respondeu a mulher, com um sorriso nos lábios e angústia no olhar.
O homem alisou o bigode, encolheu os ombros e lançou brandamente:
– Está livre mas não está livre de preconceitos – e sorriu sem mostrar os dentes. A mulher cruzou pela primeira vez o olhar com o dele e não respondeu. Ele concluiu: – Obrigado, de qualquer forma.
– Obrigado?! Obrigado, porquê?
– Por ser transparente. – O homem tornou a tocar na carteira e despediu-se com um – Boa noite e bom trabalho – sem ironia.
– Obrigado – aceitou a mulher, aliviada por vê-lo de costas e a afastar-se. – E melhor sorte numa próxima vida – murmurou sem ironia.

23 junho 2011

O Casamento

As coisas não corriam bem. Aliás, se quiser ser mais preciso e correcto, tenho de dizer que as coisas entre eles corriam mal. Quase todas as coisas que os envolvessem a ambos enquanto casal corriam quase sempre mal, ainda que, a cada um individualmente as coisas até corressem bem; mesmo as que ao casal corriam mal. Era estranho e eles sabiam isso. Naquele momento, nem eles, nem ninguém, percebia a insistência no casamento. Eu, pelo menos, não percebia mas eu sou um mero narrador – a história não é minha e as minhas opiniões não são importantes. Tudo era mau e as conversas entre ambos nunca chegavam ao fim.
– Mas houve um momento em que fomos felizes – declarou o marido.
– Foi?! – espantou-se a mulher.
– Foi – confirmou o marido, deixando a cabeça pender ligeiramente e mantendo esse movimento mais do que o necessário.
– Os dois ao mesmo tempo? – perguntou a mulher, depois de desesperar pela imobilização da cabeça dele.
– Sim – respondeu ele, convicto.
– Houve um momento em que fomos os dois felizes ao mesmo tempo?! – insistiu ela, arqueando as sobrancelhas.
– Houve – respondeu ele, seguro.
– Quando?
O homem olhou para a mulher e ela devolveu-lhe o olhar. Ele fez uma careta enquanto erguia e baixava os ombros. Ela sorriu só com a boca e gracejou, ácida:
– Bem me parecia.
O homem baixou a cabeça.
– Mas houve – retomou o marido depois de um longo silêncio. – E não foi um momento…
– Foi uma época – gracejou ela.
Ele olhou-a fixamente semi-cerrando as pálpebras e mordendo o lábio inferior.
– Estás a gozar – disse o homem em tom pausado, com ar até um pouco melancólico – mas foi mesmo uma época.
– Uma longa época de verão – troçou a mulher, com o sorriso fino de displicente superioridade que o irritava.
E ele enterrava-se mais no sofá, cerrava os punhos que arrumava debaixo dos sovacos num movimento infantil e voltava-se para a televisão, com ar compenetrado como se fosse ver alguma coisa, a ruminar recriminações, até que, ao fim de um bocado, normalmente sentenciava:
– É sempre a mesma coisa. É impossível falar contigo – e seguia disparado em passo trôpego mas decidido para a sala de refeições do lar. – Velha de merda!
Ah!... Mas havia dias que era ao contrário e era ela que perdia e saía de supetão, ainda que devagar que o andarilho não lhe permitia grandes velocidades.

25 março 2011

O Chá

– E ele disse que achava que o frio era esclarecedor, seguiu a conversa sem dizer nada e acabou a proclamar “Viva o sol", como se, realmente, não quisesse esclarecer nada. – A mulher fez uma pausa, repetiu o “viva o sol” num murmúrio a olhar para o céu (o sol estava lá e via-se da janela mas não no sitio para onde ela olhou), e completou: – E eu perguntei-lhe: “O frio é esclarecedor porquê?”
A mulher, que falava enquanto lia um ofício numa folha de papel, calou-se e deixou-se perder na elaboração da resposta, teclando como se a pressão que fazia nas teclas e a rapidez com que digitava as palavras pudesse dar colorido e tom ao texto.
– Vocês estavam onde? – perguntou a outra mulher, depois de desesperar pela continuação da história.
– Num... – A mulher hesitou. – A beber café.
– E ele não respondeu?
– Quem?
– O Saraiva, quem é que havia de ser?!
– Não faço ideia – concluiu a mulher, sem parar de escrever.
– Não fazes ideia?! – Insistiu a falsa loura, de calças de ganga justas e uma cerimoniosa blusa de amplo e vistoso decote, batendo com uma caneta no tampo da mesa onde se empoleirara de perna traçada.
– Ó doutora… – gemeu a escrevinhadora, olhando desesperada para o monitor à sua frente. – O doutor Cristino quer que eu lhe envie esta resposta antes das cinco, para ele a enviar a seguir.
A doutora olhou para o relógio de pulso e encolheu os ombros:
– Acabas a história e eu vou-me logo embora.
A assessora do presidente do Conselho de Administração cerrou as pálpebras com força enquanto suspirava, abriu-as e capitulou com uma careta resignada:
– Aproveito e bebo um chá.
A doutora, vogal executiva do Conselho de Administração mas sem grandes atribuições, sorriu e recomeçou imediatamente a conversa:
– Estavam a tomar café e?
– A tomar café?! – Espantou-se a assessora que se levantara e rodeava a secretária, passando em frente à doutora que mudara igualmente de expressão: olhavam-se as duas com ar surpreendido.
– Tu é que disseste – esclareceu a vogal.
A mulher de pé riu:
– Só se fosse café com leite, ou melhor, com natas, mas sem café. – A assessora tocou na perna da doutora, um toque suave, junto ao joelho e piscou-lhe o olho antes de retirar a mão. – Quer chá?
Sem perceber porquê – sem sequer pensar nisso, na verdade –, a doutora ficou a olhar para o sítio onde a assessora lhe tocara, sentindo uma impressão estranha e longínqua que irradiava um calor ténue para o resto do corpo. Passou as mãos pelo cabelo, num gesto nervoso e excitado que a apanhou desprevenida quando se apercebeu de o ter feito e, de olhos fixos no cadenciado movimento das nádegas da outra mulher, demasiado perfeito para ser espontâneo, acabou por perguntar apenas:
– Chá de quê?

18 março 2011

a felicidade

Cristino conheceu Mária de quem teve uma filha, Pedra, e um filho, Luciomar, que nasceu e foi registado no Brasil, durante uma viagem de Cristino à Bolívia. Mária ficou em Portugal mas, no decorrer da gravidez, conheceu Tereso, um baiano que morava em Chelas junto ao Pingo Doce e que vivia morrendo de saudades do Rio onde tinha sido calceteiro. Pedra ficou com uma meia-tia da parte da madrinha da mãe e Mária foi ao Brasil para ver o calcetão que Tereso dizia ter feito. Na Bolívia, Cristino apaixonou-se por Sérgia, uma algarvia que acompanhava com bolivianas da vida nas calles de La Paz. Cristino achou-lhe graça e emprenhou-a, ainda que a meio da tarde do dia seguinte, já sóbrio, não conseguisse perceber porquê. Tereso deixou uma flor estranha e com um odor ainda pior no quarto de Mária na Maternidade Municipal Fernando Magalhães onde nasceu Luciomar e partiu. Partiu quatro costelas, dois dos três ossos ilíacos do lado direito e perfurou a abóbada palatina com um lápis n.º 2 quando foi atropelado. Tereso já não tinha intenções de voltar, pois gostava de grávidas mas não de mães, e o estado de morto que lhe diagnosticaram à entrada do hospital impediu-o de qualquer recaída, por isso, Mária, nada grávida e duplamente mãe, nunca mais o viu, nem recuperou o lápis que lhe emprestara. Na manhã de denso nevoeiro em que Cristino chegou da Bolívia ainda Mária não tinha voltado do Brasil mas, duas semanas depois, quando saiu de uma casa de banho segura em Ranholas onde evacuou, entre graves crises de obstipação, toda a coca que trouxera, já Luciomar, Pedra e Mária estavam em casa à espera das notas do narcotráfico como se não fosse nada com eles. Eram felizes.

11 março 2011

A Lavagem

– E agora, José?
O nomeado olhou desconfiado a mulher que o nomeara e, sem se mexer, replicou:
– Agora o quê?
– Nada – respondeu a mulher, arqueando ligeiramente as sobrancelhas. – Queres mais alguma coisa? – perguntou, servil.
José flectiu e esticou os braços como se fizesse uma flexão, olhou para as mãos abertas espalmadas no lençol e para os ombros nus da mulher. Apreciou-lhe o contorno do pescoço, estudou-lhe o rosto vistoso, fixou-se nos olhos amendoados, tanto na forma como na cor e respondeu: – Não, porquê?
– Não queres mais nada? – insistiu a mulher.
– Não – repetiu José, enfastiado com a insistência.
– É que se saísses de cima de mim eu ia-me lavar – disse a mulher, com o tom mais suave e cordial que conseguiu.
– Ah… – Surpreendido mas sem se mexer, José soltou uma gargalhada e continuou a rir. – É que eu estou tão habituado a foder e a não sair de cima que até me esqueço – confessou com inusitada franqueza.
A mulher sorriu, um sorriso forçado mas bem disfarçado, e não respondeu: não sabia o quê. José flectiu o braço esquerdo, rodou o tronco e as pernas e caiu de costas na cama, ainda a rir.
Em silêncio, a mulher levantou-se e foi-se lavar. “É pena que o país não se lave assim, com esta facilidade”, suspirou para si sentindo a água quente escorrendo-lhe purificadora por todo o corpo.
No quarto, o homem ainda lançava gargalhadas e “porreiros” como se tivesse dito alguma coisa com graça e a mulher, ouvindo-o enquanto se esfregava com exagerada energia, decidiu ir no dia 12 à manifestação. “Que te lixes, José!... Vou e vou ser mais uma gota para ver se te lavamos de vez.”

04 março 2011

Ouvi Dizer

“Não é certo que ela me torne a falar, aliás, o mais provável é que ela nunca mais me venha a dirigir a palavra. Parece-me que isso é o que vai acontecer. Havia de fazer alguma coisa. Não é isso que quero. “Eu tinha tantos planos p’ra depois”. Ah! Acontecer! Fazer as coisas acontecer. Procurar que os meus desejos se realizem. Levantar-me e ir atrás dela. Falar-lhe. Dizer-lhe qualquer coisa. Podia mandar-lhe um sms ou um mail. Fazer uma chamada. Olha, voltou-se para trás. Sorri, estúpido, sorri! Vai ter com ela e fala-lhe. Ah... Acho que aquele dedo esticado quer dizer que nunca mais me vai falar. Bolas! Se calhar avancei depressa demais. Fecha o sorriso, já chega, ela não se riu para ti. “Na pressa de chegar até nós.” Levanta-te. Vai lá. Fala-lhe. Diz-lhe qualquer coisa que a faça reconsiderar. A tua unha do dedo médio está muito bem pintada. Não. Outra coisa. Desculpa. Sim. Pede-lhe desculpa.”
– Ana!
“Desculpa”
– O que é?
– Fica-te bem essa cor de verniz das unhas – “AAAAAAAHHHH!!! Não era isto…”
– O quê?!
– O verniz…
– Não é verniz, é gel!... Vês?
– Ah… Gel?!... E os outros dedos?
– Tu só vais ver este mas as outras unhas estão iguais, parvo! Adeus.
– Ah… Eu depois mando-te um mail…
– Não, não mandes, não te incomodes, escreve antes uma história.

25 fevereiro 2011

As Despedidas

– Há regressos que nunca se devem fazer. As coisas nunca voltam a ser as mesmas. Nós já não somos os mesmos. Se voltamos é porque esquecemos o porquê da separação; as razões da separação. A própria separação. Fantasiamos sobre um idílio que acabou e a que queremos regressar como se fossemos menos os que nos separámos do que os que estiveram juntos. Não há retornos felizes. As peças não tornam a encaixar. As peças depois de separadas, partidas, doridas, nunca mais se tornam a encaixar. Os regressos nunca se devem concretizar.
– Assim, definitivamente?
– Assim.
– Então… – Os olhares cruzaram-se. Ele fez uma pausa e perguntou: – O que estamos nós aqui a fazer?
– A despedirmo-nos.
– Definitivamente?
– Sim. – Ela sorriu, primeiro com os lábios e com os olhos, depois com todo o rosto, e completou: – Sim, definitivamente ou até à próxima despedida – e beijou-o, primeiro com os lábios e com a língua, depois com todo o corpo.

18 fevereiro 2011

Extasiado

Mal havia chegado ao átrio do tribunal quando ouviu o seu nome cantado em voz autoritária mas não desprovida de simpatia por uma funcionária judicial. Subiu as escadas em passo acelerado e respondeu prontamente ainda antes de as abandonar. Ouvindo-o, a funcionária interrompeu o nome seguinte, levantou os olhos, acenou ligeiramente com a cabeça na sua direcção e repetiu o seu nome, “Júlio F… A… F…”. Ele confirmou e, sem mais formalidades, ficou assente para todos os devidos e necessários efeitos que ele era ele e estava ali. Então, encostou-se à parede e ouviu a funcionária declamar, sem resultados, os nomes seguintes do rol de testemunhas do processo para o qual havia sido convocado e, contrariado por não estar incluído nas ausências, procurou as pessoas que o levaram a estar ali àquela hora da manhã. Ninguém. Nem testemunhas, nem arguidos, nem ofendidos. Nada. Nenhuma pessoa do “seu” processo; só um advogado.
– Vamos aguardar – declarou a funcionária, olhando para o relógio de pulso e depois para o advogado e para ele.
– Mas faz-se? – perguntou o advogado, aproximando-se da funcionária.
– Em principio não, mas para já não lhe posso garantir. Têm de aguardar – completou, incluindo-o.
O advogado, aproveitando a inclusão, cumprimentou-o, apresentando-se como mandatário do arguido, por quem Júlio ali estava, e seguiu esticando imediatamente a conversa condenando de forma veemente a falta de informação quanto às consequências da greve.
A funcionária ouviu o causídico com um longo encolher de ombros, enquanto Júlio escutava sem opinar, sentindo-se cada vez mais contrariado por estar ali.
– Vamos aguardar – rematou a funcionária no fim do arrazoado do causídico, afastando-se.
Assustado com a perspectiva de ficar sozinho com o advogado, Júlio chamou a funcionária, perguntou-lhe se tinha tempo de ir beber um café e sorriu-lhe agradecido com a resposta positiva. Estava livre, pensou, cruzando acidentalmente o olhar com o do advogado.
– Quer ir tomar um café, doutor? – convidou, sem querer, por mera educação, dirigindo-se ao advogado.
– Pode ser – respondeu o causídico com inesperada convicção e prontidão, que a frase que transcrevo não revela, nem na forma nem no tom, mas que, a bem da verdade, mantenho nos seus precisos termos.
No caminho, curto, entre o tribunal e a pastelaria mais próxima, falaram do tempo e da justiça e de como ambos se encontram cinzentos e pouco recomendáveis. O advogado falava de dias de sol e de tempos mais prazenteiros. “Com outras formas de se fazerem as coisas e em que nos sentíamos melhor. Muito melhor”, sublinhava em tom grave e sério. Desconsolado, Júlio ouvia-o sem balir, balançando a cabeça a compasso.
Já junto à porta da pastelaria, o advogado travou-lhe o passo, tocando-lhe com a mão no braço:
– Vamos antes ali – disse, apontando para um café mais adiante, sem disfarçar a observação atenta e interessada que fazia do interior do estabelecimento que acabava de rejeitar.
– Por mim… – respondeu Júlio, apanhado de surpresa e tentando, debalde, perceber onde o homem fixava o olhar.
O advogado, mantendo um estado de enlevada contemplação do que se passava para lá da montra envidraçada da pastelaria, perguntou-lhe, sem se mover e como se o fizesse para adiar por uns instantes o despegar do nariz do vidro:
– A não ser que se importe. Importa-se?
– Não – assegurou Júlio, encolhendo os ombros. – Por mim é igual, doutor.
E seguiram, o homem conjecturando numa explicação para o sucedido e o advogado, com uma súbita expressão de profundo desalento, recolhendo-se na análise visual das pedras da calçada que a seguir pisava.
Beberam o café e voltaram para a Casa da Justiça, sem trocarem mais do que meia dúzia de palavras de circunstância.
Subiram, souberam que o impasse se mantinha e desceram para fumar um cigarro.
– Se calhar, há bocado ficou a pensar que eu era maluco – disse o advogado, entre duas passas no cigarro.
– Quando? – perguntou Júlio, surpreendido, percebendo, quando se ouviu, que não o havia negado como queria.
– Quando fomos tomar café – esclareceu o advogado. Júlio fez uma careta como se não percebesse. Ele continuou: – Quando lhe disse para irmos mais à frente e fiquei a olhar para a pastelaria como um miúdo para uma loja de doces.
– Ah… – Fingiu Júlio sem muita convicção e, convicto, mentiu: – Não.
O advogado riu-se.
– Não viu, pois não? – perguntou, abrindo um sorriso de quem sabe um segredo.
– Não vi o quê, doutor?
– Não viu – troçou, definitivo. – Se visse, sabia.
– Mas dentro da pastelaria?
O advogado chegou-se a ele e segredou:
– Atrás do balcão está a coisa mais apetitosa que consegue imaginar. – Levou as pontas dos dedos aos lábios e beijou-as ruidosamente. – Um docinho! Uma coisa fantástica!
Júlio hesitou na resposta mas, apreciando os trejeitos e expressões de lúbrica admiração e voraz cobiça que o advogado teatralmente fazia com cómico empenho, decidiu segui-lo:
– Então… – olhou-o com ar sentido. – Então e levou-me para o outro café?
– Aquilo faz-me mal em jejum – justificou o causídico. – É que você não está a ver, nem sequer a imaginar.
– O doutor não me deixou – queixou-se Júlio, forçando-se a dar um tom lamurioso de irreparável decepção que o causídico sentiu e aceitou sem duvidar.
Penalizado e arrependido, o advogado olhou-o sério e declarou solene:
– O problema são as calças.
Júlio, espantado, balbuciou:
– As calças, doutor?
– Sim, senhor, as calças – confirmou o causídico, movendo lentamente a cabeça na vertical, com o ar entendido de quem perdeu tempo a pensar no assunto. – As calças de ganga que a empregada da pastelaria usa, invariavelmente do mesmo modelo e que é, certamente, o que mais a favorece… E favorece muito! – Exclamou com um sorriso matreiro e um piscar de olho a pedir cumplicidade masculina. Aguentou a pausa até o interlocutor sorrir e recomeçou: – As calças que ela usa ajustam e modelam-lhe as nádegas de tal forma… – mordeu o lábio inferior. – Faz-nos acreditar que Deus existe, é verdade, mas é-me tão penoso beber café ao balcão… – arrastou a frase e terminou-a num suspiro teatral. Fez uma careta, abanou a cabeça e concluiu: – Faz-me mal… Muito mal. Tão mal que, às vezes, prefiro nem ver… Fico extasiado… É mesmo, fico extasiado como um parvinho.
– Estava enganado o Camilo – comentou Júlio, sorrindo.
O advogado olhou-o por um momento, apanhado de surpresa mas a processar a informação com crescente alegria, e respondeu, rindo:
– Estava, de facto, estava. É verdade, por vezes, a gente extasia-se! Extasia-se mesmo!

“– A gente não se extasia, minha senhora. Olha.”, de A Mulher Fatal, de Camilo Castelo Branco.

27 janeiro 2011

Um repentino pensamento libertador

Pôs a mão esquerda no bolso interior direito do casaco e, como esperava, encontrou-o vazio. Com os lábios cerrados, expirou pelo nariz e tentou lembrar-se onde guardara o papel com o número de telemóvel. Nada. Então pensou que as coisas já não se fazem assim, que agora se troca de números com um toque de um telemóvel para o outro. Mas eles não haviam feito isso, ainda que não soubesse porquê.
Olhou para o seu telemóvel pousado na secretária, primeiro com o absurdo desejo de que o aparelho tocasse, depois com a inútil esperança de que por se fixar nele se lembrasse onde guardara o papel e, por fim, com a absoluta certeza de ter perdido o papel e de nunca mais voltar a falar com ela.
“Ela pode ligar-me”, desdramatizou ainda a olhar o aparelho. Agarrou-o e, com dois toques, desbloqueou-o para verificar que estava ligado, que tinha rede, bateria e não estava no silêncio. A confirmação do estado de prontidão do aparelho não o alegrou, pelo contrário, sem saber porquê, deu-lhe a certeza que não seria ela a ligar-lhe.
Largou o telemóvel ao lado do portátil onde escrevia e viu o punho da camisa branca com riscas azuis e a manga azul escura do casaco pousada sobre a secretária. “Eu não tinha este casaco”, afirmou para si, movendo os lábios sem emitir as palavras. “Tinha uma camisa branca, lisa” pensou. Rolou a cadeira para trás e constatou que as calças azuis não eram as mesmas que usara no dia anterior. “Eram as castanhas”, sorriu sem alterar a expressão, “e o casaco era o castanho.”
Esqueceu a manga azul e fixou o sucedâneo de folha branca que brilhava no ecrã. Sorriu. “O papel ficou no casaco de ontem”, acreditou. “Logo ligo-lhe”, decidiu e parou de escrever.


O título do post, "Um Repentino Pensamento Libertador", é o título de um excelente livro de Kjell Askildsen, editado pela Ahab.

20 janeiro 2011

O testemunho

– E a senhora ouviu alguma vez o senhor A. dirigir alguma palavra incorrecta ou ter alguma atitude deselegante com a mulher, a senhora B.?
– Nunca!... Ele era um marido que aceitava tudo, era um paz de alma. O senhor A. era um burrinho à chuva.
– Um burrinho à chuva?!
– Sim, um burrinho à chuva. Até lhe vou contar um episódio, só para a senhora doutora ver como ele era com a mulher: eu uma vez fui lá a casa e ele estava a arear os bicos do fogão… Veja bem, a arear os bicos do fogão. Ela na sala a ver a novela e ele cheio de brios e cuidados de volta dos bicos. E eu disse-lhe, doutora, eu disse: Ó Cilinha (eu tratava-a por Cilinha… Por Cilinha, doutora, veja bem como eu gostava dela, nem lhe chamava Raimunda nem nada)…
– Não estou a perceber, a senhora não se chama Raimunda?
– Eu?! Eu não, Deus me livre!
– Eu sei que a senhora não se chama Raimunda…
– Graças a Deus e aos meus paizinhos.
– Seja. Voltemos aos factos.
– O facto é que ela não gostava, doutora, não gostava nada. Chamar-lhe Raimunda era pior que cuspir-lhe.
– Pronto, já percebemos. Essa parte do nome está esclarecida, D. Engrácia Genoveva. A senhora estava a dizer que lhe tinha dito…
– Sim, eu disse-lhe: “Ó Cilinha, quem me dera a mim ter um homem que me tratasse dos bicos como o teu… Que regalo. Olha para aquelas mãos tão cuidadosas de volta dos bicos, mulher, a rodeá-los com tanto cuidado, a esfregá-los com tanto carinho. Quem me dera que alguém me esfregasse os bicos assim…”
– E ela?
– Ela?! Ela virou-se para mim e disse-me: “E nunca o viste tu de joelhos a passar-me o corredor a pano”.
– Diga?
– Digo, doutora, digo… mas nisso ele não era tão bom.
– Desculpe?
– É verdade, eu até acho que ele tinha uma fixação por bicos, está a ver?… Para o resto não lhe puxava tanto.
– Ainda está a falar do fogão?
– Do fogão?! Ah, sim, sim, do fogão. Pois, dos bicos do fogão, ele estava a areá-los.

13 janeiro 2011

O órgão (social)

O gerente enleou-a pela cintura e murmurou-lhe ao ouvido:
– Estou pronto.
A mulher baixou os olhos, viu-lhe os braços nus sobre a sua blusa e, espreitando entre os seus próprios braços e corpo, viu-lhe o tornozelo, a canela e parte do joelho esquerdo. Engoliu em seco ante a perspectiva da completa nudez do gerente.
O gerente lambeu-lhe a orelha com a ponta da língua e emitiu um longo e grave grunhido, provavelmente com a melhor das intenções.
A mulher tornou a engolir em seco ao sentir um corpo cilíndrico estranho crescer e ajustar-se entre as suas nádegas.
O gerente beijou-lhe suavemente o pescoço, aproveitando o seu cabelo curto.
Sem saber o que dizer, a mulher repetiu-lhe a frase acrescentando um ponto de interrogação:
– Estás pronto?
– Estou – respondeu o gerente, lampeiro e lambareiro. – Muito pronto!
– Ahn… – A mulher hesitou e falhou propositadamente o som ou a frase que não emitiu.
O gerente percebeu a hesitação e, por um momento, duvidou da arrojada estratégia que seguira. Sentiu um arrepio de frio nas nádegas que logo explicou com o funcionamento do aparelho de ar condicionado e afastou as dúvidas: o caminho era aquele.
– Então, minha querida? – Sussurrou da forma mais sensual que conseguiu, que lhe soou como um patético, lancinante e desesperado pedido por sexo, que era, mas que não devia ser ou, pelo menos, não devia parecer. – Então? – encurtou, encostando-se mais.
A mulher repetiu o som e a hesitação, não se mexeu e sentiu que faltava algo no volume que se esfregava na sua saia.
– Hum… – mudou o som e prosseguiu: – Não sei.
– Eu estou pronto – insistiu ele, como se isso fosse uma novidade. – E acho que tu também estás muito pronta para levar com ele – opinou, com entoações maviosas como se declamasse um verso.
A mulher pousou o telemóvel em cima do balcão da cozinha, a que estava encostada e virou-se, encarando-o.
– Estás nu? – perguntou, fingindo-se surpreendida, ao mesmo tempo que percebia o que faltava no volume cilíndrico que se esfregara na sua saia: centímetros.
O gerente respondeu com um recital silencioso de sobrancelhas, concluído com um “tcharam!” manual em que lhe apresentava o órgão do órgão social que ele era.
– Mais do que nu: estou pronto! – publicitou. – Pronto para o amor!
– Estou a ver – disse ela, automaticamente, mas, na verdade, não estava, ou melhor estava e não estava: estava a ver uns doze ou treze centímetros e não estava a ver, pelo menos, mais uns quatro ou cinco que lhe pareciam essenciais. – Ah… – deixou escapar.
– Ficamos aqui, na cozinha? – perguntou ele, excitado, interpretando o “Ah” como um elogio.
Ela, avaliando a forma entusiástica e pouco contida como ele se comportava, temeu pelos soalhos e carpetes das restantes exposições, pois, entre os mosaicos do chão e a fórmica das mobílias a limpeza era muito mais fácil de fazer e a probabilidade de ficarem vestígios era significativamente menor. Acrescentando ainda a não despicienda limitação de posições possíveis para o acto, a mulher achou a exposição das cozinhas mais do que ideal: era a única possível. Sorriu, anuiu com a cabeça e reforçou:
– Sim, ficamos já aqui.
Ele sorriu e começou a desabotoar-lhe a blusa. Ela pôs as mãos atrás das costas, desabotoou a saia e deixou-a cair até aos pés. Os olhos dele percorreram-lhe o corpo, enquanto as mãos lhe cingiam o tronco, afastando a camisa aberta para a contemplar.
– Deixa-me apanhar a saia – pediu ela.
Como se estivesse hipnotizado, ele deu um passo atrás em contemplativo silêncio.
A mulher apanhou a saia, endireitou-a e pousou-a nas costas de uma cadeira.
– Está tudo fechado? – perguntou.
Ele, sem sair do transe, assentiu com a cabeça.
– E as câmaras? Desligaste?
O gerente, sem mexer a cabeça, desviou os olhos para a saia, mordeu o lábio inferior, tornou a olhar para a mulher e moveu ligeiramente a cabeça na horizontal. Os olhares cruzaram-se: o dele era de absoluto pavor. Ele desviou o olhar baixando a cabeça. Ela aproveitou e olhou para as virilhas dele, curiosa por saber até onde encolheria o pequeno órgão social.
– E agora? – balbuciou ele.
Ela fechou os botões da blusa, agarrou e vestiu a saia, pegou no telemóvel, mandou-o vestir, teve a certeza que chegava a chefe de loja sem ter de gramar com aquele minúsculo e ridículo pénis, ordenou-lhe em tom cordial para ficar ali até estar composto e avançou, sorridente, para tornar a ligar as câmaras à central.

05 janeiro 2011

O botão

– Sabe do que eu gostava, Alice?
– Sabe?!
– Sabes do que eu gostava?
– Sim, assim está melhor. Do quê?
– Se calhar, vai… vais levar a mal.
– Diga, homem. Se não disser…
– É que eu gostava muito.
– O que virá daí…
– Se calhar ficas aborrecida.
– É provável…
– Que fiques aborrecida?
– Sim, é muito provável, sr. Cruz, é que o senhor ainda não me disse nada e eu já estou a ficar aborrecida.
– Ah!… Queres dizer que, seja como for, já não me escapo?
– Mas o senhor quer escapar?
– Não, não quero.
– Então o quer, sr. Cruz?… Olhe que o seu tempo está a acabar.
– Ao tempo que o meu tempo está a acabar.
– Eu não estava a falar desse tempo, sr. Cruz.
– Eu calculei… Está quase na hora, não é?
– É. E estou quase a acabar e o senhor ainda não me disse o que quer.
– Não levas a mal?
– Hum… mas o que é que irá sair daí? Devo ficar preocupada?
– Não, preocupada não, não há razões para isso.
– Menos mal… Pode-se virar para dobrarmos as pernas.
– Para dobrarmos não, para eu dobrar.
– Só se for hoje, seu preguiçoso!
– Mas as pernas são minhas.
– São, quanto a isso não há dúvidas, mas como sou eu que as dobro.
– Isso é verdade… Podes-me pôr a almofada debaixo da cabeça?
O homem virou-se de barriga para cima, a mulher pôs-lhe a almofada debaixo da cabeça e, sorrindo, dirigiu-se aos pés da cama, onde lhe agarrou os pés.
– Vamos lá! Vou-lhe só levantar e segurar os pés e o sr. Cruz vai tentar dobrar as pernas.
– Ah…
– Força!
– Mais?
– Baixe a cabeça… Encoste a cabeça à almofada.
– Eu…
– Boa! Está a ver…
– Agora não.
– Outra vez. Estique. Vamos lá. Agora não? Agora não o quê?
– Não estou a ver.
– Boa! Dobre. Dobre. Está quase, está quase… Não estou a perceber nada, sr. Cruz. Não está a ver o quê?
– Nada. Não estou a ver nada.
A mulher segurou-lhe os tornozelos e empurrou-lhe suavemente as pernas, dobrando-as. Levantou a cabeça e olhou para a cabeça do homem pousada na almofada. O homem tinha os olhos fixos no tecto e uma estranha expressão de resignada tristeza. Em silêncio, ela flectiu-lhe as pernas mais algumas vezes.
– Já está – disse, terminando o exercício e esticando-lhe as pernas, enquanto se endireitava. Olhou para os pés do homem e, quando levantava a cabeça, espantou-se com a clara visão dos seus volumosos seios apertados no soutien rendado branco entre o tecido da bata que tinha um botão aberto a mais e, repentinamente, compreendeu o sentido da conversa do homem e a expressão amargurada com que ele contemplava o tecto.
Nesse momento, o homem levantou a cabeça e os olhos de ambos cruzaram-se, antes dos deles descaírem, por um instante apenas, para o acidentalmente generoso decote da fisioterapeuta.
– E, afinal… – a mulher decidiu dar a entender que não tinha percebido o olhar guloso do velho artrítico e, enquanto ajeitava a bata e fechava o botão, tornou ao desejo inconfessado do homem: – O sr. Cruz não me disse o que queria.
Injuriando em silêncio os dedos ágeis da mulher que fechavam o relapso botão da bata e lhe trancavam a felicidade por trás de um pedaço de tecido, o velho sr. Cruz murmurou:
– Fica para a semana, Alice. Fica para a semana.

22 outubro 2010

O Botão

– Sabe do que eu gostava, Alice?
– Sabe?!
– Sabes do que eu gostava?
– Sim, assim está melhor. Do quê?
– Se calhar, vai… vais levar a mal.
– Diga, homem. Se não disser…
– É que eu gostava muito.
– O que virá daí…
– Se calhar ficas aborrecida.
– É provável…
– Que fiques aborrecida?
– Sim, é muito provável, sr. Cruz, é que o senhor ainda não me disse nada e eu já estou a ficar aborrecida.
– Ah!… Queres dizer que, seja como for, já não me escapo?
– Mas o senhor quer escapar?
– Não, não quero.
– Então o quer, sr. Cruz?… Olhe que o seu tempo está a acabar.
– Ao tempo que o meu tempo está a acabar.
– Eu não estava a falar desse tempo, sr. Cruz.
– Eu calculei… Está quase na hora, não é?
– É. E estou quase a acabar e o senhor ainda não me disse o que quer.
– Não levas a mal?
– Hum… mas o que é que irá sair daí? Devo ficar preocupada?
– Não, preocupada não, não há razões para isso.
– Menos mal… Pode-se virar para dobrarmos as pernas.
– Para dobrarmos não, para eu dobrar.
– Só se for hoje, seu preguiçoso!
– Mas as pernas são minhas.
– São, quanto a isso não há dúvidas, mas como sou eu que as dobro.
– Isso é verdade… Podes-me pôr a almofada debaixo da cabeça?
O homem virou-se de barriga para cima, a mulher pôs-lhe a almofada debaixo da cabeça e, sorrindo, dirigiu-se aos pés da cama, onde lhe agarrou os pés.
– Vamos lá! Vou-lhe só levantar e segurar os pés e o sr. Cruz vai tentar dobrar as pernas.
– Ah…
– Força!
– Mais?
– Baixe a cabeça… Encoste a cabeça à almofada.
– Eu…
– Boa! Está a ver…
– Agora não.
– Outra vez. Estique. Vamos lá. Agora não? Agora não o quê?
– Não estou a ver.
– Boa! Dobre. Dobre. Está quase, está quase… Não estou a perceber nada, sr. Cruz. Não está a ver o quê?
– Nada. Não estou a ver nada.
A mulher segurou-lhe os tornozelos e empurrou-lhe suavemente as pernas, dobrando-as. Levantou a cabeça e olhou para a cabeça do homem pousada na almofada. O homem tinha os olhos fixos no tecto e uma estranha expressão de resignada tristeza. Em silêncio, ela flectiu-lhe as pernas mais algumas vezes.
– Já está – disse, terminando o exercício e esticando-lhe as pernas, enquanto se endireitava. Olhou para os pés do homem e, quando levantava a cabeça, espantou-se com a clara visão dos seus volumosos seios apertados no soutien rendado branco entre o tecido da bata que tinha um botão aberto a mais e, repentinamente, compreendeu o sentido da conversa do homem e a expressão amargurada com que ele contemplava o tecto.
Nesse momento, o homem levantou a cabeça e os olhos de ambos cruzaram-se, antes dos deles descaírem, por um instante apenas, para o acidentalmente generoso decote da fisioterapeuta.
– E, afinal… – a mulher decidiu dar a entender que não tinha percebido o olhar guloso do velho artrítico e, enquanto ajeitava a bata e fechava o botão, tornou ao desejo inconfessado do homem: – O sr. Cruz não me disse o que queria.
Injuriando em silêncio os dedos ágeis da mulher que fechavam o relapso botão da bata e lhe trancavam a felicidade por trás de um pedaço de tecido, o velho sr. Cruz murmurou:
– Fica para a semana, Alice. Fica para a semana.

15 outubro 2010

Um Interrogatório Informal

Vindo expressamente do Brasil para se encontrar e ouvir informalmente o ilustríssimo causídico português, que jurava a pés juntos querer colaborar incondicionalmente com a justiça brasileira mas não ter tempo para se deslocar ao Brasil, o rotundo Delegado Baleia mantinha ao fim de seis horas de conversa o mesmo ar descontraído, fresco mas repetitivo, insistente e tenaz com que a iniciara, apesar de se encontrar farto do seu melífluo, prolífico, escorregadio e inconsequente interlocutor – o Delegado coleccionava adjectivos que ia anotando em letra miúda nas margens das folhas do coçado caderno de argolas que o acompanhava e usava para tomar notas.
Sozinhos, o Delegado e o advogado, oficialmente não suspeito, esgrimiam e partilhavam de forma etérea, indefinida e aparentemente inconsequente argumentos, perguntas e respostas, dúvidas, conclusões e histórias relacionadas, nem sempre compreensivelmente, com as pessoas, as relações e os factos sob investigação.
A vasta experiência a interrogar toda a espécie de gente e a leitura compulsiva de policiais, haviam criado no mítico Delegado Baleia a capacidade de permanecer durante horas a fio com o mesmo ar e com o mesmo tom que adoptava no princípio dos interrogatórios e, em trinta anos de serviço, o Delegado só contava dois suspeitos que o tinham ultrapassado em paciência, frescura e talento para permanecer todo o interrogatório sem sinais de cansaço, desânimo ou desespero. O Delegado moía-os e cansava-os de uma maneira tal que, era certo, num dado momento os interrogados acabavam por quebrar – ainda que isso nem sempre fosse consequente para a investigação.
O Delegado recordou os dois interrogados que o haviam aguentado, ambos com mais cabelo que o homem que se sentava agora à sua frente, e, muito a custo, começava a convencer-se que teria de acrescentar um sujeito careca à reduzida galeria de interrogados inquebráveis.
Rodando a cadeira que viera com ele do Brasil, o Delegado ouvia com ar interessado o advogado relatando os fastidiosos e áridos pormenores de uma operação financeira e, ainda que a voz do interrogado lhe soasse um pouco fatigada, estava prestes a admitir a derrota e a dar por terminado o interrogatório na próxima hora, hora e meia: logo que recapitulassem a noite do crime pela vigésima vez. Foi o que fez logo que o causídico se calou.
Após longa e monótona recapitulação dos passos do interrogado no Brasil à data dos factos, o anafado Delegado declarou (levando o advogado ao desespero):
“Há coisas que eu ainda não percebi, doutor. Provavelmente, por incapacidade minha, admito, mas a verdade é que estamos aqui para nos esclarecermos ou, pelo menos, para eu me esclarecer.
Como já lhe disse e agora reafirmo, o Estado Brasileiro agradece encarecidamente a sua disponibilidade para se encontrar comigo. Da mesma forma que agradece ao Estado Português a disponibilização deste gabinete para o nosso encontro informal.” O Delegado olhou em volta. O ilustre causídico por mais que tentasse – e tentou muito – não conseguiu perceber se o interrogador estava a ser irónico, ainda que lhe parecesse que só podia dada a exiguidade e aspecto do gabinete.
O Delegado voltou a fixar-se no interlocutor e continuou:
“Longo e frutífero encontro em que, no entanto, eu me sinto defraudando todas as expectativas, até as suas, doutor. Ou principalmente as suas, doutor, que, com toda a certeza, esperava mais da pessoa que atravessando o Atlântico para consigo conversar e que o doutor certamente procurava iluminar…”
“Sabe, Delegado…” O advogado interrompeu a enviesada repetição do discurso inicial que o Delegado debitava mas calou-se. Olhou para os sapatos, passou as mãos pelo rosto e tornou a suspirar. Hesitava. Pousou o cotovelo esquerdo no braço do cadeirão onde estava sentado, apoiou o queixo no polegar da mão esquerda e tapou a boca com o indicador dobrado em forma de gancho. Olhou para o Delegado que se mantinha impávido à espera da continuação. O advogado cerrou os lábios, soltou o queixo, pousou o cotovelo direito no braço respectivo do cadeirão e juntou as mãos, entrelaçando e separando os dedos.
“A velha atacou-me”, desabafou com um profundo suspiro de cansaço o ilustríssimo causídico, causando o invisível pasmo do Delegado.
“Atacou-o, doutor?”, perguntou o Delegado, agitando-se ligeiramente na cadeira e mordendo ligeiramente o lábio inferior enquanto esperava pela resposta.
“Atacou-me”, confirmou sem mais detalhes o causídico, notando satisfeito a alteração, ainda que mínima, da expressão do Delegado.
“Atacou-o como?”, insistiu o Delegado.
“Atacou-me sexualmente”, completou o causídico, com uma careta como se a qualificação do ataque o incomodasse.
“Sexualmente?!”, soltou o Delegado, espantado. “A vítima atacou-o sexualmente?”
O causídico assentiu com a cabeça.
O Delegado procurou raciocinar mas não conseguiu e perguntou automaticamente como fazia nos casos de estupro: “A falecida molestou-o usando de violência, foi?”
O suspeito oficioso fixou o Delegado e corrigiu: “Antes de ser falecida.”
O Delegado abanou a cabeça: “Claro, antes de ser falecida. Mas molestou?”
“Não.”
O Delegado semicerrou as pálpebras fixando o suspeito, desviou o olhar para o tampo da secretária onde pousara as palmas das mãos abertas e, sem levantar os olhos, remoeu:
“A falecida quando ainda estava viva atacou-o sexualmente sem, todavia, o molestar, foi isso?”
“Foi.”
“E usou de violência?”
“Quem?”
O Delegado hesitou mas esclareceu: “Ela.”
“Não, foi apenas insistente. Demasiado insistente.”
“De tal forma que o Doutor considera que foi atacado.”
“Sim.”
O Delegado encaixou a resposta telegráfica sem disfarçar o enfado que lhe causavam as manhas do causídico que a todo o instante o tentava trapacear, expirou ruidosamente e contou os dedos espalmados em cima da secretária. Nove. Suspirou e, estudando o espaço que seria ocupado pelo mindinho esquerdo se o tivesse, decidiu saltar etapas.
Levantou as mãos da secretária, recostou-se na velha cadeira giratória de madeira que se ajustava ao seu volumoso corpo como um velho sobretudo, arrumou os braços sobre a barriga e perguntou docemente: “E o doutor, para se defender desse ataque inesperado e soes, matou-a?”
“Não.”
“Bem me parecia”, comentou o Delegado com ar subitamente divertido. “Mas ela concretizou o ataque?”
O causídico anuiu com a cabeça.
O Delegado Baleia continuou: “E o doutor consentiu ou foi forçado?”
“Consenti. Acabei por consentir.”
“E esse ataque teve lugar no dia do decesso?”
“Sim.”
“Na viatura?”
“Sim.”
“Em andamento?”
“Sim. A principio, sim.”
“O doutor imobilizou o veículo, foi?”
“Para nossa segurança.”
“A ela não lhe valeu de muito”, constatou o Delegado, com uma repentina gargalhada.
O ilustre causídico censurou-lhe o comentário e a gargalhada com um olhar mortífero mas não ripostou.
O Delegado parou de rir e perguntou: “E, afinal, em que é que se concretizou esse pretenso ataque?”
“A minha cliente disse-me, “Sabe, doutor”, e eu disse “Diga?” e ela virou-se para mim, pousando a sua mão esquerda na minha perna direita, afagou-a quase até à virilha e disse que gostava muito de mim, que sonhava comigo e que ansiava por me ter…”
“Assim de repente?”, interrompeu o Delegado, apertando o queixo entre o indicador e o polegar da mão direita.
“Sim, assim de repente.”
“Me desculpe. Me desculpe a interrupção. Continue… Ela ansiava por o ter?”
Os homens entreolharam-se em silêncio percebendo a duplicidade da pergunta. O Delegado ergueu contidamente as sobrancelhas mantendo a pergunta e o advogado respondeu:
“Foi o que ela disse. E depois continuou dizendo-me que, para além do patrão, nunca desejara um homem como me desejava a mim. E que tinha saudades minhas quando estávamos afastados. E nisto agarrou-me o meu órgão sexual e os meus testículos, de forma vibrante, apaixonada, quase desvairada.”
“E o doutor?”
“Eu fiquei surpreendido. Por uns momentos, nem tive reacção. Fui completamente apanhado de surpresa. Devo ter dito qualquer coisa mas só me lembro de sentir uma erecção e ficar envergonhado. Foi aí que decidi imobilizar o veículo. Ela já estava quase sobre mim, tentando abrir-me a braguilha e eu, ainda que não quisesse, estava a ter uma erecção.”
O Delegado ouvia com atenção, estudando com detalhe a fisionomia, os gestos e o tom do causídico. Este continuou:
“Assim, logo que pude, parei e tentei fazer parar a minha cliente.”
“Mas não conseguiu?”
“Pois não e a minha erecção excitava-a. Levava-a a crer que eu me estava apenas a fazer difícil. A tentar ser social e profissionalmente correcto mas que, no fundo, também a desejava.”
“Os advogados em Portugal não podem comer as clientes?” perguntou o Delegado de chofre, esquinando o sorriso.
“Claro que não”, empertigou-se o causídico.
“Nem praticar quota litis”, lançou o Delegado, mantendo o sorriso matreiro.
“O que tem isso a ver para o caso?”
“Nada”, reconheceu o Delegado. “Foi só uma outra coisa que eu me lembrei que os senhores advogados portugueses não podem fazer. Não é verdade que não podem estabelecer os honorários numa percentagem directa do ganho do cliente?”
O causídico cerrou os lábios e aceitou num murmúrio: “É.”
“E, no entanto, fazem-no.”
O advogado encolheu os ombros e coçou o pescoço com a unha do indicador direito, que acabou por enfiar no colarinho da camisa.
Os homens olharam para a ventoinha parada num canto do gabinete.
“Está quebrada, doutor”, explicou o Delegado, quando reparou no olhar do outro. “Estão esperando os aparelhos de ar condicionado e, enquanto isso, não há verba para consertar as ventoinhas que deixam de funcionar. Foi o que me disseram os colegas portugueses.”
“Pensava que era uma técnica”, disse o advogado.
“Uma técnica?”
“Uma técnica de interrogatório” explicou o advogado. “Pensei que pretendessem vencer-nos pelo calor.”
“Não. Parece que é falta de grana, mesmo.”
O causídico aproveitou a espécie de pausa surgida com a ventoinha e, disfarçadamente, viu as horas no seu relógio de pulso.
Atento, o Delegado deixou passar o gesto sub-reptício do interrogado como se não o tivesse visto e, voltando-se de novo para a ventoinha, disse:
“Mas não conseguiu…”
“O quê?”
“Pará-la”, explicitou o Delegado. “Apesar dos apelos da ética, não conseguiu parar ou demover a sua cliente.”
O advogado fixou o Delegado e manteve o olhar quando os olhos se cruzaram.
“Eu…”
“O doutor julga que eu acredito nessa patranha?”, interrompeu o Delegado, pousando os cotovelos na secretária.
As pálpebras do causídico afastaram-se, os lábios cerraram-se e os olhos chamejaram e acabaram por se fixar num ponto indefinido da camisa do inquiridor.
“Só não percebo” continuou o Delegado, pousando o queixo nos nós dos dedos da mão esquerda que envolvia a direita, “onde é que essa história nos levava ou como é que ela o ia beneficiar.”
Uma expressão de transtorno e aborrecimento perpassou momentaneamente na face do advogado, transformando-se depois numa expressão voluntária de dureza e melindre, que se verbalizou na declaração:
“O senhor acredita no que quiser.”
“O doutor quer-me fazer querer que a vitima estava apaixonada por si, que não se conteve e o atacou sexualmente de forma absolutamente juvenil?” contrapôs o Delegado.
“O senhor acredita no que quiser.”
“Isso é verdade mas o doutor quer ainda que eu creia que, não resistindo aos seus avanços, o doutor acabou por permitir que a vitima lhe fizesse sexo oral?”
“Eu não disse isso”, replicou o advogado.
“Ia dizer”, sentenciou o Delegado.
O advogado não desmentiu.
O Delegado continuou:
“E, por fim, o doutor quer que eu acredite que, depois desse fait-divers, a vitima limpou os cantos da boca ao lencinho de seda que trazia na mala, o doutor arrumou o seu bráulio, fechou a braguilha, ligou o automóvel e seguiram a viagem, que terminou exactamente como o doutor tem dito até aqui?... É isto?”
O causídico anuiu com a cabeça e completou:
“Basicamente, é. De forma ignóbil e rasteira, é. A…”
“Não é “a”, meu caro doutor”, interrompeu o Delegado. “É “e”. E então? E o que é que isso nos adianta? E o que é que isso altera?”
“Eu que eu quero dizer ao Delegado é que a minha posição tem sido sempre no sentido de resguardar a memória da minha constituinte. Que as eventuais falhas das minhas declarações resultam desta situação melindrosa e totalmente do foro privado que eu acabei de lhe descrever. E que, naturalmente, toda a minha conduta naquela noite, ou melhor, a partir dali, foi altamente condicionada por este episódio.”
“Ficou abalado.”
“Sim, claro. Claro que fiquei.”
“Estou a perceber.”
“Está a perceber o quê?” explodiu o advogado.
O Delegado Baleia riu-se para dentro, já não precisava de aditar o manhoso, untuoso e falacioso indivíduo que se mantinha à sua frente ao rol de interrogados supremos.
“E digo-lhe mais, doutor” adiantou o Delegado, pausadamente, ignorando a explosão do advogado. “Não só estou a perceber como já formei a minha opinião e já me julgo esclarecido, pelo que podemos dar por terminado este encontro informal pois…”
“Acabou?”, perguntou o causídico.
“Sim, acabou”, confirmou o Delegado.
“Eu vou fazer como foi acordado”, avisou o causídico, levantando-se. O Delegado fez uma careta de incompreensão. O causídico, em pé, explicou: “Vou tornar pública esta diligência.”
“Ah! Sim, naturalmente, as condições acordadas mantêm-se, senhor doutor. Se acha que isso o favorece.”
“E a policia brasileira confirma o encontro e a minha integral e incondicional disponibilidade mas não dá detalhes.”
“Foi o acordado.”
O causídico sorriu e estendeu a mão ao Delegado, que, sem se levantar, a apertou.
“Tive muito prazer, Delegado Baleia. E deixe-me que lhe diga que o que dizem de si é inteiramente verdade: o senhor é grande.”
“Obrigado.” O Delegado agradeceu como se tivesse sido elogiado, largou a mão do advogado, apontou de mão estendida para a porta e ordenou: “Faça-me o favor, doutor, pode sair. É que eu vou já iniciar os termos para a carta rogatória que vamos enviar para cá para o seu interrogatório formal. Passar bem. Ah... E o prazer foi todo seu, doutor. Todo.”

08 outubro 2010

O Fígado

A discussão arrastou-se durante horas: começou ao jantar, agravou-se no levantar da mesa e no arrumar a cozinha, seguiu pelos zappings televisivos, encalhou e teve um período de tréguas numa série da fox, regressou na casa de banho e deitou-se com eles.
– Vais ler? – rosnou o homem, quando a viu debruçar para pegar no livro que andava a ler.
– Porquê, tens alguma sugestão melhor? – replicou a mulher, de livro na mão enquanto ajeitava a almofada.
A sugestão de que ele se lembrou envolvia contacto físico, troca de fluidos e, provavelmente, alguma comunicação. Calou-se.
“Bem me parecia…”, recriminou para si a mulher, antes de abrir o livro e tentar começar a ler.
– O nosso casamento é como o fígado de um bêbado – declarou ele, a olhar para o ecrã apagado pendurado na parede em frente aos pés da cama.
A mulher ouviu e levantou os olhos para a televisão, procurando nela uma explicação para a estranha e enfática declaração, mas confirmou o que já sabia: a televisão estava desligada.
– O quê? – perguntou ela a meio-tom, devolvendo os olhos à segurança dos diálogos que faziam sentido e às irrepreensíveis sequências de causas e efeitos, verdades e consequências, que, de forma confortavelmente previsível, iam surgindo nas frases perfeitamente alinhadas do livro.
– O nosso casamento é como o fígado de um bêbado – repetiu o marido, deleitando-se com a frase como se ela tivesse gosto ou aroma.
– Porquê? – murmurou a mulher, sem tirar os olhos do livro.
O homem seguiu-lhe o olhar e viu o livro aberto. Hesitou, pareceu-lhe que o livro era uma bóia que ela não queria largar; um pedaço de outra realidade para onde ela queria fugir. Repetiu a frase para si e achou que era uma belíssima frase e o livro aberto um insulto. Um desmesurado e imperdoável insulto.
– Por nada… – respondeu, encolhendo ostensivamente os ombros.
Ela conhecia-lhe as tiradas grandiosas e as frases dramáticas e sabia da normal ausência de conteúdo ou das enviesadas e longas explicações que as procuravam justificar. Já não tinha paciência.
– Está bem – aceitou. E recomeçou a ler.
Ele acendeu a televisão.

02 outubro 2010

Fugas

A mulher entrou na pastelaria e sentou-se na primeira cadeira que viu vazia. Espantada, olhou mas não sorriu para o homem que levantou os olhos do jornal que lia quando a sentiu sentar-se.
– Desculpe – pediu a mulher, envergonhada. – Desculpe – repetiu, levantando-se e calando no último momento o verdadeiro “não o vi”.
O homem olhou-a mas esqueceu-se de sorrir ou de responder, enquanto tentava absorver e qualificar os atributos físicos da mulher e, ao mesmo tempo, procurava um objecto literário que correspondesse à senha combinada com a mulher que esperava.
A mulher afastou-se e, já noutra mesa, pediu um café e um copo de água, decidindo deixar o livro que servia de senha dentro da mala até confirmar a existência de um livro escondido debaixo do jornal que o homem lia.
O homem olhava-a de esguelha avaliando-a e tentando adivinhar se havia um livro escondido na mala pousada na cadeira ao lado da mulher.
Ela não o tornou a olhar mas confirmou a existência do livro-senha abafado debaixo do jornal.
No momento em que a mulher tirou a carteira da mala para pagar o café, ele ficou com a certeza que havia um livro. O livro.
O homem fechou o jornal, dobrando-o com cuidado para envolver o livro sem o dar a ver.
A mulher arrumou a carteira e fechou a mala.

17 junho 2010

40

Abres os olhos. Fechas e abres os olhos novamente. Outra vez. Estás confuso. Julgavas que estavas a sonhar. Vês tudo baço e dói-te a cabeça. Estás sentado à beira da cama. Olhas em redor com uma crescente sensação de asfixia. Sentes a falta de ar e o quarto parece ganhar vida. As paredes movem-se. Esbracejas. Bates com as palmas das mãos no colchão. As paredes, ora imóveis ora ondulantes, mudam de cor. Há uma de que gostas particularmente, tentas retê-la como se isso fosse importante mas não consegues. Irritas-te. Esqueces a cor. Esqueces as paredes. Estás assustado. Queres perceber se estás a fazer alguma coisa mal no acto de respirar pois não está a resultar. Não tens oxigénio nos pulmões. Lembra-te… Lembra-te… Ergues os braços. Ao longe, no que te parece muito ao longe, vês os teus pés nus a contorcerem-se sem tocarem o chão, não os sentes. Não és assim tão alto. Não percebes porque estão tão longe. Obrigas-te a pousa-los. Não sentes o frio do chão na planta dos pés. Não gostas. Inspiras. Tornas a inspirar. Os braços erguidos não resultam. O estares a inspirar repetida e profundamente também não. Não há ar. Não há paredes. Não há cores. Lembra-te. Foca-te. Esquece-te que não tens ar. Pensa noutra coisa qualquer. Não gostas de imperial com groselha mas, também, já ninguém bebe. Não resulta. Não achas que tenhas inspirado apesar de não estares a pensar nisso. Muda de estratégia: lembra-te. Lembra-te como respirar. Inspirar. Sentes-te desfalecer. Inclinas-te para trás ao sentir que te vais estatelar para a frente. Decides que vais deixar o álcool e as substâncias ilícitas. Hesitas. Recuas na tua decisão. Respirar é bom mas… e o resto? Impões uma condição: deixas o álcool e as substâncias ilícitas se te safares. Melhor, se te safares desta e enquanto te lembrares. Lembra-te! Não tens qualquer sentido de profundidade. As paredes vão-te comprimir até seres sumo. O tecto desce para te esmagar, no fim, ficarás uma panqueca seca. O tecto ainda não te tocou mas já te sentes a encolher. E o ar? Baixas os olhos. Vês os teus pés moverem-se aleatoriamente. Deixas cair os braços que tinhas esquecido erguidos. Pousas as mãos no colchão. Plástico. Olhas em volta. Plástico. Látex. Este quarto não é teu. Esta cama não é tua. Estás nu. Não tens roupa nem ar. As cores já não fazem sentido. Os sons diluem-se num burburinho incompreensível. Os gestos salpicam-se de actos falhados, de erros grosseiros. Sufocas. Vais desistir. Deixas de pensar. De ser. Vês o teu braço esquerdo erguer-se lentamente, em câmara lenta. Fechas o punho. Ar. Inspiras. Inspiras. Tosses. As paredes voltam ao lugar. O tecto sobe. Os pés sentem o chão frio. Tens de sair da cama. Levantas-te. Dás um passo e viras-te. Espantado, vês a cama e uma mulher. Incrédulo, recuas um passo, sobre a cama uma mulher num coleante fato negro de látex. Tem uma máscara que só te deixa ver os olhos. Brilhantes. Sorridentes. Satisfeitos. Segura na mão um plástico translúcido. O objecto da tua asfixia. Película aderente. Decides acrescentar as mulheres que usam película aderente com fins recreativos no que te está interdito. Inspiras. Sorris aliviado mas não mostras o sorriso: podes voltar a beber e a consumir substâncias ilícitas, o problema não estava aí: são as mulheres que usam película aderente fora da cozinha é que vais ter de evitar. Não percebes. Não percebes nada. “E como é que vou saber?” perguntas-te, baralhado.
– O quê? – pergunta-te a mulher.
– O quê, o quê? – repetes espantado, certo de não teres verbalizado a dúvida.
– O que é que não sabes como vais saber? – elucida-te ela, certeira, acabando definitivamente com a tua certeza de só teres pensado como é que irias reconhecer as mulheres que usam película aderente fora da cozinha.
Emites um som, um silvo agudo, enquanto bates no peito, como se isso te ajudasse a respirar, a inspirar. Pensas na resposta que podes dar mas ela antecipa-se e passa à frente voltando atrás:
– E então? – ouves perguntar. É uma voz interessada, preocupada, quer genuinamente saber. – Gostaste?
– Ah… – balbucias para não repetires o silvo agudo enquanto repões o oxigénio nos pulmões e tentas saber quem és e o que fazes ali. Ouves e observas com atenção mas não reconheces a voz, nem os olhos.
– Tínhamos combinado a mão direita – ouves a voz feminina dizer-te em tom meramente informativo – mas pareceu-me que era tempo a mais…
Estás parado a olhar para a cama, para ela na cama, para a cama no quarto, para ti ao lado da cama. Estás em pé. Vês que estás em pé e só consegues pensar na cama. As pernas fraquejam e obrigam-te a pensar na cama. Dás um passo e aproximas-te da cama. Devias sentar-te. Deitar-te. Na cama. Os olhos dela brilham mais. A custo, com sacrifício, manténs-te em pé junto à cama, como se isso fosse fundamental, essencial, vital. Custa-te. Não te deves sentar. Não deves regressar à cama, parece-te. Reparas no decote. No deslumbrante conteúdo do decote. Convences-te que Deus existe e tem bom gosto. Passas a mão pela boca para confirmar que não te estás a babar. Podias estar. Pões em causa a tua última decisão, provavelmente deves, tens!, de voltar à cama e nem todas as mulheres que manuseiam película aderente com destreza e para fins meramente recreativos merecem ser ostracizadas. Condescendes sem tirar os olhos do decote: deve ter havido um mal-entendido e ela merece uma segunda oportunidade.
– E, ainda por cima, não resultou – ouves a voz feminina concluir com um acentuado tom de desprezo e decepção, interrompendo-te na análise das tuas resoluções.
“O que é que não resultou?” pensas, tentando que os teus olhos se descolem da linha irresistível que se forma entre as mamas da mulher. “Eu ainda estar vivo?”
Cama. Fraquejas. Olhas para a cama. As pernas pesam-te. Olhas só para a cama. Suspiras profundamente. Dás um passo. Cansas-te. Estás em pé junto à cama. Não aguentas e encostas os joelhos à cama. Cama. Bem te podias sentar. Aproximar-te…
– É pena – ouves, ao mesmo tempo que sentes uma mão envolta em látex acariciar-te os testículos, puxar-te o pénis para baixo, levantá-lo. – Não sei o que te faça – diz a máscara com um risinho breve.
Estás dormente. Mais dormente. As pálpebras pesam e a visão turva-se. Passas a mão pela cara, para garantir que não estás novamente envolto em película aderente. Os joelhos fincam-se na parte lateral do colchão.
Ela dá-te palmadas nos testículos, enquanto te levanta o pénis. A mão enluvada agarra-o, aperta-o, sacode-o e bate-lhe. Nada.
– Não sei que raio de merda é esta – constata ela, friamente.
– Estou cansado – justificas num sussurro envergonhado.
Ela dá uma gargalhada forte, tonitruante, que te parece mal, muito mal.
– Não estou a falar nisso – diz ela, sem parar de rir.
Engoles em seco.
– Então?
Com a mão esquerda, ela encosta-te o pénis flácido ao corpo e, agarrando-os por baixo, exibe-te os testículos.
– Estou a falar disto – anuncia, trocista. – Do expurgo pintelhal.
– Do quê?
– Da depilação dos tomates! – Ela dá uma gargalhada, que interrompe: – Há alguém a mandar que se depilem?
– Não gostas?
– Parecem uns rapazitos – deprecia-te ela, examinando-te sem cuidado. – Pelo menos tu só rapaste os colhões… Menos mal!
Não respondes. Ainda não te lembras como vieste ali parar.
– E agora? – pergunta-te a mulher.
– Agora?
– Sim – responde ela com uma careta que não vês mas sentes no tom de voz e nas mãos que te largam. – E agora como é que vamos fazer?
– Fazer?
– Sim, e agora como é que me vais comer outra vez?
Olhas para baixo mas não para os pés – os pés não interessam nada: estão lá e sentem o chão, pronto. Ah! Tens de cortar as unhas, reparas.
– Não consigo… – lamentas lentamente em resposta.
– E com outra pessoa?! – replica ela, com estranha simpatia.
– Com outra pessoa?
– Disseste o “não consigo” tão devagar que parecia que tinha virgula – explica e imita com voz arrastada: – Não, consigo não.
– Eu não disse o segundo não.
– Parecia que ias dizer.
Ela leva as mãos à nuca e abre um pouco o fecho éclair que fecha a máscara atrás. Olhas ansioso com a possibilidade de a veres, de a reconheceres.
Ela pára e depois de te olhar atentamente pergunta mostrando os dentes num sorriso simpático:
– Tu não te lembras de nada, pois não?
Coças a cabeça com o indicador direito e acenas que não.
Ela ri sem troçar.
– Estás bem disposto? – pergunta.
– Estou – dizes depois de confirmares e te espantares por estares. – Mas não me lembro mesmo de nada – confessas. – O que é que aconteceu? Quem é a senhora?
– Uh… – arrepia-se a mulher. – Senhora?!... Depois de tudo o que passámos e fizemos juntos agora tratas-me por senhora?
– Eu não sei o que passámos, nem o que fizemos. – Sentes mais força nas pernas e desencostas os joelhos da cama. – Só me lembro de si a tentar matar-me por asfixia, mais nada.
– E de fazeres quarenta anos ontem?
– Ah… Vagamente… – reconheces.
– E do jantar? E da continuação do jantar? – Ela vai perguntando e tu vais acenando em jeito de pouco, lembraste pouco. – E a seguir? E a prenda?… E da minha prenda? – Ela senta-se com os pés fora da cama. – Nada?
– Pouco.
Ela levanta-se. Tu segue-la só com o olhar. Sentas-te na cama vazia. A mulher é linda. Grande e linda. Comprida e perfeitamente torneada. Tem uma cicatriz por trás do joelho direito. Vira-se para ti. Segura uma câmara de vídeo. Sentes que o ar se esvai novamente e que não o consegues repor. A câmara suga o oxigénio que te é necessário. Voltas a ver cores. Não. Vês apenas vários tons de cinzento. A mulher sorri-te.
– Ainda bem que filmámos tudo – diz. O plural enche-te os pulmões. – A noite dos teus 40 anos!
A mulher aproxima-se, sorridente. Retira uma pequena cassete da máquina. Estende-a na tua direcção. Beija-te na face.
– Parabéns – diz-te enquanto te beija. – Gostei muito… – diz-te quando te dá a cassete. Sorri. – E vais ver que tu também gostaste.

10 junho 2010

Cumplicidade Evidente

A mulher aproximou-se lentamente conferindo com prazer a minha atenção e, demorando os passos com que me atravessou, sussurrou sensual:
– Gosto da tua barba.
Não respondi. Olhei-a de esguelha e levei o copo meio vazio à boca, despejando-o. Já nos tínhamos visto e trocado olhares mas havia um indivíduo que a acompanhava e que ficara parado, conversando com outros e controlando com alheamento ensaiado os seus passos até ao balcão.
Olhei para o meu copo vazio, para o indivíduo que não reparara em mim, nem se apercebera das palavras que ela me dirigira, e, agitando o copo, dei meia volta para ir buscar outra bebida.
Pousei o copo vazio no balcão, a alguma distância da mulher, que me viu mas nada fez, tal como eu. Esperei que o empregado se aproximasse dela e, só então, me aproximei dela.
– Quero um Absolut Citron com limão – pedi, depois de ela ter feito o seu pedido.
O empregado afastou-se para ir buscar as bebidas e ela falou-me sem quase olhar para mim:
– Essa barba… Hummm… Gostava de a ter a roçar-me o interior das coxas. De a sentir nos grandes lábios enquanto me comias com a língua, enquanto me chupavas… Hummm… – ronronou.
– Gostava disso – disse, também sem a olhar. – Gostava muito disso.
– E o resto do corpo também está assim? – perguntou-me num murmúrio.
O empregado aproximou-se com dois copos para ela e um copo para mim. Agradecemos e ele afastou-se de imediato.
– Algumas partes estão – disse.
Ela beberricou um dos copos e ciciou:
– Gostava de ver isso. Gostava muito de ver isso.
Piscou-me o olho, enquanto se virava para a sala, abriu um sorriso descarado para o homem que a esperava e afastou-se, deixando-me a contemplar-lhe o magnífico andar, a extraordinária silhueta e a forma perfeita das nádegas.
Pouco depois, quando um fotógrafo se aproximou, juntaram-se, sorriram e mostraram a sua “cumplicidade evidente” que havia de ser a legenda da fotografia na revista cor-de-rosa.

03 junho 2010

Cinco Casamentos, Quatro Divórcios, Um Funeral

Sentado, de perna traçada, ar satisfeito mas de sorriso choramingas, o morto contemplava de uma campa próxima o seu funeral.
– Nunca pensei que isto fosse assim – disse, dirigindo-se ao morto-guia que lhe calhara em sorte.
– Não?
– Não – respondeu o morto cujo corpo enterravam. – Sempre pensei que não houvesse nada depois da morte. Foi uma surpresa completa você aparecer e uma surpresa ainda maior eu poder estar aqui, agora, a ver o meu funeral.
Pouco interessado na conversa do outro, o morto-guia levantou-se e deu um passo em frente para apreciar os vivos.
– E está composto – comentou referindo-se ao funeral.
– Composto?! – gracejou o morto, reparando na atenção que o morto-guia devotava às mulheres que, em linha, conferiam a descida do caixão. – Parece-me que o senhor está a achar isto mais do que composto.
– Ah!... – O morto-guia corou. – Ah… É que…
O morto levantou-se e bateu-lhe nas costas:
– Não fique assim, homem. Não é preciso corar. A verdade é que elas compõem qualquer funeral.
– É que ultimamente só me tem é calhado malta fora do prazo, com amigos e familiares nas mesmas condições – justificou o morto-guia. – Tem sido uma sequência demasiado deprimente – queixou-se, com um profundo suspiro.
O morto, sem conseguir decidir se o suspiro tão longo e profundo se devia à visão das mulheres ou à má-sorte nos funerais anteriores, calou-se sem atirar a graçola em que pensara que, para ser dita, lhe exigia certeza na razão do suspiro.
– Alguma coisa fiz bem – desabafou o morto por fim, sem se ter decidido a ser engraçado e tornando a sentar-se.
– Eu diria que fez bem mais do que uma coisa – respondeu o morto-guia, venerador. – É que, ainda por cima, aquelas quatro belas senhoras estão genuinamente tristes com a sua morte – comentou, para ser agradável.
– Quatro?! – estranhou o morto. – Cinco – corrigiu. – Aquelas cinco belas senhoras…
– Sim, as cinco são muito belas – aceitou o morto-guia, acenando com a cabeça encantado. – Muito belas…
– São as minhas viúvas – lançou o morto, vaidoso. – E todas choram a minha morte, hã?! Já viu…
– Muito belas – repetiu o morto-guia, concentrado.
– As quatro da esquerda são as minhas ex-mulheres – enunciou o morto. – A da direita é que é mesmo a minha viúva – esclareceu, irritado com a desmedida veneração do morto-guia que começava a achar demasiado ostensiva, afinal ele é que era o morto. Ele é que merecia atenção.
– Ah!... – A cabeça do morto-guia não parava de oscilar, aprovadora. – São as mesmas que estão genuinamente tristes com a sua morte.
– Claro!... Como é que não podiam estar – vangloriou-se o morto. – Afinal, as cinco perderam o homem da vida delas.
– A da direita não está genuinamente triste – informou o morto-guia, seco. – As da esquerda é que estão.
– Diga? – perguntou o falecido, desconfiado, levantando-se de um salto. – Como é isso? Está a brincar comigo ou quê?!
O morto-guia acenou negativamente com a cabeça e explicou, esboçando um sorriso malicioso que não conseguiu evitar:
– As suas quatro ex-mulheres estão mesmo tristes com a sua morte, a sua viúva nem por isso. Ainda que lhe fique bem o luto e seja convincente na sua demonstração de dor.
O morto praguejou e insultou o morto-guia, pondo em causa de uma penada os seus conhecimentos acerca do que os vivos sentiam, a sua competência, a sua seriedade e, por fim, arrasou a sua vida passada, mais concretamente, a sua vida sexual passada.
O morto-guia empertigou-se, fixou-o com dureza e ripostou com secura:
– As suas ex-mulheres estão tristes não é propriamente pela morte, meu caro. As sua ex-mulheres estão tristes com o fim das pensões de alimentos que você lhes pagava. Já a sua mulher, apesar do brilhante desempenho como viúva infeliz, está satisfeita por não ter de o aturar mais; por ser, das cinco, a sua única herdeira e porque as outras deixaram de receber as pensões e não terem direito a nada. Mais alguma coisa ou podemos ir embora?

28 maio 2010

Desgostos e Doces de Colher

– Sabe o que é que ele me disse, doutor?
Acenei que não com a cabeça.
– Que era de ferro, doutor. – A mulher soltou um riso escarninho. – De ferro! – exclamou, fechando-se num carão de desgosto e ressentimento. – E, afinal, sabe o que ele era?
Repeti o aceno.
– Gelatina. – A mulher imitou o meu aceno de cabeça. – Ele era feito de gelatina, doutor. De gelatina.
– Quem o vê… – disse eu, lentamente à espera da interrupção.
– Sim, isso é verdade, doutor – avançou a mulher, tal como eu esperava. – Quem o vê com aqueles fatos e cara de mau e aquele ar másculo de quem leva tudo à frente…
– Sempre firme e hirto…
– Engana bem, engana – concluiu, fungando. – A mim enganou-me, doutor. A mim enganou-me bem!
Levantei-me e rodeei a secretária, agarrei uma caixa de lenços de papel que se encontrava sobre um móvel encostado à parede e estendi-a na sua direcção. Ela retirou três pedaços de papel e assoou-se ruidosamente. Admirei disfarçadamente os movimentos que se produziram dentro do apertado decote, que a mulher usava como um expositor, e, depois de devolver a caixa ao seu primitivo lugar, tornei a sentar-me.
– Esta altura é péssima para as alergias – justificou-se a mulher, com os papéis ranhosos na mão.
– É – concordei, segurando no cesto de papéis para ela depositar os lenços, o que fez.
– Homem de Ferro – disse ela, sarcástica. – Ainda gostava de saber como é que lhe chamam Homem de Ferro – continuou no mesmo tom. – De certeza que nunca gramaram com ele em cima, esparramado, a mexer-se em câmara lenta, para cima e para baixo, tão firme como uma gelatina, tão duro como um pudim… Homem de Ferro!... Bah!... – A mulher fez uma pausa para ganhar fôlego. – Mas a culpa é minha, doutor, só minha! Eu, eu mais do que ninguém, já devia estar à espera, não acha? Eu já devia ter aprendido! Quem é que me mandou a mim ser burra… Aaaaah… – parodiou tom e gestos de gratidão divina, erguendo os olhos para o tecto e levantando as mãos e agitando-as ligeiramente. – Aaaah! O homem é de ferro, é o Homem de Ferro!... Burra! Que burra, doutor!... Homem de Ferro, ah! Tretas!... Mas a culpa é minha…
– Sim… – admiti, brincando com a esferográfica para me distrair dos movimentos ondulantes das comprimidas mamas que pareciam querer saltar na minha direcção. – É verdade que a sua anterior experiência lhe podia ter servido de aviso mas… mas… – Interrompi-me, distraído pelas consequências estéticas da inspiração profunda que se seguiu ao fim do encenado agradecimento sacro.
– Mas? – perguntou a mulher, expectante da minha conclusão.
– Ahn?
– A minha anterior experiência podia ter-me servido de aviso mas? – repetiu, vendo o meu mudo atabalhoamento.
– Ah! – Recuperei as minhas faculdades e voltei à esferográfica. – Quero dizer: podemos aprender com os erros anteriores mas nunca podemos saber que as coisas se vão repetir com outra pessoa só por terem ambos o mesmo ramo de actividade… Temos de dar o benefício da dúvida e foi isso que a senhora fez.
– Hum! – discordou a mulher. – Eu devia ter calculado, doutor!... Qual benefício da dúvida qual carapuça… Isso é conversa de psiquiatra, doutor!... De psicoterapeuta!... A culpa é minha e ponto final, se com o outro já tinha sido o que foi…
Aceitei com um trejeito o argumento da paciente: ela tinha razão.
– Sabe o que eu lhe digo, doutor?
Acenei que não.
– Posso ser franca?
Acenei que sim, ainda que o lamentasse.
– O doutor desculpe-me mas isto não me sai da cabeça e… – fez uma ligeira pausa e preveniu: – E não é nada contra os pais deles. – A mulher olhou para a porta do gabinete para confirmar que estava fechada e voltando a fixar-me disse com ar de quem meditou no assunto: – Que fodas tão mal empregues, senhor doutor… O tempo que os pais deles perderam a fazê-los mais valia terem estado a… a… Nem sei o quê, doutor, nem sei o quê… Qualquer bodega que lhes tivesse ocupado aqueles trinta segundos tinha sido melhor empregue. Muito melhor…
– Às vezes as coisas não correm bem entre as pessoas – disse, sem convicção, olhando disfarçadamente para o relógio.
– Já está na hora? – perguntou a paciente, verificando o seu relógio de pulso.
– Já – informei com ensaiado pesar. – Para a semana continuamos.
A mulher expirou pelo nariz, ainda desimpedido, levantou-se, colocou as mãos sobre a secretária, olhou-me nos olhos e concluiu desanimada:
– Só comigo, doutor. Já viu bem a minha pouca sorte?... O Super-Homem foi o que foi, um fiasco do pior. Que pãozinho sem sal!... Agora, aparece-me o Homem de Ferro, todo cheio de basófia, que faz e acontece, e, no fim, vai-se ver… Gelatina, doutor, o homem devia chamar-se era Homem-Gelatina. Gelatina e pouco fresca!... Não tenho mesmo sorte nenhuma!
A mulher aceitou o meu aceno concordante com um sorriso e quando ia a sair, já depois das despedidas, perguntou-me com um brilho no olhar:
– Sabe com quem é que eu vou jantar no Sábado?
– Com o Batman? – lancei.
– Bolas! Nem pensar – respondeu, mostrando-me a língua com ar enjoado.
Sorrindo, a mulher abriu a porta, saiu e fechou-a.
Esperou um momento, reabriu a porta cerca de um palmo, espreitou para me encontrar no mesmo sítio, a olhar para ela, e anunciou, sorrindo e piscando-me o olho, antes de voltar a fechar a porta:
– Sábado vou jantar com o Homem-Queque!