O movimento foi involuntário mas quando Justina sentiu no seio o braço de Cesário foi invadida por uma súbita e irreprimível vontade de ir para a borga. Riu-se do trocadilho ainda que, na verdade, não soubesse se o homem se chamava assim. “Tem cara de Cesário” justificou-se, observando a barbicha que emoldurava o rosto bolachudo do homem a quem se encostara quando a composição do metropolitano balançou.
Cesário sorriu embaraçado mas sem mover o braço. Por ele, podiam ficar assim o resto da vida, um seio encostado ao seu braço era coisa que lhe acontecia pouco. “Muito pouco”, pensou, algo frustrado e com a ligeira impressão que todo o episódio que, na realidade, nem um episódio chegava a ser – era um mero acontecimento –, podia provavelmente indiciar que qualquer coisa não ia bem na sua vida sexual – se a tivesse –, na sua vida social e afectiva – que também sabia não ter – e na sua sanidade mental – sentia-se um pervertido mas não conseguia afastar o braço da mama da mulher.
Justina não se sentia mal e, tão furtivamente quanto lhe permitia a proximidade dos rostos e dos corpos, apreciava o dono do braço que lhe amparava a mama. Cesário tirando a barba mal semeada mas impecavelmente aparada e cirurgicamente delineada, os olhos ligeiramente esbugalhados com ar de eterno espanto, que ora se fixavam num ponto longínquo ora se dispersavam descontrolados por tudo o que os rodeavam, o sorriso desequilibrado que tanto parecia ir explodir numa gargalhada demente como no instante seguinte se resumia a um quase imperceptível movimento ascendente das comissuras dos lábios, a falta de gosto na roupa e no penteado e o ar geral de tarado não estava mal de todo e cheirava bem, o que agradou a Justina.
– Isto é uma chatice – reclamou baixinho Justina, dirigindo-se a Cesário, que, nas suas rápidas e confusas deambulações oculares, parecia fixá-la por mero acaso. Sem perceber se ele a ouvira, Justina acrescentou: – Os transportes públicos estão cada vez pior. Este país é um caos.
– Uma chatice – repetiu Cesário, como se tentasse apreender o sentido das palavras e sem lhes dar qualquer entoação. – É um caos.
Justina olhou-o perplexa. “Este homem não podia trabalhar na televisão”, julgou, definitiva: “Está verde.”
Cesário que também se tinha ouvido com a mesma perplexidade – “Pareces um tontinho, McFly”, censurou-se –, decidiu aproveitar a energia que o seio que se mantinha aninhado no seu braço lhe dava e procurou rectificar a impressão que causara na proprietária da mama.
– É verdade – ponderou Cesário, falando pausadamente –, a ausência de uma politica realística de transportes, que deveria assentar nas necessidades dos utentes e não somente em directrizes economicistas, tem causado uma degradação acentuada da qualidade dos nossos transportes colectivos urbanos.
Justina assentiu com a cabeça satisfeita, tinha a mama no braço de um intelectual bem-cheiroso ainda que mal apessoado.
– Rodriga – apresentou-se Justina.
– Ah! – Cesário olhou para a mama no braço e depois para a outra: – E esta?
– Eu é que sou Rodriga – disse a mulher, surpreendida por uma memória recalcada de uma imagem de musgo verde num presépio da sua infância de que se lembrou quando se ouviu. Pasmada, perguntou sem querer: – Já não se fazem presépios, pois não?
Cesário olhou-a como se pretendesse decifrar o verdadeiro sentido da pergunta.
– Presépios? – questionou ele para ganhar tempo, a primeira carruagem estava a chegar a Arroios.
– Sim, com musgo.
Sem saber porquê, Cesário pensou em virilhas mas não nas suas nem nas da mulher cuja mama continuava emprateleirada no seu braço.
– Eu chamo-me Fausto e faço presépios no tempo deles – mentiu Cesário, que, na verdade, foi baptizado como Mauro.
– Com musgo?
– Não, o musgo lembra-me virilhas – confessou Cesário, repugnado.
– Virilhas com musgo?
– Não – respondeu Cesário, abanando a cabeça –, só virilhas. O musgo lembra-me virilhas.
A composição parou com um solavanco provocando com malícia que Justina enfiasse o nariz no cabelo de Cesário.
– O teu cabelo cheira bem, Fausto – apreciou a mulher.
“Arroios” avisou, atrasada, a carruagem.
– Eu vou para Roma – informou Cesário, julgando que a carruagem falava para ele. – Obrigado, é um shampoo – disse, respondendo a Justina.
– Passar o natal?
– Não, Pantene – esclareceu Cesário.
Justina viu a porta fechar e sentiu uma mão na nádega esquerda. Olhou em volta e só viu Cesário. O homem sorria deliciado.
– Azul? – perguntou Justina.
– O quê?
– O Pantene.
– Não, branco.
– O frasco?
– De plástico.
– E Roma?
– Não sei, nunca lá fui.
Justina e Cesário entreolharam-se cúmplices. Sentiam uma afinidade crescente – mais ele que ela na parte do crescente. Justina tirou a mão do bolso de trás das calças de ganga e agarrou o varão com ambas as mãos. Cesário ponderou seriamente em afastar-se para lhe dar espaço mas, apavorado com o facto de poder perder a mama, deixou-se ficar.
– É uma pouca vergonha – referiu Cesário só para continuarem a falar mas com ar sério e ligeiramente ofendido.
Justina ainda procurou perceber do que estava ele a falar seguindo-lhe o olhar errante mas não só não conseguiu como se sentiu enjoada. Era velocidade a mais para olhos que não estivessem habituados.
– O quê? – perguntou, engolindo em seco.
– Isto.
Justina tornou a seguir-lhe o olhar e voltou a sentir-se agoniada.
– O quê? – repetiu, baixando a cabeça e respirando fundo.
– Colocarem varões nos transportes públicos – criticou Cesário.
– Ah! – Justina riu-se. – É só um objecto, Cesário, e os objectos são amorais. É o uso que se lhes dá que é ou não contrário à moral vigente em cada momento. O varão por si só não…
– Cesário?! – interrompeu o homem, melindrado e afastando o seu braço da mama da mulher.
– Quando te vi achei que te chamavas Cesário – explicou a mulher, inclinando-se para voltar a pousar a mama no braço dele.
“Alameda” avisou a tempo a carruagem.
Para atestar que compreendia que Justina lhe chamasse Cesário e lhe perdoava essa fantasia e para demonstrar a sua alegria por voltar a ter uma mama no braço, ainda que agora fosse a outra, Cesário avançou com as sobrancelhas até meio da testa, que recuou temerosa até à esbarrar na franja, que se espetou de imediato numa coesa e intransponível linha defensiva. Cesário sentiu o cabelo levantar como se pusesse a mão num gerador de Van der Graaff mas não ligou, isso acontecia-lhe muito.
Receosa, Justina deu um passo atrás: não gostava de rock progressivo.
Na Alameda, a composição voltou a parar e as portas a abrirem-se escancaradas e sem vergonha. Justina olhou-as com inesperado e mal disfarçado interesse. Assustado com a perspectiva de a perder, Cesário rojou-se aos seus pés. Figurativamente, na verdade, por agora, o homem só pediu:
– Desculpa.
Justina olhou para a porta aberta ainda com olhos de fuga mas hesitou.
– Podes chamar-me Cesário – segredou Mauro, fixando-a, o que, para ele, era como se rojasse aos pés dela.
– Vais para Roma? – perguntou Justina, sorrindo complacente.
– Sim – confirmou Cesário. – E tu?
– Não sei. – Justina encolheu os ombros. – Ia sair aqui.
As portas fecharam-se com inusitado estrondo, impedindo Justina de sair. Mais do que sorrir, Cesário brilhou e cresceu. As portas tornaram a abrir-se. Cesário empalideceu. Justina largou o objecto metálico e cilíndrico que não iremos nomear e deu um passo na direcção de Cesário, que ganhou cor. A mulher, sem parar, piscou-lhe o olho esquerdo e continuou até à porta. Cesário ficou branco, sem pinga de sangue, sem força nas pernas, nem vontade de viver. Então, ela voltou-se para trás e perguntou:
– Vens?
Sem hesitar, ele foi.