O doutor repetiu, simplificando:
– Se são casados em separação de bens, caso se divorciem, os bens dele são dele e os seus são seus.
– Mesmo os que tivermos comprado durante o casamento?
– Sim, desde que efectivamente se comprove quem os comprou…
– Bonito serviço!... Eu não posso ter nada em meu nome, nem tenho conta nem nada. Está tudo em nome dele. Foi tudo comprado em nome dele, com cartão ou cheques em nome dele, por isso é tudo dele, é isso?
– Em principio…
– Em principio e no fim!
– Provavelmente.
– E se ele morrer?
– Tem de o enterrar.
– Ah! Não é isso! – A mulher deu uma gargalhada nervosa. – O doutor está a brincar mas até nisso ele é do contra: o homem não quer ser enterrado. Diz que quer ser cremado e que as cinzas têm de ser lançadas no jardim da casa dos pais.
– Da casa dos pais? Qual é a casa dos pais?
– Não é dele! – A mulher abanou a cabeça com veemência, desesperada por antecipação. – Calhou em partilhas a um tio com quem ele não se fala há mais de trinta anos. Não fala com ninguém dessa parte da família!
– E quer as cinzas lá?
– Mesmo por isso! – A mulher riu-se. – Ele é um retorcido do pior, doutor, até já me disse que quer que eles saibam que ele está lá. E acho que também já disse ao filho. – A mulher recolocou a expressão séria e formal do início da reunião e, pousando as mãos na mesa, fixou o advogado com um olhar vítreo, concentrado, e disse: – Mas isso agora não interessa nada, doutor, o que eu preciso de saber é se ele morrer quais são os meus direitos. Tenho direito a alguma coisa ou, como estamos casados em separação de bens, não vejo nada?
– Se ele morrer é herdeira dele…
– De todos os bens?
– Sim.
As pálpebras afastaram-se e os olhos da mulher brilharam mas o rosto continuou tão formalmente impassível como antes.
– Mas se me divorciar não? – perguntou, com a voz ligeiramente trémula de comoção.
– Se se divorciar deixa de ser herdeira.
– Sim e não apanho nada. – Os olhos da mulher continuavam a brilhar e os dedos entrelaçavam-se e separavam-se em movimentos nervosos, calculistas.
– Para usar a sua expressão, sim, não apanha nada.
– Mas se ele morrer, herdo tudo! – A mulher não conseguiu disfarçar um sorriso, que camuflou com um providencial ataque de tosse e consequente movimento da mão a tapar a boca.
– Tudo não. O seu marido tem um filho, não é?
– É, tem um.
– Então são os dois herdeiros.
– Eu e ele…
– Sim.
– Quer dizer que o doutor é da opinião de eu não me divorciar.
– Eu não sou de opinião nenhuma. Isso é uma decisão pessoal e, parece-me, nem deve ser uma decisão exclusivamente económica.
A mulher soltou uma gargalhada genuinamente divertida.
– Desculpe mas essa foi boa!
– É o que eu penso.
– E se o casamento tiver sido uma decisão económica? – A mulher lançou a pergunta ainda acompanhada do anterior ar de riso e satisfação que, no entanto, se começou a esbater logo que se ouviu fazê-la e, ainda a sorrir, acrescentou: – Dos dois.
– Sendo assim…
– Foi assim – interrompeu a mulher, concludente, enquanto lhe passava uma sombra pela expressão que lhe levou o sorriso e o brilho no olhar. Depois de uma pausa, ela disse como se se confessasse: – Eu queria mudar de vida e ele queria ter-me com exclusividade. Achámos os dois que ficávamos a ganhar. E… – A mulher falava para as mãos, entrelaçadas pelos dedos e pousadas em cima da mesa. – E, na realidade, naquela altura, eu gostava dele e ele de mim. – A mulher levantou a cabeça e cruzou o olhar com o do advogado, procurando aferir da expressão dele o que dizer e o que calar. Calou-se: – Mas isso não é importante.
O doutor ensaiou um sorriso que não chegou a estrear, percebendo, na frase curta e no olhar duro da cliente, que esta tinha captado a expressão de entediado desinteresse que deixara escapar enquanto ela falava. Censurou-se por ter sido apanhado e isso poder influir nos honorários a pedir, e decidiu remediar a situação:
– A nossa vida, para nós que estamos dentro dela, é sempre importante. Muito importante. – O doutor gostou do som cheio com que dissera uma frase tão vazia e continuou: – Todavia, por vezes, temos de tomar decisões… – Lembrou-se a tempo das dúvidas que assaltavam a mulher para quem falava e acrescentou: – De fazer ou não fazer. Decisões que podem parecer exactamente como se não decidíssemos quando, na verdade, é isso que fazemos…
E o doutor continuou, com empáfia e presunção, a martelar frases como se as fizesse ressoar num bombo, frases com tanto conteúdo como o instrumento. Deixara a lei, a doutrina e a jurisprudência e seguia deleitado a ouvir-se falar sobre a vida e o seu sentido. A mulher ouvia-o apenas por cortesia, decidida não só a não lhe dizer mais nada, como em deixá-lo masturbar-se à vontade à sua frente com o seu longo e oco monólogo – quanto mais o ouvia e via mais lhe parecia que ele estava a ter prazer físico em ouvir-se falar.
Dormente, a cliente esperava apenas que ele concluísse as redondas e ocas “alegações finais” e não lhe cobrasse o tempo extra que estas estavam a demorar, no entanto, não se conseguiu conter quando, depois de arengar mais uns minutos, o advogado repetiu:
– E é isso, há decisões que podem parecer exactamente como se não decidíssemos quando, na realidade, é isso que fazemos. São decisões difíceis, quantas vezes incompreendidas…
– Se é isso que realmente fazemos – interrompeu a mulher, ácida –, então não estamos a decidir nada. – O advogado olhou para ela, incomodado pela interrupção. A mulher pensou que ele não tinha percebido mas que a estava a ouvir e explicou: – Se as decisões se parecem com a ausência de decisões e, na realidade, como o doutor disse, foi isso mesmo que fizemos, então o que fizemos foi não decidir e a aparência e a realidade são uma e a mesma coisa, apesar de nós próprios podermos depois imaginar a não decisão como uma decisão por uma razão qualquer, de conforto ou de auto-ilusão, ou outra, e, provavelmente, sem termos sequer a noção disso. Não decidimos ponto final mas como a vida não espera pelas nossas decisões…
– Ah! – O doutor olhou para o relógio que lhe ocupava o pulso todo e ainda sobrava. A mulher achou o relógio apalhaçado mas não disse nada. – A nossa conversa… – o advogado riu-se – sim, porque isto já não é uma consulta, nem sequer uma reunião, é uma conversa – o doutor tornou a olhar para o relógio, que fez questão de mostrar explicitamente de forma sub-reptícia em todo o seu esplendor. – A nossa conversa alongou-se e eu tinha uma outra reunião às seis e já são seis e catorze. Não sei se ainda a posso ajudar em mais algum assunto.
– Não, estou esclarecida, doutor.
O advogado levantou-se e ficou em pé a olhar para o decote da cliente que, ainda sentada, guardava o telemóvel e a carteira na mala.
– Muito bem, muito bem – apreciou o doutor. A mulher olhou-o e ele completou, subindo um palmo o alvo do seu olhar: – É sempre importante que as pessoas tomem decisões esclarecidas. Sempre importante. E pode contar com os meus serviços para o que entender… Para o que entender.
A mulher levantou-se, abanando a cabeça para cima e para baixo. O doutor sorriu e deu-lhe passagem, procurando vê-la de outros ângulos, o que fez com milimétrico cuidado. Satisfeito, passou-lhe à frente, roçando-se descaradamente no seu braço e, agarrado à maçaneta da porta que não abriu, chilreou:
– A sua situação não é nada fácil: há questões pessoais, claro que há, mas também há questões legais de fulcral e decisiva importância; por essa razão parece-me que há uma manifesta e aguda necessidade de ponderação e de um acompanhamento abrangente que permita enquadrar, a todo o tempo, as várias vertentes em conflito. A precipitação é um erro trágico e, muitas vezes, irremediavelmente caro mas que se pode prevenir com um mero telefonema ou um mero encontro… Mesmo fora de horas. – O doutor largou a maçaneta e tirou um cartão e uma caneta do bolso do casaco. – Vou-lhe dar o meu número pessoal e a senhora não hesite em contactar-me. – O doutor escreveu no cartão e entregou-o à cliente, com um sorriso oleoso, peganhento. – Podemos encontrar-nos quando quiser. Quando quiser.
A mulher recebeu o cartão e o sorriso com o mesmo asco. Agradeceu como se realmente agradecesse e estendeu a mão para se despedir.
– Liga-me? – insistiu o doutor, sem lhe largar a mão, enquanto abria a porta. – Eu gostava muito… – A mulher não conseguiu esconder uma careta de espanto e reprovação. O doutor, com o sorriso mais angelical que conseguiu, completou: – De a ajudar, claro… Eu gostava muito de a ajudar.