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03 fevereiro 2009

Horas tardias.

Por Charlie


... mesmo à porta de casa, correndo o risco de serem vistos por alguém...

Tinha sentido o momento em que silenciosamente dera entrada pela porta embora estivesse colocado numa posição em que não a poderia ver.

Num mero reflexo e sem ver as horas, olhou para o relógio.
Lentamente levantou o copo mirando como as gotículas que se haviam formado num ápice, confluíam agora em formas de arte por pequenas estrias rumo à base, interrompendo o percurso pela hecatombe dos dedos indicador e polegar, simetricamente interpostos à acção incontornável da gravidade. Um golo breve, a marca dos lábios e o sentir da outra presença na sala, relegaram o momento de contemplação para um plano indefinido.
- Não te fazia de pé, pensava que estivesses a dormir...-
- Onde estiveste? –
- ... Demorei-me mais do que esperava inicialmente e a reunião foi...-
- Julguei que te tivesse acontecido algo, - Interrompeu.- estavas com o telemóvel desligado. Podias ao menos ter dado um toque para eu ficar descansado, ou....pedir a alguém que telefonasse. -
Replicara ao encetar do diálogo com a sua companheira sem lhe olhar directamente nos olhos, mas terminara, após uma pausa cirúrgica, a frase num enfoque frio e intenso, esperando ler-lhe os sinais na expressão devolvida.
Ela colocara um após outros, o dedo indicar, o médio e anelar sobre as costas do sofá oposto ao do seu interlocutor. Afastou o olhar rodando o corpo ligeiramente traindo o desconforto que aquele instante lhe trouxera, mas num relance retomou a postura e voltando a pousar a mão respondeu:
- Sabes querido como tem sido difícil aos patrões manter a empresa com a crise a avolumar. Tivemos uma reunião muito complicada. No fundo, todos queremos apenas segurar os nossos postos de trabalho, e fiquei com a Marta a compilar os apontamentos, as resoluções, passar ao computador, imprimir, arquivar uns e preparar a distribuição de outros documentos...Enfim....-
- Entendo. As coisas não estão fáceis. Mas da próxima vez se vires que vais demorar, agradeço que me digas algo, um toque, um SMS basta. Entendes?-
Esperou um pouco e deu mais um golo voltando a pousar o copo.
- E as reuniões? Já terminaram?-
- É isso que eu queria dizer-te; amanhã iremos ter uma outra, um encontro com accionistas. Possivelmente poderá prolongar-se sabe-se lá até que horas... Depois desta com a comissão de trabalhadores...estou exausta....Vou deitar-me. É já tão tarde...-
Despediu-se dele com um fugaz beijo que ele correspondeu com a mesma fugacidade ficando a fita-la enquanto ela desaparecia por detrás da porta que dava acesso aos espaços mais íntimos dos aposentos.
Fechou a porta da casa de banho e mirou-se ao espelho afastando a alça direita do vestido. Aquela dentada no ombro...Meu Deus!...O que é que aquele homem lhe tinha feito! Não bastara a loucura das duas horas no seu apartamento a seguir à reunião. Já de regresso e ali mesmo à porta de casa, correndo o risco de serem vistos por alguém, metera-lhe a mão entre as pernas, a boca a percorrer desde o ouvido aos lábios, passando pelo pescoço, peitos, ventre e baixo ventre, e finalmente, regressando, o ombro onde lhe deixara a marca enquanto todo o seu corpo ardia e estremecia na febre mista de gozo e angústia de poderem ser descobertos.
Inspirou fundo e encetou o ritual do despir e dos preceitos de higiene.
Na sala, ele certificara-se de que ela não o poderia ver nem ouvir. Rapidamente pegou no telemóvel e carregou na tecla verde.
- Sim.- disse em voz sussurrada...-Foi por pouco amor. Mal cheguei a casa, e só tive tempo de preparar uma bebida, sentar-me e fazer de conta que estava à sua espera. Tinha acabado de fechar o carro na garagem quando ouvi, vindo da rua, o bater da porta dum veículo e ouvir a voz dela a dizer à colega até amanhã. Felizmente não precisei de esperar pelo elevador. Foi só entrar e subir enquanto ela procurava a chave para abrir a porta do prédio... Como? Não... ela não desconfia de nada, amor. E sabes? Amanhã tem outra reunião! Não é formidável?...
Dizes coisas tão lindas, és linda...também te amo.
Mal posso esperar pela hora de estar contigo novamente...Um beijo... -

Charlie

21 junho 2009

Almoço... digo, lanche de leitão e espumante na Mealhada

... com o pretexto de os autores verem o DiciOrdinário em papel pela primeira vez.


O dia começou à espera de um reboque (pudera, o Nelo esteve presente).

São Rosas - Raim, vocês vão comendo, que nós iremos ter convosco ao restaurante logo que chegue o reboque. Entretanto, vai fazendo uns desenhos na toalha para entreter os Charlie & Cia.
Raim - Não posso. As toalhas são de pano... e não trouxe a máquina de bordar!

"Com reboques Mondego, lanchar leitão é um aconchego"


Fomos os únicos no restaurante a lanchar leitão. Depois de 3,7 Kg de costelinhas, 5 garrafas de espumante e por aí fora (que ser ordinário não significa passar fome) estávamos uns ricos manjericos.



O Raim levou, para nos mostrar, os desenhos originais que ele fez...



... para o DiciOrdinário, para a «Lenda do Chico das Piças», para o blog «a funda São»...



... bem como os novos desenhos para o projecto que temos na manga, com o Charlie à cabeça (e que cabeça, meu Eros).



A Vera, simpática funcionária do «Nelson dos Leitões» e futura administradora (Nelson, dá-lhe um aumento que ela merece) com o até agora único exemplar do livro que tem as assinaturas dos três autores (o espumante e a conversa estavam tão bons que nos esquecemos de assinarmos os três mais exemplares).



Digam lá que o espumante não era bom!



Cada um de nós veio-se para casa com um manjerico oferecido pelo Raim, cada um com a sua quadra popular, num suporte... popular.

Espero que todos tenham regressado a casa sem... reboques. Excepto o Nelo, a quem faço votos para que tenha sido rebocado.
_________________________
Ao abrigo do direito de resposta mirandesa, o Falcão ode-nos:

"Ora ide-vos pró caralho
Canalha que fostes comer leitão
Melhor teriam no meu barraco
Enfiado verdasco cum salpicão

E num ficariam, bem lhes digo
Neste começar cum a pinga boa
Além de verdasco tenho tinto
e mais carnes a comer cum broa

Mas vós fosteis quais panísgas
Comer dessa coisa assada
Leitão posto na mesa às tiras
Cum o vinho lá da Bairrada.

Ora, ora cum caralho!
Estando éu aqui à beira
pudiam ter-me cunvidado
Cum catano, que galiqueira!"


O Vintesete nunca perdoa uma ao "bimbo do Norte":

"Ora e agora temos
o Bimbo todo amarfalhado
Queria ele ter bebido só meio
do que lá ficou despejado

Mas penso que o que o lixa mesmo
O que o chumba de verdade
é nã ter ficado com'ó Nelo
Com o cuzinho cheio de carne"


Ao abrigo do direito de resposta de bacalhau, ode o Nelo:

"Melhéres queça coiza ágora
De ter fama çeim porveito
Deicha-me co´us nervus de fora
Queru au menuz um pôuco de respêitu.

Perque temus u sinhor Falcona
Maizu Zeca, Vinteçete
A julgar ca na Mialhona
Aviaróm o Nelo num mete-mete

Pois fiqueim já todas çabendo
suas melhéres graganêras
Que ninguéim ashava a piça
depois de tanta Murganhêra

Beim ca Rosas se fez cabra
Mustrando o rabu e fio dental
Mas hera o Raim, o Paulo e o Xarle
que nam u incontravóm afinal.

Per iço melhéres çe foi purreiro
Çe foi coiza ca acabou tarde
çobrou pra mim çó u dezejo
de levar o cu sheio de carne."

10 maio 2007

As noites claras IV

(continuação)

por Charlie
...rompia em lágrimas e fogueiras de ciúmes que ele jamais lhe havia demonstrado...

Com um sorriso no rosto dobrou a esquina inferior da rua onde morava.
Vindo por aquele caminho, a subida era mais íngreme e custosa, mas ele sentia-se hoje dono duma euforia que fazia dele a leveza duma ave.
O peso dos sacos de plástico do supermercado sorria-lhe nas mãos, perante o pensamento que trazia nela. Como ele a amava!
Dentro de si conscientemente afastava a imagem de vê-la nua nos braços de outros homens que lhe compravam o corpo, a quem ela entregava os lábios, com quem ela fundia as carnes e prazeres. Para ele, para a sua interioridade construída, fingia que ela tinha um emprego qualquer com um horário imprevisível, irregular. Afastava todos os pensamentos que o magoavam nas horas de desespero em que a verdade, tão habilmente maquilhada com eufemismos e enganos, rompia em lágrimas e fogueiras de ciúmes que ele jamais lhe havia demonstrado
Mas hoje sentia que ela teria o dia livre e assim, depois de ter feito uns pagamentos, regressara a casa. Mansamente deslocara-se ao quarto e, sem fazer nem o ruído dum alfinete a cair no chão, detivera-se largos minutos a olhar para ela.
Gostava tanto daquela mulher. Tê-la a dormir na sua cama, saborear o gosto da sua pele, sentir a sua feminilidade, era o seu sonho realizado….
Inspirara fundo e regressara à sala. Pegara num papel e lápis e com letras grandes deixara um recado ao canto da mesa de forma a que ela a pudesse ver se porventura pensasse em sair.
Saíra depois com um largo sorriso a antever a cara de surpresa que ela faria quando ele lhe pusesse o pitéu à sua frente quando estivesse sentada à mesa.
Já no Supermercado comprara os camarões, a carne seleccionada, os demais ingredientes, condimentos, alguns acessórios e duas garrafas de vinho verde.
Agora de regresso planeava como tudo decorreria. Faria o almoço com o prato que ela tanto gostava, e só o antever-lhe a cara de satisfação enchia-o de gozo e leveza.
Sem que ele desse por isso, uma erecção ia-o tomando à medida que antevia o seu sorriso e a mão dela posta por cima da dele, nas ocasiões em que ela toda em brilhos de olhar lhe dizia quanto era bom que ele existisse na sua vida, e o beijava e mergulhavam um no outro; os corpos no Éden em que ele sentia que toda a sua alma e corpo lhe pertenciam.

Olhou distraidamente para a rua vazia despertando do seu sonhar ao som do ronronar doce do carro que a descia sem pressas e pôs a chave à porta. Olhou para o relógio após ter pousado momentaneamente os sacos no chão do hall de entrada. Era quase uma da tarde e ela tinha-lhe pedido para ser acordada perto da uma.
Em cima da mesa ainda estava o papel com o recado que lhe tinha deixado. Foi até ao quarto e chamou-a ainda antes de abrir a porta.
Espreitou.
Estava vazia. Talvez tivesse ido tomar outro duche.
Apressou o passo voltando a chamar enquanto abria a porta da casa de banho.
Ninguém...
Voltou novamente para a porta da rua franqueando-a à luz forte do dia.
Espreitou para o lado de cima da rua, semicerrando os olhos: Vazia!
Olhou depois para baixo.
Ninguém.
Lá ao fundo, de onde ele há poucos minutos viera subindo para casa, apenas um Mercedes cor de prata dobrava a esquina...

(continua)

Charlie

05 maio 2008

A Casa da Lanterna Vermelha

Por Charlie

Chovia aquele quase sem chover que fica algures entre a ténue neblina e o gotejar indefinido e suspenso que deixa os cabelos, roupa e penugem do rosto cobertos, sem que o notemos, com um fino e quase imperceptível véu velado em translúcidas teias sob os caprichos dos vestígios de luz quando o tardio da noite lhes incide.
Entrei empurrando leve e familiarmente o puxador da porta.
Havia uns largos anos que não entrava naquele espaço, e confesso a estranha e arrepiante sensação de déjà vu quando, por entre o cheiro a tabaco agora proibido, dei com o leque meio aberto em cima daquela mesa ao canto, junto à passagem que repartia a zona reservada ao acesso do serviço de balcão com a porta que dava para a sala interior.
Sem olhar para mais nada e sem pensar bem o porquê sentei-me de olhos fixos no artefacto.
Quase religiosamente toquei-lhe sentindo um mar de emoções aflorar à pele. O seu rosto, sabores do seu corpo, ecos da sua voz por entre relampejos intensos do negro lembrar dos olhos que tão apaixonara o verde dos meus... Acordei ao sabor da voz quente e um pouco rouca:
- Não viu o que dizia na porta? - Olhei para ela.
- Estamos fechados, não viu?...- Continuou abrandando a inflexão enquanto o rosto se lhe aclarava à medida que me redescobria.
- Tu?... Estou a ver bem? És tu?-
Sorri-lhe em resposta reparando como o seu olhar descaía para os dedos que eu mantinha pousados em cima do leque.
- O que é feito dela?- Perguntei.
- Sabes que ela se foi. Nunca mais soube dela... O que queres tomar?-
Afastou-se apontando com o olhar vagamente para a garrafeira enquanto ia buscar dois copos.
Mirei-a em silêncio seguindo os gestos e acenei afirmativamente aos cubos de gelo que já sentada à mesa serviu e que estalaram ao contacto com os dois dedos de uísque.
- Sabes... As meninas que aqui entram, vêm cá para passar e dar uns momentos agradáveis e governar a vida, mas vocês tem a mania que elas lhes pertencem. Começam a pensar só com a cabeça que têm entre as pernas e põem a outra na prateleira, e depois é o que dá...-
Calei-me enquanto um nó se me fez na garganta e todo um turbilhão de sensações me tomou de novo, agora mais intensas e vivas. Pequei no leque, abri-o seguindo os desenhos em negativo a negro da china e incrustações de fino madre-pérola.
- Este leque... era dela.- Atalhei com um ligeiro embargo na voz.
- Há mais leques no mundo, não há?
- Este foi o que lhe ofereci... - Fez-se uma pequena pausa enquanto ela me mirava fixamente no olhar. Voltei a abri-lo e apontei a um ponto determinado:
- Estás a ver? As minhas iniciais e as dela ao lado...-
Abaixou a cabeça, descomprimindo a tensão com um evasivo; - Deve tê-lo deixado esquecido, às vezes pego nele quando me sento um pouco e descanso. - Esperou um pouco e de brilho nos olhos mudou o tema: - Escuta, tenho agora aí umas miúdas... Se bem te conheço e se continuas o mesmo que eras...- Piscou-me o olho e colocando as duas mãos cheias de anéis em cima das minhas continuou: - Elas contavam-me. - E riu-se tossindo...
- Não... de momento não, mas escuta, eu venho um destes dias por aqui, mas vou deixar-te um cartão. Se tu a vires, se ela aparecer por aqui ou se alguém da casa a vir, dá-lho e diz que gostava de falar com ela...-
Deixei-lhe o cartão em cima da mesa e despedi-me puxando a porta da rua certificando-me que estava fechada e entrei para a chuva que agora caía já abertamente e livre das névoas.
Da sala interior saiu um corpo perfeito de mulher, pegou no maço por detrás do balcão e tirou um cigarro. Olhou para o cartão de soslaio por entre várias argolas concêntricas de fumo.- Eu até gramava este sacana, sabes?...- e pegando no pequeno rectângulo de cartão rasgou-o em quatro bocados...

Charlie

21 dezembro 2009

Limbo....



Uma breve aragem atravessa o espaço.
Tem o sabor morno de mãos que se sentem de olhos fechados
a meros instantes de rasar a pele.
Levemente e sem ruído, uma das abas do cortinado enche-se de ar
desdobrando-se depois num drapejo
onde todo o seu interior se espalha
sobre o sono
em lances de água à beira-mar.
Roda um pouco sobre si mesma,
a pele suada de repente tornada fria
no contacto com as línguas,
subitamente mares, que de dentro de si a envolvem.
Sente o vermelho doce que nasce nos olhos
antes do despertar e diz:
Não!...
Não desperta!
e afunda-se numa sinfonia de mãos
onde as suas são gaivotas
num céu acabado explodir
em sóis e estrelas de silêncio e gritos.
E o ar passa...
Traz o escuro morno
através do sono do corpo
em remanso

da espuma

em descanso ...

Charlie

01 abril 2008

O erotismo do ensino

Finalmente encontro um artigo sobre o ensino que põe o dedo no grelito: «The Eros of teaching», no blog In Socrates' Wake.
Recomendo a leitura do texto integral, mas deixo-vos algumas ideias de base:
O autor comenta o livro «Love on Campus» de William Deresiewicz, que atraíu alguma discussão no passado verão, ao apresentar "a imagem que a cultura popular alegadamente tem de um professor (homem) de humanidades: um parasita libertino, desmasculinizado e inútil que aprecia o poder de seduzir as suas alunas". Deresiewicz defende que "ensinar é uma actividade quase-erótica que não é correctamente entendida na nossa cultura porque nos faltam recursos conceptuais para entender uma intimidade que não é familiar nem carnal. É uma intimidade da mente. Em alguns casos é mesmo intimidade do espírito".
"A grande maioria dos professores entende que a arte de ensinar consiste, não só de estimular o desejo, mas de o redireccionar para o seu próprio objecto, do professor para o que está a ser ensinado".
"Poderá haver uma cultura menos preparada que a nossa para absorver estas ideias? Sexo é o deus que adoramos mais fervorosamente. Negar que seja o maior dos prazeres é incorrer em blasfémia cultural".
"O que atrai os professores aos estudantes não são os seus corpos mas o seu espírito".
"Sócrates diz no Simposium que o pior de ser-se ignorante é estar-se contente consigo próprio, mas para muitas crianças que vão para a escola, isso ainda não é verdade. Eles reconhecem-se como incompletos e reconhecem, mesmo que só intuitivamente, que o completarem-se vem através de Eros. Por isso procuram professores com os quais possam ter relações e, pela nossa parte, procuramo-los também. Ensinar, afinal, é acerca de relações (...). Sócrates também diz que os laços entre professor e aluno duram uma vida, mesmo quando os dois já não estão juntos. E assim é"
.
Tudo isto é tão distante das discussões que actualmente se fazem a respeito do ensino. A única semelhança é que também envolvem Sócrates!
E nada de melhor que leres agora o conto do Charlie «A aula de Filosofia», que está já a seguir...
Mas antes, o comentário do próprio Charlie: "A circunstância de ter-me sentido toda a vida incompleto e pronto a renovar o espirito através do corpo, e por analogia simétrica, o corpo através do espirito, encontrou neste post um porto de abrigo e ponto para reflexão. Quem tem sede de saber, tem essa angústia de saber-se sempre aquém do descobrir que abre sempre novos caminhos no desconhecido. O desconhecimento da própria ingorância é talvez uma benção para os que são felizes sem o saberem, pese embora a contradição que esta afirmação contém. O professor é o Deus do saber, o aprendiz o espírito virgem , Eros o seu elo de ligação.
O Saber é a penetração fecunda no mundo das ideias, e o moldar do corpo que as contém: Existo e por isso penso- O erro de Descartes- e o saber molda o cérebro, o único verdadeiro órgão sexual de que o género Humano é feito"
.

27 fevereiro 2010

Amor, tenho um vazio um bocadinho mais vazio.

Amor, tenho um vazio um bocadinho mais vazio.
Podes encher-me um bocadinho? Larga-te,
como um homem se deve largar, bem no centro
das minhas coxas e o meu vazio enche-se de cio.

Amor, tenho um vazio um bocadinho mais vazio.
Podes encher-me um bocadinho? Perde-te
como um homem se deve perder, bem cá dentro,
dentro e fora, mendigo e senhor, rei e vadio.

Tenho um vazio um bocadinho mais vazio, amor;
não creio que seja frio, não creio que seja calor.
Podes encher-me um bocadinho? Cala-te
como um homem quando se deve calar, senta-te
como um homem se deve sentar; despe-te;
não creio que seja prazer, não creio que seja dor;
é este não ser a quase ser que se expandiu
num orgasmo ensurdecedor que nem se sentiu.


O Charlie não pode ouvir falar em amor que ode logo:

"Amor, a caminho, vou andando esconso
de odres fartos e colheita grossa.
Ao pé da horta a besta descanso
enquanto manso te toco à porta

Espreito p'la nesga, o brilho da sala
mas na horta as uvas que a vinho exalam
Levam-me a lingua em pistas molhadas
primeiro p'lo caminho onde as mãos ja lavraram

E entro na sala, primeiro um dedo
a mão trabalhando, na porta quase a medo
E volto a sair, fingindo envergonhado
para voltar depois já de dedo duplicado

E já não é dedos, é tudo mão, uma, duas
a sala de portas abertas e nuas
estremece o solo, a terra mãe quente
afoga-me as mãos, no seu fluido fervente

e não há mais frio nem vontades de nada
nem outro desejo que beber tudo à farta
e retiro as mãos de copo quase meio vazio
que outro cheio já volta, num farto avio"


O Bartolomeu não se lhe fica (mas vai) atrás:

"Amor, como os os teus vazios são três
E o Charlie se encarregou de um deles
Abre bem as tuas coxas, agora é a minha vez
Vamos tirar-te o frio, com o agasalho mais belo
Cobrindo-te com altivez
Com o nosso casaco de peles
Abre para mim o caminho que leva ao teu castelo
Deixa que te tome as muralhas e te fure a porta d'armas
Que te conquiste o paiol e te invada o dossel
Que viole as tuas aias
E o teu mordomo Manel
E no fim... ainda de bandeira hasteada
Cantaremos o belo hino, dos três da vida airada!"

18 março 2008

Uma pedra na calçada...

por: Charlie

Já tinha perdido o conto às vezes que passara àquela rua. Um mero passo de passagem entre um qualquer ponto de partida e um outro lugar de destino de chegada indefinida. Tal como no anonimato dos amorfos viajantes, de sono ainda em cansaço, dissolvidos nas manhãs-madrugadas em comboios suburbanos. Deixam que sejam os rostos e paisagens a passar vorazmente pelas janelas das suas interiores quietudes. Assim, quando a atravessava, era aquela rua que passava por mim e não eu por ela.
Não lhe conhecia, nos anos iniciais, mais do que a vaga impressão da placa toponímica, de cujo nome nunca me recordava e, mais tarde, duma particular pedra de passeio onde uma distracção me levara um sapato a fazer companhia ao seu par, ainda em bom estado, rumo ao desprestigiante final na indiferença dum contentor de lixo.
E foi nesse dia que reparei, pela primeira vez, naquele cortinado a esconder subitamente o que eu adivinhara ser a persistência dum olhar. Fixei o ponto, a casa, o número da porta e olhei pela primeira vez para um fio de ferrugem com que as escorrências da ferragem tinham tingido a pintura da varanda.
- Nunca pensaste, quando das centenas de vezes que pisavas as pedras desta rua, que ficavas cada dia mais e mais aqui? - Disse ela ajeitando o lençol que cobria os nossos corpos suados. - Que embora passasses como se nada mais existisse senão o teu destino, ela já não era a rua que se tinha tornado nos dias em que não a atravessavas? Que quando desaparecias ao fundo dela ficava o vazio do dia ansiando pelo teu regresso?-
Calei-me pensando como vivemos fechados nos nossos invólucros, nos nossos universos que julgamos projectados ao infinito. Perfeitos até nas inúmeras imperfeições com que arquitectamos os valores que nos orientam e como passamos a vida olhando a partir do nosso ponto de observação para a grandeza do céu como se ele fosse só um e apenas o nosso. Como se o brilho de cada ponto fosse apenas um ponto do nosso universo e não universos dos quais somos apenas um ponto...
Levantei-me e atrevi-me, na nudez da manhã que despertava, a olhar para a rua vazia.
Encostado à varanda olhei para a ferrugem que teimava em reaparecer.
Senti de súbito a suavidade da sua mão no meu ombro e o calor da face no outro. Olhei para o extremo oposto da rua, para o vermelho do céu, e, em retrospectiva, para a adrenalina do dia em que entrara na sua casa pela primeira vez. Dos beijos ardentes, dos corpos em delírio, da noite feita em fogo...
Encostou-se mais a mim e dizendo baixinho para irmos para dentro que ainda corríamos o risco de sermos vistos nus, olhou secretamente para o passeio. Para o sítio onde anos antes saíra pela calada da noite e de faca na mão tinha levantado a pedra da calçada onde eu horas depois encalharia...




Foto daqui

Charlie

24 fevereiro 2007

As noites claras - parte 1

por Charlie



Tinha chegado ao fim do percurso que diariamente as suas pernas faziam sem que ela lhes indicasse o caminho.
Andavam por si mesmas; meros pontos de contacto entre o chão e o mundo turbulento que lhe preenchia o interior, perdido para lá do olhar que se esvaía entre as últimas estrelas e a vermelhidão da vigília com que os seus olhos se fundiam na madrugada a findar.

Lentamente e sem ouvir os passos que calcavam a calçada dobrou a esquina e começou a descer a rua que de repente lhe escondia o céu, reinventando a noite na estreiteza apertada e a escuridão alta das casas.
Dentro da sua cabeça batia-lhe o zunir da última
discoteca, abafando qualquer som de passos que as paredes pudessem devolver.
Passou por debaixo do arco e avançou dois ou três metros, de forma mecânica, rodando para a direita enquanto baixava a cabeça mexendo na roupa.

Sem que desse por si, de forma automática, tirou a chave do bolso e abriu a porta.
Poisou a mala, despiu o casaco curto deixando-o cair sobre uma cadeira e avançou.
Um cheiro familiar fê-la tentar um ligeiro inspirar. Tossiu umas duas ou três vezes arrastando uma rouquidão persistente enquanto praguejava. Tirou um cigarro, acendeu-o e aspirou profundamente.
- Já chegaste? – chegou a ela meio abafado vindo do quarto de porta entre aberta.
Não respondeu e aspirou de novo. Desta vez de forma nervosa e entrecortada.
- Que pergunta... – Respondeu finalmente. – Quem querias que fosse? -
Dirigiu-se à casa de banho enquanto se ia aliviando da roupa, que tresandava de cheiro a tabaco e à vitória do general suor.
Tirou a lingerie, detendo-se por um instante nas cuecas húmidas e mirou o seu corpo nu ao espelho.
-... As rugas, meu Deus... Ando com umas olheiras...-
A água começou a correr quente sobre a pele. Uma massagem deliciosa, quente e doce.
Mãos e espuma numa orgia silenciosa e envolvente.
Passou com o sabonete pelo sexo e fechou os olhos. Noites a fio homens tinham instantes seus a troco de notas, indo-se embora com os pedaços de si que lhe tinham comprado.
Saiu enrolada na toalha. Na sala estava ele. Despenteado e de barba por desfazer a escurecer o rosto. Mexia na mala e em cima da mesa, espalhadas, várias notas de diferentes valores reinventavam o caos por entre envelopes e papéis.
- Só isto?! -... Olhou para ela.
Não respondeu. Ao invés, mexeu num dos envelopes e tirou um papel que consultou num relance.
- Vais mais logo pagar a luz... Passa pela lavandaria a ver se já tem o outro casaco limpo.
Vou deitar-me...
Acorda-me antes da uma...-


Charlie.............
Foto daqui

18 fevereiro 2008

O cobrador de impostos

O cobrador de impostos.


por Charlie

Podia ter nascido uma ninhada de ratos com um gato ao lado!
Ou ser um mero molusco vivendo no limiar do paladar como único sentido da existência. Devorador e devorado em cadeia sem outra história que não fosse o rodopiar das minhas moléculas em ciclo perpétuo nesta sopa feita de água e rochas à qual a consciência chama de Terra. Podia ser uma dessas pedras que andam há uma eternidade a vaguear pelo espaço com encontro marcado com ela na breve orgia dum risco de luz desenhado contra um céu de infinitos Deuses e estrelas.
Mas não... Quis o destino que toda a matéria de que sou composto se juntasse naquilo a que se chama: um cobrador de impostos. É esta a minha missão, ou melhor, o meu modo de vida e, confidencio, a minha paixão. Não que tivesse começado por sê-lo.
Têm-me dito que há paixões que são instantâneas. Não sei, nunca tive outra paixão, mas acho que deverá haver gente que se apaixona pelo simples passar dum piscar de olhos...
Mas eu não!
A minha profissão preenche-me completamente, mas isso levou tempo. Aprendi a ser o que sou hoje e a gostar de ser o que sou.
A minha lista é extensa, há muitos que estão atrasados nas suas obrigações. Procuro-os nas suas casas depois de observar cuidadosamente, ora sentado no carro, ora nos cafés e papelarias e durante um, dois ou mais dias, as rotinas de que fazem vida.
Depois ataco! De adrenalina nas veias e o coração a bater! Já tenho tantos anos disto, mas o fascínio é eterno. Primeiro encosto o ouvido à porta. Como disse, observo previamente e apenas bato às portas depois de ler os rostos e os sinais dos corpos. Sinto-os lá dentro entregues um ao outro, adivinho-lhes o olhar e os lábios em fusão. Sinto como a roupa lhes aperta na emergência do querer. Uma forte erecção me toma, aguardo mais um pouco antecipando tudo e é nesse instante que bato à porta.
Não de mansinho. Não! Mas com esta força de saber quem sou. Olho-os de frente, eles espreitando pela nesga da porta, de roupas parcamente arranjadas num ingénuo disfarce. Primeiro de rosto aborrecido, zangados até. Depois surpreendidos e incrédulos após eu ter-lhes mostrado as minhas credenciais e as intimações competentes. É nesse ponto que a erecção quase se descontrola. Mas sou um homem que se pauta pelo auto-domínio. Pego na minha caneta, no bloco de apontamentos e começo a inventariar os bens. Um a um enquanto admiro, sempre em erecção, as formas das mulheres, os nacos de carne que se expõem escapando por entre as roupas e lhes adivinho as entregas nos momentos altos dos corpos em sexo.
Vejo as salas, toco nos sofás de onde absorvo pelas pontas dos dedos todo o calor. Subo aos quartos de dormir, tantas vezes de roupas desarranjadas, sempre com eles atrás de mim. Excita-me por demais ver-lhes os rostos em aflição e aborrecimento e o saber do momento que estraguei.
Depois chego a casa, abro a mala e revejo os apontamentos. Vêm-me as mulheres à presença do espírito e, tomado duma forte erecção, masturbo-me. Atinjo uma total, indescritível e profunda satisfação. Como jamais, e já em tempos idos, mulher alguma de proporcionou.
Vivo assim. Sou assim. É esta a minha paixão e o modo de vida que me completa; ser cobrador de impostos...

Charlie

20 janeiro 2015

O paraíso dos cartoonistas do «Charlie Hebdo»

«Inimigo Público» (suplemento do jornal «Público» de 2015-01-09) com desenho na capa sobre o assassínio de jornalistas do jornal satírico francês «Charlie Hebdo».
Uma memória de um momento pornográfico da humanidade, na minha colecção.

Visita a página da colecção no Facebook (e, já agora, também a minha página pessoal)

25 fevereiro 2008

Zapping numa noite de chuva

Por Charlie

Fazia uma daquelas noites em que o aborrecimento sobressaía a cada toque que o polegar imprimia à tecla do programa seguinte. Por um instante pensei nos primeiros tempos dum só canal quase só preenchido de fascinantes banalidades que a todos prendia na meia dúzia de horas que transmitia e como eu estaria a ser no mínimo ingrato por ter ao meu dispor toda uma panóplia de artifícios tecnológicos de alta qualidade, música, filmes e mais filmes, documentários, informação de toda a sorte e em vários idiomas e por aí fora, tudo e tudo e mais que viesse a vinte e quatro horas por dia...

Levantei-me, bocejei e abrindo uma nesga da porta, espreitei para fora.
Chovia agora de mansinho depois de toda a tarde o vento ter fustigado e encharcado as ruas onde agora apenas uns esparsos círculos se alargavam nas poças que resplandeciam sob a luz parca dos candeeiros.
Nem sei o porquê nem o porque não, apenas dei por mim minutos depois de casaco abotoado e manchado de gotas a entrar para o primeiro bar que me surgiu.
Embora já não se pudesse fumar desde o princípio do ano e eu ser um não fumador, aspirei com um profundo agrado o travo que anos a fio tinham deixado impregnado nas ripas da divisória de bambu que apenas de forma muito ligeira separava a zona da entrada do espaço interior.
Avancei, esperando um pouco passada a divisória, e de imediato reparei nela. Ali quase ao canto, de livro em cima do tampo, aberto numa página qualquer. Segurando uma bebida, fitava um ponto ausente na parede oposta enquanto, atrás do balcão, um pano branco numas mãos habilidosas passava brilho a uns quantos copos que depois ia arrumando.
Cruzei-me com o seu olhar e com o seu sorriso profissional, de barman atencioso e discreto.
-Um simples sem gelo, e uma água... Sim, pode ser com gás...-
De pé ao balcão, meio encostado a um dos bancos, olhei em redor. Estava uma casa fraca. Pouca gente, dois homens de meia idade conversando baixinho, talvez negócios, um casal de namorados de mão na mão em cima da mesa e todo o futuro no olhar, alguém escrevinhando num bloco de apontamentos e, novamente, ela.
Sem que mexesse um só músculo do meu corpo, observei como agora voltara à leitura: Milán Kundera...
Molhei ao de leve os lábios enquanto por um instante de nada os nossos olhos se cruzaram. Voltei a encostar o copo à boca e lentamente, sem desviar o olhar, bebi em curtos golos todo o uísque. Voltámos a cruzar o olhar desta vez mais intenso e demorado. Os meus verdes, os dela negros e profundos como uns que conheci em tempos e que teimam ser presentes por mais distantes que estejam...
Saí logo depois dela, sem disfarçar nem esperar tempo algum.

Sentei-me no sofá de comando na mão, num gostoso zapping após ter chegado a casa já de madrugada, com a insustentável leveza que nos deixa em todo ser, depois da troca de lábios, de fluidos e de corpos, ter ocorrido sem que tivesse havido o peso duma única troca de palavras....


Charlie

01 abril 2008

A aula de Filosofia

por Charlie

... perfeita, até nos seus pujantes vinte anos de peitos perdidos por entre os cabelos...

- Assim falou Zaratrustra...- Avançou e olhou para o fim da sala de olhar fixo num ponto indefinido algures na parede oposta.
Aprendera, sob a capa austera de docente, a ver para além do olhar, a prender a atenção num ponto periférico da sua visão, desta feita numa quase tangente às pernas lindíssimas daquela aluna.
Em silêncio, de ponteiro na mão dilatou um pouco a pausa enquanto deixou percorrer o pensamento todo em mãos pela saia curta de cor clara onde o bronzeado leve das pernas morreu de repente no fechar de olhos e no retomar do discurso:
- Deus está morto! - Disse de voz bem entoada, certo do impacte que a sua forma de exprimir-se tinha sobre quem a sua voz escutava. - Antes de avançarmos, pergunto se sabeis, se incorporastes o significado do nihilismo, ou niilismo, tanto faz ...-
Poisou o giz com que acabara de escrever as duas palavras e rodando o corpo que passeava muito devagar pelo estrado, desceu-o, avançou um passo por entre as carteiras, parou e fixou desta fez o olhar na dobradiça inferior da porta da sala de aulas numa linha de visão que passava novamente a poucos centímetros dos joelhos de Carla. Como era linda! Perfeita até, nos seus pujantes vinte anos de peitos perdidos por entre os cabelos, que descendo sobre os ombros, mais ainda realçavam o seu volume.
- O nihilismo, do Latim nihil, que significa nada, é uma corrente de pensamento que....- Esperou um pouco na mira de que do murmúrio da sala saísse a resposta esperada e continuou: - .... o niilismo, entendido vulgarmente quase como sinónimo de Friedrich Nietzsche, faz do existir Humano algo que resulta do aleatório na evolução da vida e totalmente desprovida de sentido, de plano Divino, ou de valores transcendentais resultantes do pensamento, tal como a beleza, os valores imateriais ou até, mesmo sendo uma corrente filosófica, a própria filosofia.
Não é verdade, menina Carla? - Disse de repente estacando o seu passeio em frente às carteiras ao mesmo tempo que rodava o corpo de forma a ficar bem em frente a ela, engolindo dum só sorvo todo o seu olhar. Do plano superior de onde os seus olhares se cruzavam, surgia engrandecido. Duas luas enormes a olhar para cima onde por sua vez o seu olhar, a descer sobre ela, se perdia por entre estrelas.
-... Sim... concordo. - respondeu a aluna...
Sim o quê?! - Disse num avanço mas voltando-se de subitamente num breve e quase imperceptível sorriso.
Sem esperar pela resposta continuou e pediu para abrirem na página que tinha escrito no quadro. – Abram o livro e sublinhem estas palavras que vêem indicadas a seguir ao número da página.
Assim falou Zaratustra! Quero que me tragam na próxima aula uma explanação sobre os conceitos que sublinharam. Claro que não é preciso dizer que têm que ler o texto e os apontamentos que lhes ditei desde o princípio da aula.
A campaínha tocou.
- Podem arrumar os livros e sair.
Ah... menina Carla, precisava de falar consigo...-
Sorriu e mirou uma vez mais para as suas pernas enquanto, a morder ao de leve os lábios, anteviu o prazer que iriam sentir juntas as duas mulheres...

Charlie

03 fevereiro 2011

«O Afrodisíaco dinheiro e as castrações bolsistas» - por Charlie

Vocês sabem que eu detesto pornografia, que é o que mais por aí há. E a especulação financeira é do que mais pornográfico existe.
O nosso Charlie reflecte sobre isso no blog «Persuacção - a força dos argumentos». Aqui vos deixo um excerto e a recomendação que leiam o texto na totalidade:

"No mesmo instante em que os homens inventaram a abstracção do dinheiro, criaram também a projecção do seu poder fálico consubstanciado através do mecanismo da sublimação que consiste na posse substantiva e real desse meio.
(...) O dinheiro, a sua posse, transpõe para o possuidor duas sensações opostas. A primeira é a afrodisíaca sensação de plenipotência. No entanto, o seu poder esgota-se no mesmo instante em que ele cumpre a função para a qual foi criado, e o desconforto deixado pela sua escassez, qual ressaca, é a segunda e remanescente.
Temos aqui, neste binómio, bem expressa a própria função do Falo: potente enquanto erecto, esgotando o seu poder no instante da troca. O dinheiro é sem dúvida de sexo masculino."

Leiam e comentem... ou aqui.

31 dezembro 2006

Naeno ode e Charlie reode

"Afundei,

Afundei num mar raso, gostoso de mergulhar e ver o sol, ver o sol e mergulhar.

Réveillon
Menina, foi quando eu te amava,
que dos meus olhos piorei,
caí que ninguém segurava,
nem vi que o tempo escureceu.
Foi como se explodisse
a noite em luzes lá na praia,
e lá do mar se visse
um dia novo começando
estrelas aninhando-se
debaixo de tua saia,
coro de passarinhos
em volta de mim silvando.
Naeno"

"E em coro esvoaçando
entre asas que rodopiam
Cantam em ode sobrehumana
O que só Deuses têm em alegria

Sobem em luz direito ao céu.
E voltam em vôo, estrelas cadentes
Rasam o peito no mar que o Deus
Levanta em espuma e cantes ardentes

E então a brisa fresca e leve
que do mar se adivinha
sobe no ar, instante breve
a saia e mostra a passarinha
Charlie"

10 outubro 2006

A verdade vem-se sempre ao de cima!

O 69 MirandêsFoi preciso irmos a Miranda do Douro para que se esclareça a humanidade sobre o que é realmente a figura em pedra - uma gárgula - numa parede de um edifício na rua Abade de Baçal (na parte antiga da cidade, pertinho do largo D. João III e da catedral), em Miranda do Douro, onde funciona actualmente a reitoria da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
O que nos contaram sempre foi que aquilo é um rabo (vulgo cu) virado de forma ostensiva e provocatória para Espanha, como que para compensar com gases aromáticos os maus ventos que de lá vinham.
Que é um rabo, não há qualquer dúvida. Mas basta colocarmo-nos por baixo dessa figura para nos apercebermos que no meio das pernas está uma cara de alguém em afazeres lúdicos:
Para pessoas com mais dificuldade de percepção da figura (nada triste, diga-se), rodemos a imagem e demos destaque aos bonecos:
Para a malta que mesmo assim ainda lá não chegou, aquilo é, sem qualquer margem para dúvida (nem espaço para maus pensamentos) um belo de um 69! Aliás, para vesgos e cépticos, aqui vai mais uma imagem, maior e tirada mesmo por baixo.
O nosso agradecimento ao senhor da loja ao lado nessa rua, que prestou este esclarecimento «mesmo estando ali senhoras». E que nos sossegou:
- Podem pôr-se em baixo, que aquilo já não pinga!
Viva Miranda do Douro! Viva!
Viva a cultura mirandesa! Viva!
Viva o 69 mirandês! Viva! Viva! Viva!...

Fodografias: Car(l)os Car(v)alho e Ti'Ago

O DTEfS (Departamento Teórico Erótico da funda São) tem sempre a penúltima palavra nestes assuntos:
Charlie: "A iconografia medieval está recheada de exemplos desse teor. Por um lado, passa-nos a imagem do obscurantismo dominador e omnipresente, castrador e limitador.
Por outro, os testemunhos expressos em pedra põem-nos interrogações sobre a coexistência cíclica de valores chamados pagãos a ombrear com o sagrado.
Qual o significado destas pequenas esculturas em pedra talhada, que estão por toda a parte, mormente em edificios religiosos?"

Bartolomeu (teoria I): "O significado da predominância destas esculturas em pedra tem origem, não em imagens pagãs, mas sim na prática que hoje definimos como posts. É verdade: há vários séculos, os nossos antepassados já tinham criado o conceito de blog. Limitados pela inexistência de redes informáticas, postavam nas fachadas dos edifícios, em muros, fontes, pelourinhos, entradas de pontes, etc. O que naturalmente originava os comentários dos «vizinhos». Tal como hoje, certos posts originam acesas e polémicas discussões. Outros, enigmáticos, são tema de reflexão. Outros, por serem de caracter hilariante, provocam a risota e a frase jocosa. Outros ainda, são a representação de temas sociais... e por aí fora."
Bartolomeu (teoria II): "Não pretendo de forma nenhuma retirar o mérito às constatações do Charlie. Porém, no caso vertente da interpretação da carranca em que figura um par de nalgas sobreposto a um rosto, é pertinente que se clarifique. Aquela figura representa um acto que na idade média se destinava a «castigar» severamente, numa óptica de justiça popular, as atitudes de alguém e designava-se por merdimbuco. Consistia em assentar uma valente carga de porrada ao prevaricador e, depois de o deixar inconsciente, ou quase, os executantes da carga de porrada, cagavam-lhe na boca. Pode imaginar-se que a vítima, na maior parte dos casos, não resistiria ao ultrajante castigo. Para sua sorte, pois quando resistia, nem 20 bisnagas de Pepsodent e 30 frascos de Tantum Verde chegavam para eliminar o sabor. Até parece que estou a ver as vossas carinhas de enjoados a ler isto. O facto de a carranca estar orientada para Espanha, nem é necessário esclarecer, né?"
ognid: "Ora porra! E eu que tirei as fotos de lado e não reparei nesse «pormenor»! Sendo assim é tipo 2 em 1 - lança bufas (fêmeas do bufo que ali a-bunda) para Espanha e mostra-nos esse lado lúdico que aqui explicas"
OrCa [a partir deste evento também passível de ser chamado Santo Inocêncio]: "E então que digo eu, uma meninice inteirinha a ouvir falar do cu virado para Espanha, sem que ninguém me alertasse para a cara encaixada por baixo? Foi preciso vir de lá a mineTuna para que a verdade viesse à tona... Gárgulas ou mísulas, sempre vos digo que há mais mistérios nestas coisas do que aqueles com que à primeira tropeçamos. Por exemplo, alguém reparou, num dos retábulos da Sé, naqueles querubins, de cabelinho perniciosamente penteadinho, a que se dedicavam vários deles? Pois, a torcer o papo aos passaritos que iam às uvas. Isto para já nem falar na língua obscena que um deles - o mais escondido - mostra sem pudor a quem passa... Sim, que isto das "ancestrais virtudes" muitas vezes não passa de historinhas mal contadas."
A cultura é uma coisa muito linda... também em Mirandês...

09 agosto 2006

O mestre de cerimónias - por Charlie

Naquela tarde de Verão, poucas pessoas teriam reparado no seu aspecto polido, nos seus finos modos e nos pequenos tiques que quase se confundiam com a coreografia de gestos tão comuns às cerimónias onde ele pontuava com todo o seu saber e estilo.
Todo o ambiente condizia com ele. Tudo nos lugares, os enfeites das mesas, a decoração primorosa, tudo mas tudo encaixava com o aspecto de requinte que ele transparecia, fazendo-o passar por apenas mais um elemento dum universo perfeito.
Era o mestre de cerimónias mais competente e requisitado de toda a cidade.
Acontecimento que estivesse sob os seus hábeis e dedicados dedos era evento memorável na certa, pela qualidade e desenvoltura no serviço. Pela excelência nos meandros protocolares, pela invulgar postura de homem de sociedade.
Assim, quase passou despercebido o instante em que o padrinho passou junto a ele e lhe fez um sinal discreto, retirando-se para os fundos do imenso salão onde estava a decorrer o copo de água. O mestre ficou impávido e sereno como se de nada se tivesse dado conta.
Deu as suas ordens, arranjou mais uns lugares para os recém-chegados convivas e rapidamente saiu para as traseiras do recinto.
Ali estava ele. O padrinho. Esperava-o nervosamente como se o que fosse dizer lhe queimasse a língua:
- Escute... Eu tenho algo para dizer-lhe...
O mestre não esperou mais. Sem que o padrinho esperasse, atirou-se a ele num abraço quente, de lábios encostados aos dele que assim de repente nem reagiu, apanhado de surpresa.
Num gesto brusco afastou-o e disse-lhe visivelmente alterado:
- O que pensa que está a fazer?! Por quem me toma?!
A compostura foi imediatamente retomada e o mestre, sabedor pelos muitos anos de experiência feita, ouviu o pedido que o padrinho tinha para fazer-lhe, impávido e sereno, como se nada tivesse acontecido. Que precisava dum momento de recato para combinar uma coisa com o noivo, e que não podia ser interrompido por nada deste mundo.
O abanar de cabeça condescendente do mestre deixou-o descansado. Episódio esquecido sem mais memórias.
Tudo decorreu sobre carris, as coisas servidas numa gestão perfeita do tempo, como só o mestre sabia fazer. A música a tocar suavemente temas de gosto esmerado e de cadência a condizer com o leve crescente das emoções, à medida que o etílico ia alargando os círculos e elevando o tom das vozes.
Aproximava-se o momento de partir o bolo, um pé de dança e, daí a pouco, todo o cerimonial estaria terminado. O ambiente estava excelente, como sempre acontecia sob o mando sabedor deste grande mestre.
Foi assim um espanto para todos quando viram entrar pela salão a noiva em pranto, depois de ter saído apressadamente após umas breves palavras ditas ao ouvido por um dos serviçais, que depois se retirou do recinto.
Ela chorava desalmadamente. A mãe de expressão tomada em sofrimento e o pai a fugir para os privados após ter ouvido da sua filha o que ela tinha presenciado.
Quase sem se dar a ver, junto à mesa grande na zona da copa, o mestre servia-se duma taça de champanhe, apreciando, conhecedor como era, como certas coisas só tem o paladar certo se forem servidas frias...

Charlie

21 junho 2006

Aquela tarde num final de Primavera - por Charlie

Conheci-a uns dias antes que chegasse o Verão.
Lembro-me bem das sombras curtas das árvores e das cadeiras de esplanada ao sol, onde ninguém se sentava àquela hora em que ela passou por mim em miragem suave e tons de brisa.
De saia luminosa e sombras quase ausentes, ofuscou, num piscar de olhos, a luz que me fazia fechá-los numa linha fina.
Fiquei olhando, acompanhando em sonho o seu desaparecer na claridade da rua deserta e despertei de súbito.
Fui atrás dela levado pelo ar que respirava, pelo cheiro leve que o seu corpo exalava em brilhos doces, gotas de sol onde o meu querer mergulhava com ela.
Eu flutuava atrás do seu corpo, que dançava suavemente entre os desenhos da calçada, quase sem tocar no chão, numa leveza que me vinha poisar nas palmas das mãos e que me enchia toda a alma.
Aproximei-me dela, completamente transportado para dentro do seu corpo, da sua feminilidade, passos no chão a soarem em uníssono, como num sonho.
Com os olhos a despi, peça a peça, enquanto lhe passava os saberes da minha língua em aventura doce entre as gotas dos sabores do seu corpo.
As mãos descendo devagar pelas ancas, deixando cair a saia numa onda de seda tão leve como o ar. Encostando-me a ela, fazia avançar os quatro dedos da mão direita pelo umbigo, descendo para dentro da lingerie ao mesmo tempo que a esquerda subia até à axila, polegar a penetrar suavemente no pegamento da mama e os dedos indicador e médio a apurar os mamilos alternadamente . Com toda a doçura e meiguice, até senti-los rijos e tumefactos.
Mordia-lhe o pescoço e o lóbulo da orelha, sentia-lhe os estremecimentos do seu corpo levado com o meu em sinfonias de prazer.
E, rodando o corpo, mergulhava já frente a frente no oceano dos seus lábios, enquanto me deixava morrer mil vezes nas profundidades do seu poema.
Todo o seu aroma me entrava pelos sentidos e fechei os olhos um instante enquanto continuei a caminhada, colado às nuvens.
Entrou num café e pediu um refresco, olhando para trás de soslaio procurando disfarçadamente por mim.
Esperei um momento à porta mas entrei logo atrás dela e pedi o mesmo, ficando ao seu lado, quase sem querer olhar enquanto lhe reparava nas mãos segurando o copo fresco finamente gotejado tal como a sua pele na zona dos ombros, expostos por umas alças largas aos mundos secretos das minhas narinas.
Engoli em seco e, depois de ter dado um golo também, atrevi-me a uma tirada de circunstância
- Hoje está um sol...
Desastradamente deixei cair parte do conteúdo da garrafa para cima do balcão, no exacto momento em que me virava para ela.
Durante um instante, pensei ter estragado tudo num lance estúpido, mas ela riu-se e disse:
- Acontece...
Esperei um pouco e, refeito, olhei-a de frente:
- O sol a que me refiro, não é o da rua... És tu...
Voltou-se para mim, mirou-me com os seus grandes e claros olhos e olhou-me bem para dentro.
Repeti:
- És tu que és mais intensa que o sol... Chamo-me Carlos... Queres sentar-te a uma mesa?
Sem mais nada dizer, avançou o nome e pegou-me no braço.
- Sabes quem eu sou? Passo por ti há semanas e quase tinha já desistido de ti quando hoje resolvi passar-te mesmo debaixo do nariz...
Fiquei estupefacto, vendo-me passar de caçador de repente a peça caçada e inspirei fundo.
- Escuta, não vamos para uma mesa, vamos sair e passear por aí e conversar.
Saímos numa deambulação aparentemente aleatória mas onde as forças mais fortes do universo nos empurraram para o nosso destino.
Dois quarteirões adiante!
Junto à bilheteira do cinema escolhemos os lugares últimos da última fila e nunca naquele recinto tanta coisa aconteceu no extremo oposto da tela como nessa tarde daqueles últimos dias de Primavera...

Charlie

11 junho 2006

O apaixonado - por Charlie

Era já a terceira vez esta semana que lhe telefonava.
- Está? – dizia ele ainda antes de ela ter tempo de lhe dizer fosse o que fosse.
Ficava calada, inspirava fundo e tentava segurar o seu enfado aparente pela insistência com que ele a presenteava continuamente.
Continuava depois de ela lhe dizer que sim, que estava, mas dizendo habilmente que tinha pouco tempo.
Afazeres e compromissos adiantava-lhe ela depois, mas que ele nem ouvia, de tal forma lhe deitava o coração aos pés, de homem perdidamente apaixonado e entregue aos seus encantos. Por ela, ele faria tudo o que lhe pedisse e mesmo mais, faria o impossível para ter o seu amor incondicional.
O céu era pequeno para conter tudo o que sentia por ela, inventaria uma nova abóbada celeste, mais sublime e grandiosa, em que as estrelas seriam poemas em permanente recitação e evolução entre si. Um novo universo onde o seu nome seria o eco primeiro e último entre todos os corpos celestes. Um grandioso poema único em seu louvor, cantado até ao infinito por todos os astros.
Por ela iria ao fundo dos mares e, desafiando os Deuses, entraria nos céus clamando em triunfo a glória suprema do amor que lhe sentia.
Cobri-la-ia de jóias e de ouro, e faria dela uma rainha.
Continuava assim mais de meia hora em crescendo contínuo até ficar exausto, terminando sempre em súplicas e promessas...
Finalmente desligou.
Era a terceira vez esta semana.
- Quem era? – perguntou uma voz ao seu lado.
- Era o Osvaldo.
- Ah, o Osvaldo... Qual Osvaldo? Quem é o Osvaldo? O que queria ele?
- O mesmo de sempre. O que querem todos.
- Mas este não é o tal do carro...
- Sim, é. O de sexta-feira. O que chegou com o Toni.
- O Toni? Mas esse não estava em Lisboa?! É que nem o vi...
- Não o viste porque estavas entretido. O Toni estava em Lisboa mas descobriu-me este saco de dinheiro para a gente esfolar. Bem, podes mandar as tuas putas para casa descansar uma temporada que isto promete. Já agora, liga ao Toni e diz-lhe que precisas de falar com ele. Se tudo correr como prevejo, e se bem conheço o Toni, tens homem para as tuas noitadas e os teus alfinetes, meu querido. Sabes que não o faço por menos. Agora beija-me, meu panasca. Que gosto da forma como sabes beijar...

Charlie

06 maio 2006

O fetiche (2º episódio) - por Charlie

(do 1º episódio)

Enquanto esperara por ele dentro do carro, olhara para mim mesmo a tentar compreender o que estava ali a fazer. Achava-me perdido numa história que não era minha.
Como a partir dumas cervejas bebidas no meio de conversa de treta me vira de repente dentro do carro de um tipo que mal conhecera uma semana antes, à porta não-sabia-de-quem, para entrar num enredo de sexo com apontamentos de práticas desconhecidas e que me traziam um misto de curiosidade e desconforto. Pensei em sair dali. Tomar rumo a uma das estações da Linha cujo comboio soara um momento antes no chiar do ferro contra ferro da travagem, antecedido pelos saltos das ruidosas juntas de dilatação que continuam a existir nas estações. Tomar um comboio qualquer para qualquer lado longe dali...
Mas agora já era tarde.
- Anda... - dissera ele ao regressar do prédio onde minutos antes entrara, logo continuando com recomendações de silêncio e prudência - Não faças barulho... passe-se o que se passar, fica quieto até eu dar o sinal e chamar-te.
Segui atrás dele subindo um lanço de escada. Chegados ao primeiro andar, meteu a chave, abrindo sem ruído a porta do apartamento, avançou à frente fazendo sinal com o braço esticado e a palma da mão para baixo para que eu ficasse escondido.
Por entre a fresta da porta vi-a em pleno pela primeira e única vez na vida.
Ela tinha acabado de sair do duche, roupão desabotoado e o cabelo ainda molhado.
Estava no quarto e o momento em que ela, de perfil, puxava os cabelos para trás, ficou-me para sempre gravado na retina.
Mantive-me escondido, colado à parede, mal me atrevendo a espreitar por uma nesga.
Assisti ao envolvimento, os lábios e línguas, roupas voando, corpos e sons em surdina e em crescendo contínuo.
Aproximei-me muito devagar, encostando a porta do apartamento e mantendo-me na sombra, enquanto eles se envolviam na entrega completa dos preliminares. Avançando com os rostos tomados pelos Deuses dos sentidos. Anunciando o momento alto que chegava a passos largos. Depois, com o rosto ruborizado, num breve momento de relaxe, ela pôs-se na posição adequada e vi-o prendê-la aos ferros da cama. Um sorriso e, acto contínuo, pegou na gravata vendando-lhe os olhos.
Vi-a apertar as mãos em punho fechado, sinal de tensão, forma subtil de revelar um gozo não explícito de masoquismo, estremecendo ao pensar no que o parceiro lhe poderia infligir, sem que ela se pudesse defender, nem ver o que se estava a passar.
Corpo aberto, peito firme espetado no ar, puxando pelas algemas e torcendo o corpo. Denunciava o estado de expectativa por leves ondulações que lhe percorriam o corpo, estremecimentos que nasciam no fundo do imaginário povoado de fantasmas que a devoravam e espicaçavam a sua libido.
Dei por mim olhando para aquilo tudo sem perceber o meu papel. Espectador de mim mesmo num cenário sórdido.
Por um instante dei um passo atrás para retirar-me daquela loucura. Sair dali, que não me via a ficar impávido a assistir às intimidades entre terceiros. Dei mais um passo quando ele de repente se virou. Nas mãos, tinha uma pena de ponta afiada, leve alegoria literária, com que ora espetava numas zonas do corpo, arrastando de seguida linhas que ficavam vincadas na pele, ora desviava para o extremo oposto passando muito levemente os pêlos pelos pontos sensíveis, que ela denunciava em estremecimentos e morder dos lábios. Depois, picava no corpo com força, retirando de seguida. Ficava à espera e a gerir a expectativa da sua presa, ameaçando em expressões suaves que ia picá-la outra vez, mas não passando de um mero gesto que depois abortava, deixando-a num completo fervilhar dos sentidos. O seu corpo de mulher rendida à aventura maior da sua condição. Pura poesia sem palavras. Pus a mão no puxador da fechadura, muito levemente, para sair.
Nisto, olhou para mim, de olhos vermelhos excitados e fez-me um sinal com a cabeça, acenando para eu me aproximar...

(continua)

Charlie