20 outubro 2012

«coisas que fascinam (151)» - bagaço amarelo

à boleia

Tenho uma gaveta para onde atiro coisas. É uma gaveta bem grande, numa cómoda que herdei do meu avô e que foi feita por ele há quase cem anos. Por exemplo, quando viajo e trago pequenas recordações como postais, bilhetes ou qualquer tipo de panfletos, atiro-os para ali. Faço o mesmo com algumas fotografias, pequenos objectos ou prendas. Não organizo nada, apenas atiro para lá coisas que, de outra forma, não saberia muito bem onde pôr. Na verdade é uma forma de sentir que organizo uma parte da minha vida que não é organizável.
Hoje de manhã, ao atirar para lá alguns panfletos da última viagem que fiz a Barcelona, decidi remexer naquele monte de pequenos pedaços soltos da minha vida. Meti a mão entre alguns papéis que se amontoavam e tirei um à sorte. Era uma fotografia da Marta.
A Marta deu-me uma vez boleia, de Aveiro para o Algarve, através dum site na internet. Eu andava um pouco perdido, sem estar bem em lado nenhum e, pior ainda, sem fazer ideia para onde devia ir. Vi num site alguém a oferecer boleia do Porto para a Fuzeta, com divisão de custos, e decidi ir passar o fim de semana àquela cidade do sul. Mandei-lhe um email e combinámos que ela me apanhava em Aveiro.
A meio do caminho ela perguntou-me o que é eu lá ia fazer e eu respondi, muito naturalmente, que nada. Só tinha decidido ir ao ver a oferta dela para uma boleia. Perante o silêncio curioso expliquei-me um pouco melhor, o mais que pude dizendo o menos possível, demonstrando que não tinha sítio nenhum para ir naquele fim de semana e por isso qualquer sugestão me parecia melhor do que ficar em casa. Não lhe expliquei que tinha acabado de me divorciar e que me estava ainda a habituar à ideia, tão triste quanto feliz, de ter fins de semana inteirinhos só para mim.

- Eu também só me pus a oferecer boleia para ver se alguém aceitava. Ando um pouco como tu. - respondeu.

Tanto quanto me lembro, depois desse diálogo fizemos grande parte da viagem em silêncio. Não um silêncio perturbador, mas sim um silêncio contemplativo. A sensação era a de que, de repente, se tinham encontrado naquele automóvel duas pessoas que vinham de caminhos similarmente tortuosos, e que naquele momento, pela primeira vez, seguiam numa auto-estrada a uma velocidade razoável e constante, exactamente como aquela que queriam nas suas vidas.
Passámos esse fim de semana juntos e, quanto mais não seja, foi nele que aprendi que a solidão se pode matar com alguém que não conhecemos de lado nenhum, que às vezes é mais fácil contarmos as coisas mais íntimas precisamente a quem até então nem sabia da nossa existência. Desta forma, não nos tornamos demasiado transparentes aos olhos de quem nos conhece mas sim aos olhos de quem não é suposto encontrarmos muitas mais vezes na vida.
De facto, não vi a Marta muitas mais vezes. Lembro-me de ter ido tomar café com ela ao café Ceuta, no Porto, numa ou outra tarde estéril. Mais nada. Mas hoje, quando olhei para a fotografia dela,tive a certeza de que foi uma mulher importante na minha vida. É isso que as mulheres têm a mania de ser: importantes na vida dos homens.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»