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24 fevereiro 2007

As noites claras - parte 1

por Charlie



Tinha chegado ao fim do percurso que diariamente as suas pernas faziam sem que ela lhes indicasse o caminho.
Andavam por si mesmas; meros pontos de contacto entre o chão e o mundo turbulento que lhe preenchia o interior, perdido para lá do olhar que se esvaía entre as últimas estrelas e a vermelhidão da vigília com que os seus olhos se fundiam na madrugada a findar.

Lentamente e sem ouvir os passos que calcavam a calçada dobrou a esquina e começou a descer a rua que de repente lhe escondia o céu, reinventando a noite na estreiteza apertada e a escuridão alta das casas.
Dentro da sua cabeça batia-lhe o zunir da última
discoteca, abafando qualquer som de passos que as paredes pudessem devolver.
Passou por debaixo do arco e avançou dois ou três metros, de forma mecânica, rodando para a direita enquanto baixava a cabeça mexendo na roupa.

Sem que desse por si, de forma automática, tirou a chave do bolso e abriu a porta.
Poisou a mala, despiu o casaco curto deixando-o cair sobre uma cadeira e avançou.
Um cheiro familiar fê-la tentar um ligeiro inspirar. Tossiu umas duas ou três vezes arrastando uma rouquidão persistente enquanto praguejava. Tirou um cigarro, acendeu-o e aspirou profundamente.
- Já chegaste? – chegou a ela meio abafado vindo do quarto de porta entre aberta.
Não respondeu e aspirou de novo. Desta vez de forma nervosa e entrecortada.
- Que pergunta... – Respondeu finalmente. – Quem querias que fosse? -
Dirigiu-se à casa de banho enquanto se ia aliviando da roupa, que tresandava de cheiro a tabaco e à vitória do general suor.
Tirou a lingerie, detendo-se por um instante nas cuecas húmidas e mirou o seu corpo nu ao espelho.
-... As rugas, meu Deus... Ando com umas olheiras...-
A água começou a correr quente sobre a pele. Uma massagem deliciosa, quente e doce.
Mãos e espuma numa orgia silenciosa e envolvente.
Passou com o sabonete pelo sexo e fechou os olhos. Noites a fio homens tinham instantes seus a troco de notas, indo-se embora com os pedaços de si que lhe tinham comprado.
Saiu enrolada na toalha. Na sala estava ele. Despenteado e de barba por desfazer a escurecer o rosto. Mexia na mala e em cima da mesa, espalhadas, várias notas de diferentes valores reinventavam o caos por entre envelopes e papéis.
- Só isto?! -... Olhou para ela.
Não respondeu. Ao invés, mexeu num dos envelopes e tirou um papel que consultou num relance.
- Vais mais logo pagar a luz... Passa pela lavandaria a ver se já tem o outro casaco limpo.
Vou deitar-me...
Acorda-me antes da uma...-


Charlie.............
Foto daqui

10 fevereiro 2007

Pernas

por Charlie


Chegou-se um pouco à janela, reservando alguns centímetros de recato antes de expor o bico dos peitos ao frio das vidraças que a enchiam de luz e à eventualidade dum olhar vago às janelas dum primeiro andar, num intervalo breve das pressas da rua.
Afastou com a mão esquerda um pouco mais o cortinado e reparou como a chuva caía mansinha, muito suave e doce, apenas atrevendo-se a polir de brilhos difusos, como a luz do entardecer, o piso liso da calçada ali mesmo escorrendo à sua porta
Afastou-se lentamente e deixou o olhar percorrer as ruelas por entre os quadros de vários tamanhos expostos na sala. Gostava de inventar percursos entre eles, sem sequer olhar para o que significavam. Não que isso não fosse importante, antes pelo contrário. Mas funcionavam neste jogo entre o cérebro e o olhar como meras referências a partir das quais fazia mentalmente desenhos geométricos, onde as linhas cruzavam entre si, projectando-se em prolongamentos e sombras até formar falos, pernas, vulvas; poses explodindo num universo de riscos e traços apenas imaginados para se reagrupar novamente em linhas e divisórias de onde emergiam outros arranjos para se desfazer novamente no efémero dum movimento de olhos.
Respirou profundamente. Deu dois passos e abriu a gaveta de cima do móvel. Depois olhou novamente para os quadros detendo-se num deles.
Experimentou um sorriso. Era um retrato a óleo. De excelente qualidade como de resto tudo o que a rodeava.
Veio-lhe à mente o dia em que saíra com ele. O almoço. A tarde no quarto de Hotel. O passeio pela cidade e a visita à ourivesaria da sua eleição.
- Querido… gosto tanto desta gargantilha… Ouro e pedras preciosas… e o rendilhado finíssimo… E vês aqui? Amor!… são diamantes… Oh que lindo! Que lindo... Amor! Amor!... isto é uma jóia valiosíssima!
Uma breve pausa sobreveio em que os olhares se detiveram para depois ele desviar durante um instante, voltando a fitar os seus olhos suplicantes de mulher incendiados dum fascínio quase de criança.
- Pois! - Respondeu – É uma peça lindíssima. Mas sabes, querida? O futebol é assim mesmo. As minhas pernas já não me dão nada a ganhar, e…

Voltou ao presente detendo o olhar no conteúdo da gaveta, despertando dos pensamentos.
Regressou lentamente à janela enquanto falava baixinho só para si.
- As pernas já não te davam nada a ganhar…
Olhou para a sua imagem palidamente reflectida no espelhado que os vidros devolviam do seu decote.
- E agora nem as minhas, meu querido, nem as minhas. – disse, enquanto ajeitava vaidosamente a gargantilha mais valiosa que alguma vez havia imaginado possuir…

10 janeiro 2007

Travessa escura

por Charlie


Saiu como tantas vezes fizera antes.
Quando as luzes se mostram cansadas de iluminar as pedras e estas sabedoras do cansaço da noite se mostram em brilhos acetinados e cobertas de suores.
Um ponto de luz na noite foi sempre a atracção esvoaçante que queima as asas ao sonho dos incautos, mas que importava isso para ela, agora com os olhos cheios de luz e alma sedenta de amar?
Iria como de costume entrar no bar duas ruas mais abaixo, pedir uma bebida, seduzir sem olhar e fazer o jogo sublime dos sinais que os corpos descodificam no despertar dos mundos interiores.
Por um instante riu-se docemente só para si mordendo os lábios e os olhos tomaram o abrir pleno da noite.
Passou debaixo do arco ao fim da rua, passagem simbólica para outra lado da vida.
A partir dali tudo mudava. A rua onde morava, onde durante o dia a claridade mostrava as recém chegadas rugas às vizinhas a quem não falava, e onde comia pão com manteiga por trás da porta entre aberta, dando os bons dias a si mesma quando o sol já percorrera mais de metade do seu percurso diário.
Essa rua, cheia de nada, ficava para trás quando na alta da noite ultrapassava o arco, atravessava a rua e descia a travessa escura e enviesada, meros dez metros seguidos da esquina morna de onde se adivinhava já o reduto dos jogos da eternidade encerrados no espaço do Bar onde era cliente fixa.
Era lua nova, e as noites escuras sem lua inquietavam-na de sobre maneira.
Rapidamente, acelerando o passo, fez por passar depressa pela travessa dos seus medos.
Estava quase a chegar ao meio, mais uns passos e o seu rosto iria encher-se da luz dos néons da rua contígua.
Mais uns passos e…
Foi quando sentiu de repente uma mão agarrar-lhe na boca e outra a puxar-lhe pela cintura. O seu coração pareceu de repente ir explodir. Lutou contra as mãos que a prendiam, o corpo de forte cheiro a suor azedo que a esmagava contra a parede. Sem saber como viu-se atirada ao chão duro e húmido. Sentiu uma dor intensa no seu flanco esquerdo, uma pedra mais saliente por entre as outras arredondadas das velhas calçadas. Sentiu um peso imenso em cima do estômago enquanto os joelhos daquele vulto enorme lhe prendiam as mãos.
Tentou gritar, sem sucesso. Um trapo seco, um lenço, sabia lá o quê foi-lhe introduzida na boca ao mesmo tempo que um sopapo violento a fez rodear de pontos luminosos, deixando-a meio zonza.
Depois, um puxão e sentiu a lingerie a desfazer-se sob a indelicadeza daquelas mãos grosseiras e ásperas que lhe arrancavam a roupa. Cuecas em baixo e um cheiro a álcool encheram-na de lágrimas quando sentiu estar a querer ser beijada. Desviou a cara enojada, estrebuchou uma e outra vez, pontapeou tentando libertar-se e levou outro sopapo.
Depois sentiu o afastar das pernas, a penetração sem mais. Bruscamente uma e outra vez sem qualquer preparação A sensação de morte que o chão frio e húmido lhe transmitiam ás costas e à nuca. A dor do corpo seco violentado, o nojo, o medo e a convulsão final do êxtase porco dentro de si, do orgasmo roubado como um bocado de carne levado na boca duma fera arrancada do seu íntimo com o mais cruel do sangue frio.
Sentiu-se esvair-se do fluido vital, a vida a abandonar o corpo e…

Ufff….

Rapidamente deu mais um passo e passou o limiar da travessa escura….

Havia já anos que ali passava e todas as noites sentia o mesmo calafrio quando se via tomada destes pensamentos.
Sorriu.
O rosto encheu-se de luz.
Vindo do Bar, ali mais à frente, já se ouviam os sons que faziam abrir as asas da noite

05 janeiro 2007

O embrulho

por Charlie


Lembro-me bem do primeiro dia em que sem querer nela tropecei.
Do rubor e a sensação a desastrado, que me amargou durante alguns instantes, quando lhe pedi que me desculpasse enquanto apanhava o embrulho que ela transportava nas mãos e que caíra com o meu encontrão.
- Ah...Desculpe-me por favor.... Ia distraído e nem reparei…Deixe que eu apanho. – disse um pouco atrapalhado.
Foi só quando me levantei para lhe fazer a entrega que reparei no seu ar divertido, quase zombeteiro.
- Não faz mal. – respondeu-me meio a rir enquanto recebia das minhas mãos o que transportara.
Despedi-me dela com um curto cumprimento e seguimos o rumo do destino, mal sonhando nas peças que ele nos reserva quando menos esperamos.
Não dera ainda dois passos quando sem saber porque estranho impulso me voltei de repente e dei com ela parada a olhar para mim. Não tentou disfarçar, antes pelo contrário. Os seus olhos procuraram os meus enquanto mordia levemente o lábio inferior.
Durante um breve lapso de tempo ficámos olhando mergulhados no mesmo compasso de espera. Tudo ao redor desapareceu. Nem sons nem os outros transeuntes aflitos para capturar as fatias de tempo que lhes roubavam a vida. O relógio perdeu o sentido e só o coração ficou mestre de Chronos.*
Naquele instante apenas duas pessoas havia em todo o Universo ligadas pela porta aberta dum olhar. Depois, movido pela força inexplicável que faz andar o mundo, avancei para ela e convidei-a para um café.
Lembro-me bem como lhe peguei levemente no braço que adivinhava por debaixo do espesso casaco de Inverno e nos cinco ou seis passos rápidos, quase corrida no salto final, com que atravessámos uma daquelas ruas travessas contíguas às Avenidas Novas de Lisboa. Do cheiro do seu cabelo e do nosso café bebido e fumado a meias a uma mesa e do convite para a sessão de cinema.
E foi com sublime gozo que nessa mesma noite a vi despir-se calmamente no seu quarto de estudante, recheada de livros abertos e cadernos cheios de apontamentos, e a desembrulhar o misterioso pacote que eu deixara cair das suas mãos nessa tarde.
- Gostas?- perguntou ela enquanto em frente ao espelho se mirava segurando contra o corpo as peças de lingerie negra finamente rendilhada com que me aguçava os apetites.
- Se gosto? – Respondi enquanto me aproximava e segurava no wonderbra e as mãos dela se ocupavam da peça inferior. – Gostar é o verbo que eu aplicaria quando deixei cair esta tarde o embrulho das tuas mãos. -
- E não é para isso que isto serve? – Terminou ela deixando cair as peças para cima da cama enquanto selava o curto diálogo com os seus lábios nos meus e deslizávamos suavemente entre os leves farrapos de rede negra com que ela me tinha capturado….

* Chronos: Figura mitológica Grega representativa do Tempo

01 janeiro 2007

Despertar


por Charlie


Sei dum sol que desperta
Quando a manhã é ainda
Uma promessa de luz
na noite dum mundo
sem sons:
- Uma esplanada deserta…-
Sei das folhagens quietas
e dos silêncios bons
quando ao ouvido te mordo
sem voz
as nascentes dos meus dedos.
E a lingua, mãe dos segredos,
abre a passagem aos regatos,
pelos caminhos, até à foz,
em riachos de mãos,
só agora descobertos.
Sei da espuma e do mar
que o rio abraça chamando um sol
sem amarras,
Quando no despertar vermelho me agarras
E voas gaivota, luz e farol,
na aurora, incêndio das tuas asas...
E sei o grito
do horizonte em fogo imenso,
que prolongando o instante intenso
desperta a noite, tornada o Infinito…-








.

27 dezembro 2006

Conto de natal

por Charlie


...Se soubesses como sinto a tua ausência… Como me custa mais este dia sem fazer amor contigo...

Olhou para o relógio só mais uma vez detendo o olhar vagamente no saltar regular do indicador dos segundos. Os outros ponteiros acusavam já o acerto das duas da manhã e embora tivesse olhado por várias vezes instintivamente para o mostrador não se havia compenetrado da hora.
Tinha passado toda uma noite em completa solidão.
À sua volta, todos se riam e conversavam.
Papéis de prendas espalhados pelas mesas e pelo chão.
Toda a gente feliz. De copos erguidos em brindes e chalaças, e os corpos rendidos ao toque mais chegado do momento mais doce em que as línguas misturam o borbulhar do espumante com a lascívia duma lampreia escorregando no seu ser de fios de ovos.
Levantou-se e, reparando que ninguém reparava, pegou no seu copo, encostou-o ao gargalo inclinado da garrafa e saiu, depois de tê-la deixado em cima da mesa numa posição mais consentânea com o seu estado livre da rolha.
Lá fora estava um desses frios... Arrepiou-se, enterrou-se no sobretudo e bebeu um trago da bebida fresca que de repente lhe transmitia uma estranha mas confortável sensação de calor.
Levantou o copo e, apontando vagamente para um dos pontos cardeais, fez um brinde a essa a quem tanto amava.
- Ai, minha linda! Como queria agora estar contigo, minha querida... meu amor. Se soubesses como sinto a tua ausência... Como me custa mais este dia sem fazer amor contigo, sem o prazer dos teus lábios nos meus e todo o sabor do teu corpo, esse poema divino. Ai como me custa todo este sofrer. Todo este querer e não ter… -
Abriu o telemóvel e leu mais uma vez a sua última mensagem, viu todas as fotos, companhia de todas as horas do dia e beijou-as docemente. Ergueu o braço e voltou a olhar para o conteúdo do copo. - A ti, meu amor, minha querida... -
Depois, de um só sorvo bebeu o resto. Sabia-lhe amargamente bem sentir a angústia dissipar-se no céu do seu estado etílico, perdido algures entre o olhar mortiço e as duas estrelas que tinham escapado à neblina intensa dessa noite de Natal.
Acordou de repente com o ruído que lá de dentro invadiu a quietude da noite.
A porta da sala que dava para o jardim estava agora entre aberta e uma silhueta feminina aproximou-se dizendo: - Ah! Estás ai. Anda para dentro... Está muito frio. Andavam à tua procura e ninguém sabia de ti...
Por onde andavas?...
O teu marido já estava preocupado contigo, Mariana...-

09 dezembro 2006

Fado.

por Charlie



Olhou para ela.
Viu como ela fechava os punhos enquanto punha toda a alma nos vincos que as unhas cravavam nas mãos e duas gotas do coração procuravam a luz da mundana noite por entre as frestas das janelas dos olhos.
O cante rasgado das entranhas seguia o trilho sofrido do poeta e avançava, todo o corpo em dádiva, todo em entrega, todo um rio de voz a diluir-se em espumas e abraços na foz, mar aberto a caminho do horizonte.
Agora as mãos abriam-se e cruzavam sobre o peito e o seu olhar cheio de brilhos das velas subia para lá do tecto do recinto, muito para lá das telhas e fios emaranhados, muito por cima dos céus cinza da noite de Outono. Era ela mesmo a mãe duma chuva de estrelas, sempre a crescer numa vibração contagiante, e de repente todo o universo saiu-lhe parido no instante em que o tempo parou, o corpo se rasgou, todo ele poema, todo ele voz enrolada nos acordes finais das guitarras...
Olhou sorrindo para a assistência. A respiração ofegante pelo esforço e projecção da alma, e avançou três passos no pequeno palco enquanto fazia uma vénia.
As estrelas voltaram a alinhar-se novamente nos infinitos arranjos e constelações e a sala encheu-se de aplausos. O mundo voltou a falar e as luzes atreveram-se a subir um pouco de intensidade acompanhando os murmúrios em crescendo, aqui e ali num tom mais alto. Por vezes uma risada mais sonora.
Jarros de tinto e chouriço assado enchiam agora o espaço de cheiros e bailados entre as mesas.
O poema continuava nas curvas do corpo de Marina que copiava os movimentos dos lábios a declamar frases e rimas.
De fadista de bairro transformada em empregada de mesa ocasional.
Aproximou-se do sítio onde tinha estado a observá-la embevecido, de olhar magnetizado.
Sentou-se junto a ele, mordendo o lábio inferior num misto de sensualidade e ciúme.
- A tua mulher veio?
Esperou um pouco antes de responder
- Não. Desta vez não. Tinha que fazer, disse-me. Não quis vir... Sabes? Mas isso agora não interessa...
Uma curta pausa sobreveio e ele aproximou-se-lhe.
- Tenho saudades tuas...
Olharam-se longamente, os lábios ardendo no adiado dum beijo.
Ao balcão, o gerente observava cuidadosamente. Pegou no telefone.
- ... Sim... O teu marido. Ele está aqui com ela... - disse baixinho, voltando-se para ficar fora do alcance visual do par - Pois... pelo que vi é coisa para levar umas horas... temos tempo. Vou já ter contigo conforme combinámos... outro para ti... Amo-te...

01 dezembro 2006

Manhã de chuva.

por Charlie

O dia estava a despertar.

Não como nos dias vulgares em que sentimos o clarear a entrar pelas frestas das janelas, acariciando-nos a pele nos momentos anteriores à luz que nos tinge as pálpebras de bocejos, mas antes como um sonho indefinido a entrar pela vida dentro. Os vidros suavemente embaciados acentuavam o tom estranho mas maravilhosamente cinzento matizado que se filtrava da rua, acompanhado do ritmo irregular de uma chuvinha doce e mansa.
Tic... tic... tic... tic...
- Ai que maravilha, sentir a chuva lá fora, deitadinhos debaixo dos lençóis. – Pensei antes de voltar-me para ela.
Puxei um pouco a roupa de forma a enterrar-me todo dentro da cama, de nariz bem encostado aos seus ombros.
Como me sabia bem o seu cheiro de mulher. Passei um braço por cima dela e encostei bem o meu sexo ao seu corpo, mal atrevendo a pousar a mão em concha no peito pequeno de mamilos em poema*.
Assentei os lábios num beijo suave. Muito suave.
Gosto de ser meigo. O meu beijo foi só um toque dos lábios a emoldurar a língua húmida com que saboreei muito docemente o sal da minha vida.
Tenho gostos simples. Assim como este dar um beijo tão leve - quase só a ponta da língua - num ombro que lhe desperte apenas a transparência dum sorrir, como de quem acorda por dentro do sono para um novo sonho. Um mergulho brilhante no infinito. O sentir-se gota cheia de sol, voar sem tempo e ser-se estrela. . .
Gosto de dormir nu! Completamente nu, sentindo a frescura e o toque do tecido contra a minha pele. Prolongo-me pelo espaço e sinto a liberdade de me saber apenas um fragmento do Universo, um piscar no tempo. Um nada e, simultâneamente, no instante ínfimo que é a nossa vida, o ser tudo; o infinito.
Da primeira vez que dormimos juntos, pedi que dormisse nua também. Toda nua como eu. Fez uma cara meio esquisita. Não estava habituada.
Já lá vão uns quantos anos.
Como o tempo passa...
Encostei-me mais a ela.
De olhos fechados sentindo o calor do seu corpo contra a minha pele, respirava agora toda a sua poesia.
É tão bom acordar ao lado de quem se ama…
Voltou-se para mim.
De repente.
Senti-a fundir-se entre as minhas pernas e braços, os dois rodando num só corpo e as almas a convergir entre o sonho e o quase despertar.
Abriu ligeiramente os olhos e abraçou-me com força.
- Fode-me... - Disse ainda meio a dormir com aquela voz...
A mesma voz que me havia enchido o telefone de sensualidade da primeira vez que tínhamos falado e eu me sentira prisioneiro duma emoção indescritível.
Mordi-lhe docemente o pescoço e desci para os peitos. Muito devagar. Tínhamos todo o dia. Chupei os mamilos com a força que sabia exacta para a fazer estremecer, enquanto as mãos sondavam os mistérios do sonho feito corpo.
Encostámo-nos bem um ao outro e fechámos os olhos.
Lábios em descoberta, corpos em naufrágio, gotas de suor o nosso mar.
Lá fora, o dia escureceu.
A persiana abanou com uma súbita e breve passagem do vento.
Chovia agora com mais força...

___________________
* a propósito de mamilos em poema:

Esse sonho, mamilos em poema,
sublime suprassumo do verso
É sentir tudo em queima
Imersas mãos no mar imenso

É avançar sem terra à vista
Viagem em guia pelas estrelas
Ser navio e ser conquista
Ser nativo, e caravela.

É o céu de olhar fechado
de alma toda aberta em voo
E dizer sem som falado
Amo-te como ninguém te amou...

25 novembro 2006

Despertar....


Foto albert smirnov.

do fotoblog imagens




Suspira o orvalho,

gotas de segredos

nas noites do teu corpo.

Do fundo do sonho,

um céu em rios de águas doces,

corre por entre os dedos,

despertando os vermelhos

da madrugada…



Charlie

13 novembro 2006

O sacana

por Charlie

Peguei no telefone e esperei um pouco.
Afinal, não podia mostrar excesso de emoção.
Ela não poderia suspeitar que estava louco para repetir a experiência. Sempre fora um sacana a romper o coração das mulheres. Quando as sentia conquistadas passava logo para a seguinte. Mas revia agora o teu corpo no meu sofá vermelho. Os teus lábios húmidos de desejo dos meus. E o teu corpo destilando humidades em aromas flutuando no calor tropical da sala hiper aquecida.
Olhei para o embrulho que tinha na mão. Era para a outra.
A nova.
Não me custara nada convencê-la a vir a casa. Logo que o seu marido saísse ela viria ter comigo. Mas nem ainda tinha sequer chegado e já estava farto dela. Fora tão fácil... Fechei a porta e olhei para o sofá vermelho. Cheirei-o. Tinha os aromas do corpo de ti. Nos meus olhos cresceram as imagens de meses a fio de conquista, de revezes e de reviravoltas. No fim tinha conseguido. Fora a maior satisfação da minha vida.
Um orgasmo intenso. A alma em turbilhão e um desejo enorme de repetir...
Mas eu não era assim. Tinha pouca experiência em ligações que ultrapassassem uma mera semana. Tudo se esgotava ao primeiro encontro, mas agora...
Peguei novamente no telefone.
-Está? Olá! Queres vir ter aqui a casa? Tenho uma prenda para ti. Como? Não sabes se podes vir. Queres que vá ter contigo? À tua casa? Está bem. -
Enquanto ia falando arranquei o bilhete com o nome da outra.
A campainha tocou.
Saí pelas traseiras.

10 novembro 2006

Nostalgias

Por Charlie


Passei à tua rua onde te sabia escondida atrás dos
vidros da janela.
Nos reflexos via as marcas dos lábios que querias nos meus. Sempre que eu passava punhas-te por trás das cortinas pensando não seres vista mas o azul do céu transportava-te até aos meus olhos, até ao mais fundo de mim.
Quando regressava à tarde, via as marcas acrescentadas da tua boca a reflectir no espelhado ao pôr do sol.
Soube que não querias mais beijos contra as vidraças quando um dia te despiste e deixaste as cortinas meio abertas. Assim tal e qual como tu estavas.
Não olhei!...

Gosto de despir-te com os olhos quando passas à minha rua. Atrás da minha janela vou despojando-te dos trajes enquanto as minhas mãos fazem o teu corpo.
Fecho nos olhos a tua nudez e abro nos dedos o teu querer.
Ai azul do céu!
Ai comboios a apitar!
Quem me dera ter-te agora.
Aqui, onde nos meus gestos te invento...

06 novembro 2006

Diário dum Padre VIII

O flagrante

por charlie

Sem mais vencêramos num voo o lance de escada que ligava a sacristia com os meus aposentos e na ânsia de nos termos, nem a porta fechara.
- Meu Deus. - exclamara eu ainda no confessionário quando ela sentada no meu colo me beijara enquanto a sua mão procurara a essência da minha virilidade.
- Isto não pode ser pecado! Isto é tão bom, tão doce…! É o Paraíso que se me abre as portas de par em par! Isto, meu Deus, é o suprassumo da graça Divina. -
Como poderia a partir desse instante alguma vez olhar para uma mulher com outros olhos que não fossem os da cobiça, esse outro pecado que tanto mortifica a alma, como me fora ensinado anos a fio?
Tudo decorrera num relance, num quase nada de tanto que o desejo se me acumulara.
- Mais...mais - Gritava agora que eu atingira o orgasmo e ela ainda ascendia na rampa dos sentidos rumo ao pico que rompe a barreira do azul onde se inventa o céu com as outras cores que estão por detrás das fontes onde nascem os arco-íris.
Olhei bem para ela, para o seu rosto vermelho de olhos perdidos em brancura, os lábios cor de sangue a latejar nas têmperas e senti com um misto de dor e prazer indescritíveis, as unhas a rasgar-me a pele, cravando-se fundas nas minhas costas ao fechar-se lhe as mãos quase em êxtase.
Como era linda e agora toda minha! Mal notara a minha breve perda de erecção após o orgasmo, todo o meu corpo pedia mais e mais sexo. Tanto tempo recalcado e reprimido. Tantos anos a enganar-me, a inventar pecado na coisa mais sublime e maravilhosa que um ser humano pode experimentar. Penetrei-a uma e outra vez com suavidade e depois com mais e mais insistência, quase violência enquanto a sentia a apertar-se sobre mim e a tornar-se tensa.
A dado momento todo o seu corpo silenciou. Como nos instantes de acalmia estranha que precedem as tempestades. O seu gemer, a respiração ofegante, tudo ficou suspenso, como se o tempo tivesse parado. Entrevi o raio de sol por entre as folhagens de gotas pingentes numa pausa de segundos entre duas chuvadas.
Depois a explosão. O relâmpago! O grito intenso! O corpo em estremecimento e as mãos a fecharem-se sobre a minha pele dilacerada.
Senti dor e desconforto.
Gritei com ela o que lhe aprofundou ainda mais o prazer.
Depois o corpo afrouxou. Sem abrir os olhos abriu as mãos e afagou-me o rosto. Eu continuava em erecção. Sentia agora a acalmia doce, o remanso suave do porto de abrigo onde o meu navio de velas ainda enfunadas procurava irmanar o descanso.
Foi nesse momento que dei pela presença estranha.
Estava junto à porta do quarto e olhava-nos incrédula. Fiquei sem saber o que dizer e sem pensar saiu-me: - Eu já falo consigo Dona Genoveva...feche a porta por favor. -

28 outubro 2006

Diário dum padre, parte VII

por Charlie

Agora que escrevo estas linhas e que tudo me vem ao cimo com a força imensa que sulcou toda a minha alma, revivo o nosso primeiro encontro.
Era padre novo na paróquia ainda na missão de me apresentar aos paroquianos o que fazia ao ritmo de uma meia dúzia por semana.
Tinha ido a casa dela um dia antes e deixara-me perturbado, despertando todas as interrogações interiores, fazendo-me passar a noite em claro
Revi nessa altura em oração todos os ensinamentos do meu Mestre. As tentações da carne, os pensamentos pecaminosos. As formas aprendidas de como contornar o Demo e a sua linguagem subtil exercida através dos apelos dos sentidos.
Nessa noite apenas tinha conseguido conciliar o sono quase ao raiar do dia e foi em sobressalto, com os olhos cheios de noite, que entrei pela porta lateral da sacristia que ligava directamente com o altar. Trazia a mente recheada de todos os propósitos elevados e em absoluta convicção da minha missão como sacerdote. Era ministro de Deus, e toda a minha formação tinha sido no sentido da salvação das almas do meu rebanho, mas mal olhara para a assistência dera com ela a olhar para mim, mesmo na primeira fila e todo o meu corpo reagira em êxtase. Não pudera conter a forte erecção. Nesse mesmo instante saíra e na pequena casa de banho da sacristia, mesmo ao lado, masturbara-me. A primeira masturbação da minha vida. Perante os meus olhos fechados os seus lábios, o seu decote e a doce lembrança do seu cheiro de fêmea que guardara do momento da despedida no dia anterior em sua casa, tinham incendiado todo o líbido contido e amansado através de anos e anos de doutrina, rotinas e oração.
Regressei ao altar sob o cutelo vingador dos anjos que me miravam. Um imenso arrependimento pelo pecado cometido muito embora me soubera maravilhosamente o momento supremo de êxtase em que me sentira a entrar no mais divinal dos céus.
A celebração da missa foi feita sob o signo da perturbação. O meu receio de olhar para os seus olhos e o corpo a reagir em nova erecção.
Os instantes subsequentes em que ela ficara após o términos da Missa e me pedira para ser ouvida em confissão, foram a machadada final em todas as intenções a que me propusera.
Revejo agora como a levei para o meu modesto quarto no cimo das escadas da sacristia após uns instantes conturbados em que ela entrara no confessionário e se sentara no meu colo afagando-me o pénis. De como um imenso tesão me tomara todo o ser ao ponto de me por o corpo inteiro sob pressão e dor insuportáveis.
Deixara a porta do quarto aberta, ela desabotoara a minha sotaina enquanto se aliviara da pouca roupa que trazia e logo nesse instante a cama fora o nosso mar.
Foi a primeira vez que conheci o corpo duma mulher. Longe de mim estavam todos os remorsos e sentimentos de culpa com que o seminário tinha moldado a minha personalidade. Penetrei-a. O seu corpo quente e húmido, desejoso da partilha do sexo, tive um orgasmo quase imediato, mas não perdi a erecção e continuei até ouvi-la gemer, os olhos a perderem-se na brancura final dum longo grito, voo livre da alma em que todo o seu corpo a vibrar me fez atingir novamente as portas celestiais. Desta vez um orgasmo ainda mais intenso que os dois anteriores.
- Meu Deus! - Pensei, será isto apenas uma breve amostra do que se aprende ser o Estado de Graça Eterna ao lado do Pai Criador?
De tal forma estávamos entregues que nem um nem outro deu pela presença dum par de olhos que do cimo das escadas nos miravam em silêncio….

(Continua)

11 setembro 2006

A visita...

Por Charlie, foto: Imagens


Não sabia ao certo como tinha ido parar ali. Não me lembrava de ter memórias antigas e sem saber porquê, todo o conhecimento de mim próprio cabia em poucas horas. Muito vagamente umas leves impressões de como olhara para o Sol a pôr-se antes do anoitecer que agora terminava, umas deambulações por aqui e por ali meio perdido e depois, sem ter noção precisa, o aparecimento naquele espaço onde agora me encontrava, e onde descansara sem saber em que sítio exacto, deixando-me envolver pelo manto suave do cansaço após ter fixado o meu olhar na beleza daquele ser que estava deitada à minha frente.
Os primeiros raios a ameaçar rebentar o horizonte, ao entrar pelos rasgos da persiana, fizeram-me despertar e inspirar fundo o puro gozo de existir.
Estava dono duma leveza inebriante, ultrapassando os limites dum corpo que nem sentia, e todo o espaço me cabia num gesto.
Olhei para um lado e para outro, mudei de posição sempre com ela na mira. Era linda, toda suavidade e maciez, um hino à feminilidade despertando todos os quereres. Atrevi-me a aproximar levemente do seu ombro, tocá-lo e saborear o leve aroma que a sua pele exalava, mas hesitei no último instante. Não sabia como ela iria reagir ao meu afago, ao meu toque, e agora que estava tão próximo dela todo o desejo avivava, fazendo crescer a agua na boca, mas no último instante resolvi adiar por momentos o encontro com o meu desejo. Senti o calor do seu corpo e de como ela nesse mesmo momento, ao mover-se na cama, despertara do seu sono. Afastei-me devagar de forma discreta sem que tivesse dado pela minha presença. Ali para o fundo do quarto onde fiquei olhando para ela que entretanto, se levantara.
Mesmo sentindo que não tinha corpo, escondi-me atrás das franjas do cortinado que estava aberto, expondo as nesgas da persiana por onde o ar fresco entrava enquanto seguia como ela deambulava pelo quarto e expunha toda a sua nudez apetitosa aos meus instintos e apetites. As curvas do corpo, o brilhar dos olhos, o convite dos lábios húmidos, o mundo dos aromas que me chegavam aos sentidos.
Saiu e voltou depois duns minutos exalando vapores e aromas novos, adocicados. O cabelo molhado que ela massajou com uma toalha e que sujeitou depois à disciplina dum pente.
Vestiu um roupão e foi para outro compartimento.
Resolvi segui-la.
Agora era uma cozinha.
Cheiros muito diversos enchiam-na por completo e olhando melhor para ela via agora como expunha uma orelha por entre a suave nuvem de cheiros que saíam do seu cabelo ainda húmido.
Abriu uma porta e tirou um recipiente. Encostou-o à boca e de olhos fechados deleitou-se lenta e gostosamente.
Foi então que me aproximei do ouvido exposto por entre a sinfonia de tons reflectidos vagamente pelo sol a nascer e que através da janela incendiavam o cabelo em doces chamas e nuances. Cheguei-me lentamente a ela, cada vez mais próximo, até ficar a um mero nada de lhe dar um beijo, e passear-me por ela e saborear a beleza do seu corpo....
Assustei-me pois repentinamente ela pareceu ter dado pela minha presença, rodando a cabeça com os olhos a seguir vagamente onde eu poderia estar. Não sei como ela deu por mim, pois nem eu próprio tenho noção de ocupar espaço algum.
Escondido por trás dum armário vi como ela mexeu num botão na parede.
Um milagre tomou repentinamente forma. Toda uma alegria instalou-se de repente naquele recinto. Tudo ficou inundado duma luz intensa e bela. Uma verdadeira maravilha, um paraíso para os sentidos e um apelo irrecusável de beleza e excelência. Todo o espaço ficou recheado dum jogo extraordinário de efeitos de cor e brilhos irreais, verdadeiros prodígios para o sentido da visão. Que maravilha pensei. Por um instante esqueci-me dela e com toda a luz no olhar desloquei-me atraído pela dança que se espalhava pelo recinto da cozinha. Por todo o lado a luz me inebriava e atraia, mas ali, num ponto que de repente descobrira, tudo era mais belo e apelativo, toda uma grandiosa sinfonia de luz a correr em nascente. Chamava-me e dava-me corpo. Quase que me tinha esquecido da mulher que agora parecia estar a ver-me.
Levado pela minha alegria passei novamente junto a ela, e enquanto me deslocava na direcção da fonte de todo aquele fantástico apelo, olhei-a maravilhado nos olhos. Sorria-me e eu sorri para ela um mero instante antes de sentir todo o meu ser atravessado por uma forte vibração ao mesmo tempo que toda a luz se incendiava para me deixar depois mergulhado na completa escuridão sem que tivesse mais noção do meu existir.
Cá em baixo, com o pacote de leite encostado aos lábios, ela bebia a satisfação da vitória rápida sobre a incomoda mosca que desde a manhã a perseguira...

09 agosto 2006

Os Javardos

Mensagem do autor.
Por não se enquadrar no espirito deste blog retirei o primeiro episódio dum trabalho que se chama " Os Javardos" .
É um relato extenso sobre sexo e crime, com laivos de factos reais, mas por ser diferente entendo que nao se enquadre no que este blog pretende ser, como aliás ficou bem expresso nas caixas de comentários.
Deixo o meu pedido de desculpa pelo tempo que perderam a ler e os meus agradecimentos.
Prometo de futuro ser mais sucinto e directo.
Charlie.