10 janeiro 2007

Travessa escura

por Charlie


Saiu como tantas vezes fizera antes.
Quando as luzes se mostram cansadas de iluminar as pedras e estas sabedoras do cansaço da noite se mostram em brilhos acetinados e cobertas de suores.
Um ponto de luz na noite foi sempre a atracção esvoaçante que queima as asas ao sonho dos incautos, mas que importava isso para ela, agora com os olhos cheios de luz e alma sedenta de amar?
Iria como de costume entrar no bar duas ruas mais abaixo, pedir uma bebida, seduzir sem olhar e fazer o jogo sublime dos sinais que os corpos descodificam no despertar dos mundos interiores.
Por um instante riu-se docemente só para si mordendo os lábios e os olhos tomaram o abrir pleno da noite.
Passou debaixo do arco ao fim da rua, passagem simbólica para outra lado da vida.
A partir dali tudo mudava. A rua onde morava, onde durante o dia a claridade mostrava as recém chegadas rugas às vizinhas a quem não falava, e onde comia pão com manteiga por trás da porta entre aberta, dando os bons dias a si mesma quando o sol já percorrera mais de metade do seu percurso diário.
Essa rua, cheia de nada, ficava para trás quando na alta da noite ultrapassava o arco, atravessava a rua e descia a travessa escura e enviesada, meros dez metros seguidos da esquina morna de onde se adivinhava já o reduto dos jogos da eternidade encerrados no espaço do Bar onde era cliente fixa.
Era lua nova, e as noites escuras sem lua inquietavam-na de sobre maneira.
Rapidamente, acelerando o passo, fez por passar depressa pela travessa dos seus medos.
Estava quase a chegar ao meio, mais uns passos e o seu rosto iria encher-se da luz dos néons da rua contígua.
Mais uns passos e…
Foi quando sentiu de repente uma mão agarrar-lhe na boca e outra a puxar-lhe pela cintura. O seu coração pareceu de repente ir explodir. Lutou contra as mãos que a prendiam, o corpo de forte cheiro a suor azedo que a esmagava contra a parede. Sem saber como viu-se atirada ao chão duro e húmido. Sentiu uma dor intensa no seu flanco esquerdo, uma pedra mais saliente por entre as outras arredondadas das velhas calçadas. Sentiu um peso imenso em cima do estômago enquanto os joelhos daquele vulto enorme lhe prendiam as mãos.
Tentou gritar, sem sucesso. Um trapo seco, um lenço, sabia lá o quê foi-lhe introduzida na boca ao mesmo tempo que um sopapo violento a fez rodear de pontos luminosos, deixando-a meio zonza.
Depois, um puxão e sentiu a lingerie a desfazer-se sob a indelicadeza daquelas mãos grosseiras e ásperas que lhe arrancavam a roupa. Cuecas em baixo e um cheiro a álcool encheram-na de lágrimas quando sentiu estar a querer ser beijada. Desviou a cara enojada, estrebuchou uma e outra vez, pontapeou tentando libertar-se e levou outro sopapo.
Depois sentiu o afastar das pernas, a penetração sem mais. Bruscamente uma e outra vez sem qualquer preparação A sensação de morte que o chão frio e húmido lhe transmitiam ás costas e à nuca. A dor do corpo seco violentado, o nojo, o medo e a convulsão final do êxtase porco dentro de si, do orgasmo roubado como um bocado de carne levado na boca duma fera arrancada do seu íntimo com o mais cruel do sangue frio.
Sentiu-se esvair-se do fluido vital, a vida a abandonar o corpo e…

Ufff….

Rapidamente deu mais um passo e passou o limiar da travessa escura….

Havia já anos que ali passava e todas as noites sentia o mesmo calafrio quando se via tomada destes pensamentos.
Sorriu.
O rosto encheu-se de luz.
Vindo do Bar, ali mais à frente, já se ouviam os sons que faziam abrir as asas da noite

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