06 dezembro 2014

«Soldado, Açoriano e homossexual» - por Rui Felício

Histórias da tropa

Numa altura em que tanto se discutem os direitos dos homossexuais, catalogando-se de homofóbicos todos quantos se atrevam a questionar as balizas e especificidades desses direitos, lembrei-me de um soldado que conheci na tropa, numa altura em que se ouvia falar num célebre artº 16º do RDM que não permitia a incorporação militar de homossexuais.

Soldado, Açoriano e homossexual

Terminado o C.O.M. em Mafra preenchi um papel onde indicava três quartéis onde preferia ser colocado depois da promoção a oficial.
Escolhi naturalmente Coimbra e em alternativa Aveiro ou Leiria. Simpáticos como eram os Senhores da Guerra mandaram-me para a Companhia Disciplinar de Penamacor. Era um quartel onde assentavam praça os mancebos refractários e aqueles que, não o sendo, tinham sido condenados por algum Tribunal civil antes da sua incorporação militar. Os oficiais milicianos ali colocados para darem instrução militar àqueles recrutas eram escolhidos dentre aqueles que, por algum motivo mesmo pouco importante, já tinham sido anteriormente convidados da pide, ali tendo deixado o seu registo.
Esta última parte não estava escrita em lado nenhum, mas as coincidências das histórias de cada um dos quatro aspirantes ali colocados tornavam evidente que a escolha não tinha sido casual. Estiveram lá comigo o Sá Carneiro (sobrinho do então “perigoso” líder da ala liberal ), o Zé Mota, parente do Magalhães Mota, deputado também da mesma ala liberal e o António Moreira, que tinha sido preso em Famalicão sob a acusação de ser comunista. Este último acabou por morrer em combate na Guiné...
Fiquei desanimado quando recebi a guia de marcha, não só por ser longe e sem meios de transporte capazes, mas principalmente por me dizerem que se tratava de um quartel de “presidiários”.
Hoje, porém, considero que o meu melhor tempo de tropa foram os três meses que ali estive. Só havia um pelotão de trinta recrutas e os aspirantes instrutores eram quatro. Logo dividimos pelos quatro as tarefas da instrução, o que significava que dando cada um, duas horas de aulas ou exercícios, ficávamos com o resto do dia livre.
Para além disso conheci, no meio daqueles soldados, verdadeiras figuras inesquecíveis e que muito enriqueceram o meu conhecimento da vida: ladrões, proxenetas, burlões, vigaristas ...
Lembro-me do simpatiquíssimo Cristo que obteve esse alcunha por ter o vício de roubar as caixas de esmolas e os santinhos das igrejas. Do Houdini que assim se auto designava por fazer desaparecer, num relâmpago, tudo o que de valor lhe passasse por perto. Do Clark Gable que engatava miúdas com o seu ar de galã e as punha a render em Lisboa em seu proveito.
Do Maestro que uma vez foi chamado pelo autarca de Penamacor porque o cofre da Câmara se tinha encravado. Em menos de cinco minutos, só com o ouvido a escutar os imperceptíveis estalidos das rodas dentadas do segredo, e um pequeno arame na mão, abriu a porta do cofre de par em par.
Recordo-me ainda, com alguma pena, do Velhinho já com 43 anos de idade e mais de 20 de tropa que, fugia e voltava a ser preso, de cada vez que lhe davam licença para ir a casa buscar a sua roupa civil para depois ser passado à disponibilidade. Disse-me que o fazia propositadamente, porque com aquela idade já não sabia encontrar modo de vida que lhe proporcionasse cama, mesa e roupa lavada.


Deixo para o fim o soldado nº 42 (Elias, de seu nome... ). Era visivelmente maricas. E tinha um jeitão para passar a ferro, coser botões e arrumar meticulosamente o quarto onde eu e o Sá Carneiro dormíamos.
Natural dos Açores, foi parar a Penamacor porque tinha sido condenado por um Tribunal açoriano, enquanto civil.
Costumava travestir-se de mulher provocante e sensual e, de conluio com um seu parceiro angariador de clientes, ambos abordavam os passageiros mais velhos dos aviões que faziam escala nos Açores, entre a Europa e os EUA, propondo-lhes, enquanto durava a paragem do avião, uns momentos de sexo com a “rapariga”, a troco de um punhado de dólares.
Nunca cheguei a perceber se os velhos americanos chegavam a ter tempo de descobrir o engano, mas isso pouco importava porque o pagamento era antecipado e o “travesti” era atraente...
De facto, o rapaz (!) não tinha pêlos no corpo, tinha uma carinha de menina e, segundo dizia, usava cabeleira e seios postiços que facilmente enganavam o mais pintado.
No quartel de Penamacor, atendendo ao seu visível jeito para as lides femininas, foi por nós escolhido como “impedido” no serviço de quartos dos oficiais. O que lhe conferia alguns privilégios na dureza da instrução militar.
À noite, era preciso “enxotá-lo” para sair do nosso quarto, dizendo-lhe que já não precisávamos dele. Mas, teimoso, sempre argumentava que não se ausentaria sem ter a certeza que “os nossos aspirantes” ficavam bem deitadinhos e confortáveis nas suas camas...
Quase que nos obrigava a despirmo-nos e enfiarmo-nos debaixo dos lençóis para então, sim, fechar a luz e sair para a sua caserna.
Chamávamos-lhe, em vez de Elias, o número quarenta e duas...

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
Blog Escrito e Lido