19 dezembro 2014

«A menina dos remos e o faroleiro» - João

"A água ondula suavemente, por acção do vento, e com isso faz oscilar o barco a remos onde a menina está sentada, com as mãos repousando sobre as coxas, os remos seguros, inertes, e uma brisa no rosto. Está sozinha na água, em balanços, de sol na face, de lua nas costas, umas vezes de dia, outras no vazio da noite. O olhar está fixo no horizonte que se risca por um feixe de luz que o atravessa. Sabe o que é, ela conhece-o bem, sabe a origem, é um farol que faz as águas menos turvas, é a luz no topo de uma torre assente sobre rocha, uma luz de tons quentes que rasga o céu na escuridão com a sua trajectória circular, que sinaliza a terra firme. A menina continua sentada, de pés juntos, de mãos assentes nas coxas, de olhar fixo, com o farol ao longe, a luz a rodar ao longe, cada vez mais longe, de um barco a remos afastado pela corrente. E distante, em terra firme, a pé seco, o faroleiro está parado, em pé, com as mãos dentro dos bolsos do seu casaco, firme de pés imóveis no solo, e de olhar fixo num botão. Silencioso, sem nada à sua volta, só o ruído de coisa nenhuma, ele no seu farol, a luz lá em cima a fazer riscos no céu, e um botão em frente a ele. Tira a mão do bolso e repousa um dedo sobre o botão. Suspira. A pressão do dedo no botão aumenta, e ao mesmo tempo, a menina, lá fora na água, move as mãos e segura os remos sem nada saber, sente vontade de os mover contra a água, de vencer a corrente, e enquanto isso o faroleiro alivia a pressão sobre o botão, e a luz continua a rodar na escuridão, continua a ser vista, e ela ainda bate os remos na água algumas vezes, mas volta a colocar as mãos sobre as coxas, e volta a fixar o olhar no horizonte, e fica assim, e sem ninguém saber de ninguém, o faroleiro afasta-se do botão e vira costas, afasta-se até ao exterior onde observa a luz a rodar, meneia a cabeça em assentimento, suspira de novo, e caminha no escuro de mãos nos bolsos e semblante carregado, não sabendo das águas nem do barco a remos, nem a menina sabendo de faroleiros ou botões. A luz a riscar o céu, e a menina a navegar."
João
Geografia das Curvas