08 julho 2005

o corsário


A praia já começa a não ser aprazível. Com a chegada do calor, chegam também os veraneantes, irritantes. É o café, o de sempre, afinal, o da esplanada à beira-rio que me acolhe. É aqui que me sento, sempre com os mesmos óculos escuros, e é aqui que espero o minuto seguinte.
A noite passada dormi com um homem que encontrei à beira-rio, sentado em frente a um copo vazio. Era um corsário, disse-me. Desconhecido para ele próprio, disse-me. Falou-me do mar e do seu navio. Das mulheres, sereias, putas, princesas, sempre a mesma mulher em todos os portos, em todos os corpos, em todos os copos quebrados em todas as viagens. Quebrado ele próprio, disse-me. Quebrados estamos todos, disse-lhe. Dormi com um corsário de areia nos dedos e sal nas palavras, e sal na pele, e sal no sexo, na pele, no sexo. Enlaçou-me o corpo, salgado de dor, os seus membros prolongamentos dos meus, o seu prazer eco do meu. Amou-me o corpo com a violência dos solitários, dos homens tornados bestas de inquietação. Amou-me sem preconceitos, sem barreiras. Deixei-me amar nessa cama tão desconhecida quanto ele. Tão desconhecida quanto eu. Deixei-me amar por todas as noites que entretanto esqueci, pelas noites futuras em que não me reconhecerei. Disse-me e disse-lhe o que nos fez falta saber, nesta linguagem universal que é o sexo imediato, disponível, sem amor, sem conhecimento do outro ou de nós próprios, sem palavras. O sexo dos homens, das mulheres de sal e areia, dos corpos que se sentem, que se mentem, na entrega imediata, breve, breve, breve, prazer breve, vida breve, vida tão breve. Todavia tão forte e reconfortante. São assim os piratas, disse-me. São assim os homens, disse-lhe. São assim as mulheres, disse-me. E outra vez me enlaçou, e outra vez o devorei, faminta de sal, agora sedenta, agora morta de sede e cansaço satisfeito, comprazido. E a sua pele curtida de tantos amores vividos, adiados, afogados, em cada porto, em cada corpo, de novo despertou a brutalidade da terra que sou, da água que sou, do fogo que sou. Gosto do teu amor, disse-me na sua voz gasta de tanto repetir as mesmas mentiras, as mesmas máscaras da verdade desconhecida, perdida e achada, nos portos passados, sempre perdidos e achados. Um porto é um grilhão, disse-lhe, mais do que um abrigo. Um porto cega-nos, ensurdece-nos. Não, disse-me, um porto dá-nos tréguas, ilude-nos. Conforta-nos essa ilusão. É a verdade que nunca nos conforta. Disse-lhe que não sei, que nunca a conheci, nunca a encontrei. Disse-me que sim, que a encontrei, apenas não a reconheci, nunca me foi apresentada. Deu-me o exemplo do orgasmo como a mais inequívoca das verdades. E eu lembrei todas as histórias (...) de orgasmos mentidos, de orgasmos mentidos por favor, por pena, por vergonha de não serem verdadeiros, mas calei o argumento quando me lembrei que são, de facto, o melhor exemplo da verdade. Qualquer verdade, o corpo não mente, a pele arrepia-se se temos frio, os beijos não são beijos se não se quiserem dar. Ou receber. E nós damos os melhores beijos do mundo, não é verdade? Verdade, verdadinha. E o prazer não se mente. Só se deixa iludir quem está demasiado preocupado com o seu próprio prazer. O que se procura em tantos corpos?, perguntei, de olhos fechados. Procuramos a fuga, respondeu-me. De que foges tu? De que foges agora? Fujo das tuas perguntas, fujo da verdade que é o amor possível, fujo da própria fuga. Mas um pirata não é um homem corajoso, valente? Um pirata é um homem com cara de mau. Um pirata é um homem que em tudo encontra refúgio, até na própria verdade. Então, faz-me amor outra vez, a mim que temo todas as verdades e todas as mentiras, faz-me amor tu, que tens o sexo descomunal, bronzeado, agreste e agressivo, tu que fugirás na próxima mudança de maré, faz-me amor a mim, que fugirei antes daquela hora mágica em que o sol nos obriga a ver as verdadeiras cores das nossas próprias limitações.
E ele fez-me amor, e eu fiz-lhe amor e, se não mentimos, tão pouco trocámos verdades, porque não conhecíamos, afinal, nenhuma das duas. O amor que se faz, sem compromisso, este amor que se chama sexo, este amor banalizado que se procura como fonte de água fresca, deixa-nos como? Não respondas. Quero apenas sentir-te. Sentir o teu corpo pesado sobre o meu, sentir o teu sexo descomunal, já to disseram essas mulheres sereias, putas, princesas com quem dormiste nesses portos perdidos e achados?, senti-lo ganhar vida por mim, para mim. Essa que é uma força da natureza, incontornável, que é, afinal, a mais pura das verdades, que está à minha frente, que entra agora em mim, que me viola, que me violenta, que me acalenta, esse sexo — descomunal, já to disseram?— que me rasga a solidão, que me mente em cada espasmo, essa saliva que me enche a boca de sal, que me traz sal à vida, que me acorda, de repente, como quem nos abre a janela do quarto ao meio dia e nos deitámos cheios de álcool e de solidão quatro horas antes, e abrimos os olhos para uma realidade desconhecida, desconexa, desconcertante e desconcertada. Assim é a tua língua na minha, no meu sexo, assim é o teu sexo — descomunal — no meu, na minha boca, violento, brutal, violento, violento. Brutal. Brutal como o sol nos olhos ressacados, como a verdade, como a mentira.

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